Vamos de mãos dadas? (Por Mara Emília Gomes Gonçalves)

Este é o terceiro começo. 

E o terceiro foi aquele que a Teresa deu a mão, lembram? Não vou dizer de sensações: barriga fria, mãos suadas, dedos errando teclas, ideias secas. Medo de não corresponder.

Essa sensação de escrever a pedido não é nova, mas nunca antes na história desta mulher negra houve tanta admiração. Entendam que escrever sobre educação para um educador do tamanho do Paulo Freire para as Letras, ou para o ensino de língua portuguesa é bem difícil. Tão difícil que usei essa expressão, e não: – é foda! (Cadê o respeito, menina?)

E é por aqui que vou iniciar minha primeira reflexão.  Engana-se quem pensa que a eficiência em falar/escrever de forma erudita será a tônica do texto, essa manipulação da língua, subordinando-a as minhas escolhas, necessidades e objetivos é assunto para parâmetros escolares das aulas de língua portuguesa. Eu gosto mesmo é de emoção.

Meu objetivo aqui é bem outro. E não poderia ser diferente, corro os olhos pelas telas do celular, os jornais e notícias da internet dão conta de uma ação violenta da polícia contra os professores do município de São Paulo que estariam na Assembleia Legislativa reivindicando o direito de se aposentar, as imagens, fotos e vídeos, de professores feridos, tem o poder de me deixar perplexa.

Durante essa semana tive acesso a um vídeo clipe muito interessante sobre a intervenção militar no Rio, a letra da música é de Caioco Zulu e representa um encontro de um morador da favela e um militar, detalhe realístico: os dois negros, e uma frase faz a legenda do vídeo: Enquanto os poderosos decidem do alto de seus gabinetes, quem tá na linha de frente se vê refletido no outro. Que caminhos levaram até ali? (Quem quiser conferir o clipe está em:  https://www.youtube.com/watch?v=nqd_AiHDM28.)

Um fenômeno interessante esse de ver trabalhadores sendo algozes de seus iguais, mas acreditem os excessos são bem mais comuns do que os casos que são trazidos ao nosso conhecimento vez ou outra.

Temos casos de funcionários maltratando seus inferiores na hierarquia empresarial, ou trabalhadores que exploram terceirizados, assédio moral contra mulheres ou homossexuais por colegas de trabalho, exclusão de portadores de necessidades especiais ou deficientes, nem vou falar de violência doméstica e maus tratos as crianças, porque aí teríamos assunto para meses a fio.

É violência ao gosto do freguês, à moda brasileira. Tudo bem escondidinho, bem guardadinho por políticas públicas de repressão e de manutenção da ordem (?) que agrada as elites e ao mercado econômico. Sempre tem relação.

É lamentável ver imagens de crianças uniformizadas tendo suas mochilas revistadas ao ir para a escola durante o período de intervenção. Não nos acostumemos com essas violências. Ao praticar tal ação, o Estado impõe sobre aquelas crianças em formação um estigma, que todos sabemos qual é, embora ainda coberto pela capa da invisibilidade. (Dúvidas? inbox por favor!)

A própria invisibilidade é uma violência simbólica. Quando, você e eu, fingimos não ver o que se passa com crianças e jovens, sobretudo os pobres e negros, e ignoramos os reflexos disso na vida deles, e, em especial, na escola e na sua aprendizagem, estamos sendo coniventes com a violência e com o que isso representa para o gatilho para a criminalidade.

Ao assumir uma postura de dar aula, ou organizar o meu currículo escolar de forma burocrática e meramente legal, sem incluir dados como os do relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens, de 2016 que aponta que todo ano, 23.100 jovens negros de 15 a 29 anos são assassinados. (Ver em http://www.bbc.com/portuguese/ro-36461295), ou ainda as estatísticas constantes do Índice de vulnerabilidade juvenil à violência 2017: desigualdade racial, da Unesco que entre outros apresenta um taxa de mortalidade de jovens negras chegando a 13,8 a mais que jovens brancas por 100 mil no meu estado de origem que é o  estado de Goiás, negamos aos nossos alunos o direito de conhecer os caminhos tortuosos por onde eles terão que passar, ou mesmo de suas trajetórias e histórias. Quando negamos a esses alunos, diante desses dados dramáticos, o direito a representação seja na música, na dança, na literatura, no cinema, nas artes, nas ciências e nos sonhos negamos a eles a possibilidade de ter o que esperar de seu futuro. E o sonho, que posso chamar de esperança, é o que junto com amor e afeto é o que mais nos humaniza.

Não estou, e nem pretendo assumir para minha classe profissional a responsabilidade coletiva ou individual do caos na segurança pública, tampouco no genocídio da população negra, mas é bom lembrar aos professores que eles têm acesso e podem facilitar a entrada de várias crianças e jovens ao conhecimento, libertando-os de suas amarras e tragédias pessoais e torna-os capazes de se verem refletidos nos outros.  É claro que para isso estes profissionais, assim como os policiais, deveriam ter melhores condições de trabalho e uma concepção de respeito à vida humana na sua integralidade. Permitam-me trazer um trecho de um hino:

“Quatro minutos se passaram e ninguém viu

O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil

Talvez o mano que trampa de baixo de um carro sujo de óleo

Que enquadra o carro forte na febre com sangue nos olhos

O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol

Ou o que vende chocolate de farol em farol

Talvez o cara que defende o pobre no tribunal

Ou que procura vida nova na condicional

Alguém num quarto de madeira lendo à luz de vela

Ouvindo um rádio velho no fundo de uma cela

Ou da família real de negro como eu sou

Um príncipe guerreiro que defende o gol”

Racionais Mc’s, Capítulo 4, Versículo 3. 

 

Esse trecho escolhido por si só já é foda! Ops, digo: é muito bem elaborado e trás uma reflexão urgente e necessária. Ontem, quis o destino que escrevesse sobre violência, comecei o texto fazendo uma analogia à cantiga de roda de Teresinha de Jesus, e agora, noite, ao terminar o texto soube do assassinato cruel da jovem vereadora carioca Marielle Franco (PSOL-RJ), negra, mãe, militante dos direitos humanos e do povo preto e pobre. E eu pergunto: – Quantos de nós precisaremos morrer ainda?

Termino usando a mesma cantiga, pedindo que alguém nos dê a mão: família, escola e estado. Quando a gente cair que alguém nos levante. Em homenagem a minha irmã preta, a mais bonita, Marielle Franco.

 

Da laranja, quero um gomo

Do limão, quero um pedaço

Da morena mais bonita

Quero um beijo e um abraço.

Marielle Franco PRESENTE!

 

Mara Emília Gomes Gonçalves escreve neste Blog às quintas-feiras.

Acompanhe também em www.leituraspossiveis.com

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

follow me