Vinte anos e um dia, de Jorge Semprún

Jorge Semprún é um escritor nascido em Madri (10.12.1923), filho de diplomata do governo republicano, fato que os levou ao exílio em 1939, tendo vivido os tempos do fim da Guerra Civil Espanhola na Holanda e depois se fixando na França, onde completou seus estudos de filosofia, incluindo o doutoramento. Participou da Resistência Francesa na Segunda Guerra, tendo sido preso e enviado para os campos de concentração de Auxerre e Buchenwald (1943-45). Foi tradutor e jornalista e estreou na literatura com o livro A longa viagem. Por muitos anos foi ativista político na clandestinidade. Embora natural da Espanha, a maioria de seus livros foram escritos em francês. Entre 1988 e 1991, foi Ministro da Cultura da Espanha no governo do socialista de Felipe González.

Neste Vinte anos e um dia, escrito em língua espanhola, os acontecimentos referem à Guerra Civil e tem como ponto de partida um rito expiatório que o dono de terras e homem do regime de Franco faz cumprir anualmente, em 18 de julho, rememorando a morte de seu irmão José Maria Avendaño que fora assassinado pelos campesinos da fazenda (quinta) em sua revolta nos começos da guerra civil, em 1936.

A partir desta história-base do assassinato, que se repete na voz de inúmeros narradores ao longo do enredo do romance, a cada vez se acrescentando detalhes e novas informações, particularmente a voz de Saturnina, a velha empregada que nasceu, viveu e serviu os Avendaño a vida toda. Ela foi a grande informante da personagem Michael Leidson, o historiador norte-americano que se dirige a Quismondo (na região de Toledo) para assistir à última representação da cerimônia, que se daria a 18 de julho de 1956 (vinte anos depois do ocorrido). Mais tarde retorno à Saturnina e ao papel que exerce na estrutura do romance.

O entrecruzamento dos fatos e os encontros das diferentes personagens desvelam também suas diferentes posições em relação à guerra civil, e ao regime franquista que persiste e cuja polícia política continua a perseguir opositores e, principalmente, membros do Partido Comunista Espanhol, banido da vida política, mas presente em sua clandestinidade, com seu comitê central em Paris ou Praga, donde recebem os militantes as orientações políticas.

Com estas cerimônias, queria o proprietário e “pater família” José Manoel Avendaño inculcar nos camponeses e nos empregados da fazenda a culpa eterna e de classe por terem se revoltado e terem matado seu irmão, na verdade o único membro da família que era liberal e mais próximo dos republicanos do que imaginavam os revoltados

Com efeito, todos os anos, depois da guerra civil, a família – a viúva, os irmãos do defunto – organizava uma comemoração no próprio dia 18 de julho. Não apenas uma missa ou coisa do gênero, não, uma verdadeira cerimónia expiatória, teatral. Os camponeses da herdade tornavam a repetir aquele assassinato, a fingir que o repetiam, claro. Tornavam a chegar em tropel, armados com espingardas, para matar outra vez, de uma forma ritual e simbólica, o dono da propriedade. (…) eram imersos todos os anos naquela memória colectiva, culpabilizados por ela. Não tinham sido os assassinos de 1936, mas a cerimónia tornava-os de certa forma cúmplices daquela morte, obrigando-os a assumi-la, a torna-la de novo presente, activa.

A família, no entanto, havia decidido: esta seria a última cerimônia. Na véspera recebem o recado de que os campesinos se negam à representação. E então, diferentemente dos anos anteriores, não haveria a encenação dramática dos acontecimentos tão longínquos tanto para os campesinos quanto para os filhos do assassinado, Lorenzo e Isabel. Desta feita, a cerimônia seria apenas religiosa, com o translado dos restos mortais de dois falecidos de Quismodo: José Maria e Chema, El Refilón, líder da insurreição dos campesinos, falecido no presídio de Burgos. A pretensão era deixar os dois na mesma tumba, representando os dois lados da mesma “nossa guerra”. Para que conversassem pela eternidade (obviamente, uma remessa à necessária pacificação do país dividido pela guerra civil).

Para a cerimônia comparecem inúmeros personagens: a família toda – José Manuel, o chefe da clã e homem do regime; a viúva Mercedes Pombo, Raquel a fiel escudeira de Mercedes e importante personagem do casamento de Mercedes e Josemari; os filhos gêmeos Lorenzo e Isabel; o convidado norte-americano Leidson; Benales, o bibliotecário da herdade; o comissário da polícia política, Dom Roberto Sabuesa, além de toda a população de Quismondo. Como em todos os anos, depois das cerimônias, seguia-se um almoço oferecido a todos os presentes.

Mas há outro elemento que acompanha todo o enredo. Trata-se da relação amorosa entre Mercedes e Josemari. Quando ela anunciou a seu confessor o futuro casamento, foi submetida a uma intenção preparação moral e teológica, fundamentada essencialmente no estudo dos tratados agostinianos mais diretamente relacionados com as questões do casamento cristão: De bono conjugali e De conjugiis adulterinis.

Mercedes ouvia as lições mas não tinha coragem de perguntar ao confessor a que remetiam “o uso bestial do casamento” ou o que fosse “o desejo voluptuoso”. Coube a José Maria, o noivo, encontrar saídas para com tato explicar-lhe a concupiscência e jogos amorosos possíveis durante o noivado, já que havia um “contrato de casamento” entre ambos:

De modo que, meu amor, prosseguia José Maria, entregando-me o teu corpo e cada um dos seus orifícios, excepto o da procriação, não só cumpres com uma das obrigações do pacto matrimonial, que constitui apenas um pecado venial – e de que além do mais gostamos –, como, e di-lo taxativamente o tratado de Santo Agostinho, me permites fugir do pecado mortal da fornicação ou do adultério, ao evitar ter de procurar o prazer com outras mulheres, quer sejam casadas infiéis ou simples meretrizes.

Há, portanto, um namoro e noivado fora do seu tempo, afinal estamos nos anos 1930! Depois do casamento, na viagem de núpcias, os jogos amorosos permanecem os mesmos, sem desvirginamento. Somente numa manhã, em Nápoles, enquanto José Maria tem um encontro com Benedeto Croce, Mercedes se dirige ao museu Capodimonte e lá se extasia diante de uma obra de Artemísia Gentileschi (1593-1653): a cena de Judit e Holofernes, episódio bíblico tema frequente de muitos pintores da Renascença. Olhando para Judit e seus seios quase inteiramente à mostra, observando a criada que acompanha a degola de Holofernes, decide-se Mercedes a entregar-se a seu marido José Maria, razão por que, de retorno ao hotel, desistem ambos do almoço e saem para o quarto. Nele está uma empregada do hotel, Luciana, realizando suas tarefas. Enquanto José Maria vai ao banheiro, Mercedes convence-a a esconder atrás das cortinas e a tudo assistir e depois tomar parte ativa nos jogos amorosos (abre-se aqui o voyeurismo ou mesmo a “ménage à trois” que acompanhará a vida sexual do casal Mercedes/Josemar). Serão vários os parceiros, inclusive um fotógrafo (Timoty) com quem se encontram agora já em Biarritz. A parceira que permanecerá junto à Mercedes, mesmo depois de sua viuvez, será Raquel, uma empregada da Herdade em Quismondo.

Assim, um duplo se faz presente em toda a obra: a morte de Josemari e a morte de Holofernes, num triângulo apontado pela pintura de Gentileschi! A primeira será sempre rememorada para que os empregados se reconheçam como culpados; a segunda será o modelo de uma vida de relações sexuais triangulares, mas com algo muito específico: Holofernes é morto depois de desvirginar Judit; Josemari é morto ainda na “viagem de núpcias” tendo tido poucos encontros sexuais reunindo Mercedes, Raquel e ele. Há aqui um entrecruzamento entre sexo e morte.

O romance remete a três tempos distintos: aquele da guerra civil (1936, ano da morte de Josemari e da revolta dos campesinos da herdade); aquele do regime franquista em seu pleno vigor e da perseguição aos “vermelhos” (1956) e por fim, quase trinta anos depois, 1985, no encontro entre dois personagens essenciais da trama: Leidson, o historiador norte-americano e Federico Sánchez, líder do partido comunista espanhol com atividade clandestina intensa na Espanha (não estava no exílio).

Estruturalmente, o romance circula nos dois primeiros tempos e os episódios envolvem ora uns, ora outros dos personagens. Por exemplo, Dom Roberto Sabuesa, da polícia política, aparece no romance não só para mostrar a repressão política do regime, mas também para dar a ver a existência da esquerda que ele persegue com afinco: vai à herdade com a desculpa de participar da cerimônia, mas de fato para tentar obter de alguma forma que Lorenzo, estudante que havia participado de manifestações em fevereiro daquele ano, indicações para chegar ao “cabecilha” da manifestação, segundo sua percepção, Federico Sánchez!

Voltando a Saturnina, cuja voz é a que se ouve mais uma vez no último capítulo narrando os acontecimentos de 1936, permanece sempre na herdade, mantém sua história, de tudo sabe: acompanhou tudo, desde o fundador, o Índio que se torna dono da herdade de uma forma um tanto obscura – talvez num jogo de pôquer – e também dono da mulher do perdedor, seu primo; segue com os três filhos – José Manoel, José Ignacio e José Maria; mantém-se como fiel empregada durante todo o período da viuvez de Mercedes até que esta vende a propriedade em função do acontecimento trágico do suicídio de seus filhos gêmeos, Isabel e Lorenzo, apaixonados um pelo outro e que passam a viver como marido e mulher até o suicídio. Neste sentido, Satur representará a permanência, a memória, a guardadora das histórias. Por outro lado, há o movimento constante, o ir e vir das personagens, as lembranças (que incluem para o historiador a primeira vez que ouve do toureiro Domingo Dominguin a história da morte de Josemari e das cerimônias anuais, comparecendo à última delas). No almoço sempre lembrado pelo historiador estava também Hemingway, escritor da resistência no regime franquista. Aparece no romance outro escritor: Federico Garcia Lorca, que num dos encontros lê a obra que acabara de compor: A casa de Bernarda Alba.

Estas referências cruzadas – note-se que a questão de virgindade é o tema de Lorca na obra citada, mas é também o tema de Judit e Holofernes, e de Mercedes e Josemari  – que vão aparecendo no enredo, como referências a inúmeros pensadores, sobressaindo-se Ortega y Gasset.

Cruza toda a história o segredo de quem é o Narrador que inúmeras vezes se dirige ao leitor, atando com ele laços de cumplicidade, isto é, o excedente de visão de que dispõe como narrador e que compartilha com o leitor, mas não com as personagens. Tomemos um exemplo quando o Narrador, este “desconhecido” se refere ao fato de não poder recuperar qual fora a conversa entre Josemari e Benedetto Croce:

Por esta altura, com efeito, não é possível, e com os elementos que temos à mão, suprir, com o recurso a algum artifício narrativo, aquela falta de atenção de Mercedes: temos de nos submeter ao funesto mas imperativo contexto da situação.

É que estamos a referir-nos às peripécias daquele dia napolitano a partir das lembranças de Mercedes, privilegiadas, sem dúvida, porque a sua memória é única, insubstituível, uma vez que José Maria morreu. Nestas circunstâncias, desaparecido ele, amnésica ela – pela culpável distração durante aquele almoço napolitano -, temos que renunciar ao conteúdo da discussão entre Avendaño e Croce, e deixar que mergulhe no esquecimento, por muito interessante que pudesse ser. 

Somente depois de metade da narrativa, começa o leitor a desconfiar que o narrador é Federico Sánchez, o líder comunista. E no final do romance, desvela-se este como o narrador efetivo de toda a história que resolveu escrever precisamente quando, em visita a um museu está frente a outro quadro que retrata a degolação de Holofernes!

Uma nota necessária: o título “Vinte anos e um dia”, ao mesmo tempo que faz referência aos vinte anos de cerimônias trágicas na herdade dos Avendaño, remete às condenações judiciais dos opositores ao regime franquista, particularmente os comunistas: eram sempre condenados a 20 anos e um dia de reclusão!

Não conhecendo ainda informações biográficas do autor, imaginei que Jorge Semprún fosse justamente Federico Sánchez! E isto se confirmou numa consulta a seus dados biográficos: depois de salvo de Buchenwald, dedicou-se à intensa atividade clandestina na Espanha, com o codinome ora de Augustín Larrea, ora de Federico Sánchez. Fecha-se, assim, o círculo: o romance tem muito de autobiográfico, não perdendo, certamente, todo o jogo imaginativo que o cria, embora tenha dito Federico em seu último encontro com Leidson:

– Agora compreenderás – diz a Leidson – por que me é tão difícil, apesar do empenho, escrever romances que sejam de facto, romances; porque a cada passo, a cada página, deparo com a realidade de minha própria vida, da minha experiência pessoal, da minha memória. Para que inventar, quando tivemos uma vida tão romanesca e na qual há matéria narrativa infinita? Ora bem, o romance autêntico é um ato de criação, um universo falso que ilumina, sustém e até pode modificar a realidade. Seria preciso poder dizer como Boris Vian: neste livro, tudo é verdade, porque tudo foi inventado. Eu também gostaria de inventar tudo…

Eis aí uma chave: o autor/narrador nos diz que há muita realidade em seu romance, que se viveu “aquela bonita esperança, mesmo derrotada” de tornar possível um mundo em que inexistissem aqueles que “ao nascer já trazem nas costas o muro dos executados”. Ou dos vencidos…

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.