Valsa para Bruno Stein, de Charles Kiefer

Raramente um romance tem como herói um idoso. Obviamente, há Úrsula Buendia desde sempre com 100 anos; há Ana Terra que envelhece; há Policarpo Quaresma. Mas aqui temos uma personagem que domina toda a história, inclusive um triângulo amoroso que se desvela já na segunda e terceira partes do romance. O tema que percorrerá toda a história é a mudança de costumes, de comportamentos com a entrada da televisão para dentro dos lares, mesmo este que distava 6 kms da cidade. O embate será entre um Bruno Stein religioso, leitor da Bíblia e as netas que veem a novela, que querem silêncio na casa quando começam seus programas…

Bruno Stein desde moço compreendeu que “somente os proprietários são livres”, e por isso economizou o que pode, comprou terras perto da vila de Pau d’Arco e se estabeleceu com uma olaria. Fabricava tijolos, deu duro a vida toda.

O enredo começa com Gabriel, um trabalhador rural de empreitada, que caminha para a Olaria na esperança de conseguir um emprego. É contratado por Bruno Stein para palear o barro, serviço pesado, enquanto Erandi cortava os tijolos e Mário carregava carrinhos e mais carrinhos do produto para estocagem e aguardo da queima. Estes os trabalhadores da olaria Stein: Gabriel, Erandi e Mário.

O velho Stein ajuda, mas na velhice lhe aparece outro dom: começou a fazer esculturas. Dedica-se a elas. Ao longo do tempo do romance [do ponto de vista da história do Brasil, estaríamos no governo Figueiredo, no fim da ditadura militar] esteve fazendo esculturas de todos os membros de sua família: a mulher Olga, o filho Luís, a nora Valéria, e as netas Verônica, Sandra, Luísa e Eunice. Estas últimas três praticamente desaparecem ao longo do enredo. No trabalho de escultura, não consegue fixar o olhar e a alma de Verônica no barro!

Seu filho Luís não conseguiu introduzir qualquer modernização no fabrico de tijolos, e desistiu de assumir o comando da olaria: tornou-se caminhoneiro, ausentando-se frequentemente de casa. Valéria, sua mulher, ainda na força da maturidade, sente a indiferença do marido. Masturba-se com frequência… Apaixona-se pelo sogro, um amor proibido e perigoso.

Bruno Stein se sente atraído pela nora. E busca na Bíblia e na sua leitura alívio para o que chama de sua “lascívia”. Sente ainda desejos, mas a mulher Olga há muito desistiu de qualquer relação sexual.

Um dia, Bruno abre a porta do banheiro. E Valéria tomava banho, nua sob a água do chuveiro. Ele não resiste a olhar, fica um tempo vendo aquele corpo iluminado pelas águas e pelo sabão. Espumas e águas. Fecha a porta. Mortifica-se. Controla-se.

Tenta trabalhar em seu atelier, mas não consegue. Não vê “alma” nas esculturas de seus familiares. Destrói tudo. Mas no atelier se refugia: que faz ele? A curiosidade levou Valéria a abrir a porta quando o viu trabalhando na olaria. E descobre: ele está emoldurando em barro a própria Valéria. Desde então sabe: Bruno a ama como ela o ama. Grandes páginas do romance são escritas sobre a resistência religiosa, sobre o medo do pecado, sobre a idade de não mais se apaixonar…

Enquanto num nível da história se desenrola este vai-não-vai entre Bruno e Valéria, Verônica, a neta mais velha, comporta-se de modo “moderno” para um reacionário como seu avô. Visita o namorado, Carlos, um bancário da cidade. Frequenta seu quarto. Negaça mas se entrega. Depois disso, nos próximos encontros, Carlos já se torna afoito, não mais as carícias, os dedos, o fogo. Valéria

Aprenderia mais tarde, quando já não mais o amasse, ser impossível aprisionar um homem apenas com o anel do fogo do sexo, porque depois de saciado – e ainda que retorne milhões de vezes – é como um animal: desdenha as sobras e adormece.

Valéria e as irmãs veem novelas; veem a vida nas grandes cidades, as luzes. O horário sagrado da novela é também o horário do silêncio na casa: só falam as personagens enquadradas no écran, para o qual se dirigem olhos e ouvidos. Bruno reage. Não gosta da TV e sua modernidade. Não gosta sobretudo dos maus exemplos, de gente que casa e se descasa, de gente que se beija na frente de todos. Tudo uma vergonha para um leitor da Bíblia e frequentador do culto dominical.

No outro plano, aquele dos trabalhadores, Gabriel consegue ir-se impondo e vai-se tornando amigo dos companheiros. Um dia ajuda Mário a levar para casa seu pai, Arno Wolff, que apareceu na olaria bêbado. Na casa, vê a irmã de Mário, Neli. É com ela que sonhara a partir daí. Como ele não sabe ler, ela se oferece para lhe ensinar aos domingos… a proximidade está estabelecida. Tanto Mário quanto Erandi sabem o que eles ainda não sabem: vão namorar.

No que pode ser chamado de “conflito geracional”, precisamente Valéria, a neta cuja alma Bruno não conseguiu fixar em sua escultura, decide abandonar o namorado e a vidinha marrenta e mansa. Não quer para si o futuro da dona de casa frustrada. Avisa a família: vai para Porto Alegre estudar. E vai mesmo.

Bruno, que não gosta da televisão, às vezes, foge da casa:

A noite, de temperatura agradável, convidava ao passeio. Andou um pouco, detendo-se aqui e ali, fazendo hora, à espera de que passasse o horário das novelas, período em que as netas mantinham a televisão em volume insuportável. Noite após noite aquilo se repetia: casais se separando, casando outra vez, tornando a se separar, num carrossel de desregramentos, maus costumes, exemplo pernicioso para a juventude. Não entendia por que a censura permitia tais aberrações. Fosse pouco o tempo que as mulheres perdiam vendo aquelas bobagens, ainda comentavam capítulos e cenas no outro dia, previam novos acontecimentos, como se os personagens fizessem parte de suas vidas, como se fossem vizinhos de porta ou parentes. E ele obrigado a ouvir tudo, ou a fugir da mesa, comendo em horários diferentes. O deus de écran, o bezerro do século vinte, a desviar o povo do caminho verdadeiro, a destruir as bases morais da família.


Este trecho das reflexões de Bruno mostram como ele encarava a vida, que valores defendia. Ao mesmo tempo em que se debatia com o desejo pelo corpo da nora. Por fim, quando o telhado da olaria, numa queima de tijolos, pega fogo, ele entra varanda adentro, onde estava Valéria, a única que acordara com o barulho. Ela estava nua sob a camisola. Eles nem precisaram se falar. Entraram para o escritório do velho, e no sofá realizam o que vinham adiando há tanto tempo.

Depois do ato, Valéria deixou o gabinete silenciosa. E Bruno teria dormido, não fosse o latido dos cães que anunciavam a presença de alguém: era Arno Wolff bêbado mais uma vez. Bruno sai para noite. E ouve num assobio a valsa que seu pai, no violino, lhe tocava em sonho. Arrepia-se, confuso e culpado. Mas descobre: é o bêbado que grita “Uma valsa para Bruno Stein” e segue assobiando-a.

Bruno volta para dentro de casa, sem sono, passa pela sala, vê a televisão e resoluto dirige-se a ela e aperta o botão. Transmitiam um baile de carnaval.

Devia desligar o maldito televisor, destruí-lo – como fizera Deus com Sodoma e Gomorra – mas não foi capaz sequer de abandonar o sofá em que se deixava derrear, magnetizado pela sensualidade dos requebros das mulheres, pelo movimento incessante dos corpos molhados, desculpando-se com a alegação íntima de que talvez pudesse ver a neta divertindo-se no meio do salão.

Sem o saber, Bruno Stein acabara de acrescentar mais um prazer à sua já longa e atribulada existência.

Este final do romance simbolicamente não só representa a derrota do que pensava Bruno Stein, a vida e costumes que defendeu, os valores morais que se esvaíam quando o desejo aparece. Representa também uma vida outra, aquela que ele nunca teve e que a paixão de velho lhe trouxe. Também o prazer faz parte da vida… e a vida pode ser mais leve do que aquela que prega o Deus vingador da Bíblia.

Referência.

Charles Kiefer. Valsa pra Bruno Stein. São Paulo : Círculo do Livro, s/data.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.