Vitimismo pesadão: sonhos infinitos

O texto hoje é vitimismo puro. Daquele tipo que afirma sempre que a carne mais barata é a carne negra. Quem liga, não é mesmo? Talvez o William Waack.

Texto carregado dessa conversinha que é mimimi de gente preta: racismo, preconceito, pobreza, miséria, assassinatos, eugenia, escravidão, servidão, humilhação, negatividade, situação preta, mercado negro, favela.

Acalmem-se! Não é a bobagem de novela global que aborda uma Bahia branca, tampouco é sobre a demora na resolução do assassinato da mulher negra e empoderada Marielle Franco, também não é sobre a renúncia de Joaquim Barbosa na sua candidatura à presidência da república, também não é sobre o assassinato de Matheusa, jovem não binário e afrodescendente, ou dos corpos negros e pobres que são retirados dos escombros do incêndio do Edifício abandonado no centro de São Paulo que servia precariamente a cerca de 200 famílias.

A parada aqui neste texto é mais sinistra. É sobre tudo isso que está acima no texto e muito mais, é de repente você se dar conta do que está por trás de ações organizadas que tentam ridicularizar ou expor de forma pejorativa queixas legítimas de determinado grupo, que faço parte, sobre fatos que cotidianamente nos afetam.

A intenção desta prática é a de voltar ao tempo passado e que começara a ser desconstruído ainda muito recentemente: cabeças baixas, choro contidos, solidão, nós nas gargantas, raras representações políticas, ser e principalmente parecer “gente de bem”, poucas incursões no ensino superior, aniquilamento de nossas culturas e costumes ancestrais, tempo de apagamento dos os traços físicos e étnicos com cabelos majoritariamente alisados ou domados (como queiram), afilamentos de narinas, branqueamento de nossas peles, acizentamento de nossos coloridos. Tudo em nome do silenciamento e da invisibilidade que revelam muito mais sobre a sociedade.

Quando você bate em alguém, esse alguém é vitima. Quando se rouba toda uma herança, quando se violenta, estupra, mata, dizima, oprime, marginaliza, humilha, inferioriza, e pratica todo azar de maldades inimagináveis com alguém, esse que sofreu os destilares de ódio será vítima. Ninguém aqui está se vitimizando, nos tornamos vítimas sem pedir, merecer, ou querer.

Chegamos aos cento e trinta anos de abolição da escravidão neste ano, e até isso recebeu cores e formato de concessão branca, uma benfeitoria branca e não o resultado de luta, resistência e enfrentamentos diários que se têm registros.  Quero perguntar aos repetidores do termo mimimi: – Devíamos ser gratos à princesa?

Afinal, em uma canetada (tinta e pena) ela colocaria fim a 300 anos de escravidão, navios negreiros, mortes, torturas, espancamentos, correntes e grilhões, chibatas, estupros (vou repetir o termo para que não paire a dúvida sobre o tipo de relação que se dava entre donos e escravas, não me fale em consenso quando o que está em jogo é a própria existência) e tudo mais que veio no pacote “full” da escravidão brasileira.

Há alguns dias escrevi que tenho sentido que coisas ruins estão chegando, e agora quero acrescentar algo que não disse naquele texto, talvez tenha dito meio de soslaio como boa capoeirista da linguagem: seremos nós! Punhos cerrados e em riste.

Entendam do que estou falando, não haverá mais arrastar de correntes, nem silêncio. Não voltaremos caladinhos para as senzalas, não emprestaremos nossas mães e o leite de seus seios para fortalecer sua cútis, não estamos em liquidação, não tentem enfiar em nossas goelas abaixo suas vontades escravocratas, não achem que nossa alegria e samba servem ao seu prazer, não acreditem que nossos corpos devem ser objetos de seu prazer e descarte, não faremos negociações. Não pensem que minhas palavras são amargas, só não têm a leveza e poesia dos versos de Cartola: deixe me ir preciso andar, vou por aí a procurar, rir pra não chorar… Mas posso afirmar que ninguém ainda viu nada. Sabe a capa de invisibilidade que recebemos de presente? Serve muito bem aos nossos propósitos de organização. Obrigada!

E por falar em novidade, e esperança (tudo bem, eu sei que não estava falando sobre isso, ou será que estava?) – eu quero sempre ser a mensageira de boas novas – é preciso ouvir a jovem Iza, deixo como sugestão ou proposta de intervenção uma parceria dela com Falcão, chamada Pesadão:

Ooh ooh-ô-oh
Dão, dão, dão, dão
Ooh ooh-ô-oh

Vou reerguer o meu castelo
Ferro e martelo
Reconquistar o que eu perdi
Eu sei que vão tentar me destruir
Mas vou me reconstruir
Vou ‘tá mais forte que antes

Quando a maldade aqui passou
E a tristeza fez abrigo
Luz lá do céu me visitou
E fez morada em mim

Quando o medo se apossou
Trazendo guerra sem sentido
A esperança aqui ficou
Segue vibrando

E me fez lutar para vencer
Me levantar e assim crescer
Punhos cerrados, olhos fechados

E eu levanto a mão pro alto e grito
Vem comigo quem é do bonde pesadão!

Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh

Ainda erguendo os meus castelos
Vozes e ecos
Só assim não me perdi

Sonhos infinitos
Vozes e gritos
Pra chamar quem não consegue ouvir

Do Engenho Novo pra Austrália
Pronto pra batalha
Cabeça erguida sempre pra seguir
Se tentar nos parar, não é bem assim
Ficaremos mais bem fortes do que antes

Do sul ao norte sonoros malotes
Música da alma pra sábios e fortes
Game of Thrones com a gente não pode

Minha ostentação é nosso som
Iza e Falcão são do bonde pesadão

Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão

Pesadão-dão, pesadão-dão
Pesadão-dão, pesadão-dão
Pesadão-dão, pesadão-dão
Pesadão-dão

Se o deles é chique
Nosso é pau a pique
Que não mata o pique
Fortalece equipe
O som do repique
Peço que amplifique
Toca da Rocinha
Chega em Moçambique

Sábias palavras da sua companhia
Muito espaço, passo no seu caminho
Atitude, bolo um rap pesadão dialeto
Repique como um raio atingi
Iza como imperatriz
Amizades e elos
Novos castelos

Iza e falcão são do bonde bonde bonde pesadão

Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão

Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão
Ooh ooh-ô-oh
Som pesadão, pesadão-dão

Compositores: Pablo Bispo / Izabela Lima / Marcelo Falcão

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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