Vai passar ?

Nunca pulei ou brinquei carnaval, não me sinto melhor ou pior por isso, e um fato …ainda assim não sou indiferente à festividade, uma vez que é das maiores e mais democráticas, uma manifestação cultural que o povo brasileiro deu seus temperos e destemperos: alegria, cores, diversidade, nuances regionais, participação, ritmos, entre outras. Um significado para cada qual.

Cabem mulheres seminuas ao lado de mulheres cobertas de volumosas saias rodadas que giram e giram na passarela do samba, cabem pessoas rezando ou orando em transes religiosos, pessoas anônimas lado a lado com famosos que empurram de dentro e fora dos cordões que segregam os grupos, cabem escolas que trazem enredos fora dos currículos, parâmetros e narrativas institucionais, cabe trabalho pesado e descanso… Em nome do carnaval.

Esse texto não é sobre mim, mas o eu lírico é muito mentiroso sempre, na verdade é um fingidor – palavra melhor escolhida pelo poeta português, que foi capaz de superar Camões, Fernando Pessoa. É sobre algo que ainda não defini. Também não é sobre o carnaval.

Embora eu quisesse muito falar de algo que até o momento não dividia o Brasil. Os que não gostavam e torciam os narizes para os excessos, criavam suas próprias rotinas de aproveitar o feriado: retiros, acampamentos, festivais em igrejas e templos e pronto. Cada um com seu cada qual. Era um tempo de acomodação de significados.

Acomodar deu lugar ao incomodo, que por sua vez – ou ordem presidencial, ascendeu à intolerância bisbilhoteira e, assim, talvez o mote textual de hoje seja mesmo sobre a incapacidade de ser verdadeiro. Outro poeta, agora mineiro. Não pensem que é tarefa fácil escrever sobre algo que nos revela, quase sempre escrevo sobre temas genéricos a partir de uma ótica mais intimista, tem sempre muito de mim, acreditem é o meu raso; É que mergulhos ou imersões para dentro são altamente não recomendados atualmente.  E, ainda que fosse outro tempo, é mesmo assim que somos uma espécie de quebra-cabeça de muitos milhares de pecinhas, que ao final resultam em uma imagem periférica que se quer dar a ver.

Enxergar é outra coisa. Vai passar.

Cá estamos nós no sexto ou sétimo parágrafo e só falei de mim, reforçando e negando o que disse. Apenas um jogo elocucional que busquei inspiração nos movimentos de flerte: mostra-esconde.

Existe uma pergunta que requer resposta, sempre haverá. Algumas não. Outras pedem o silêncio, demorado. Muitas vezes o não dizer é resignação. Resignar é uma palavra interessante. Já pensaram? Poderíamos pensar em dar novo significado, mas resignar quer dizer conformar-se sem se opor; não apresentar resistência nem oposição; aceitar sem questionar; acatar. Então, teremos pela formação das palavras no português que o prefixo re possibilita as constituições de novas palavras a partir das ideias de repetição, reforço ou retrocesso.

Durante um tempo o carnaval era resignado em mim no sentido literal. Vai passar.

E confesso que os tambores e repiques, fossem do Olodum ou das escolas que passavam pela Avenida Marquês de Sapucaí, alavancavam o pulsar do coração, e era só isso. Com o tempo, outros amores, resistência e resiliência foram dando mais força para a vibração do carnaval, que afinal não era só meu.

A ideia de não deixar desencantar a alegria, de mesmo na dor deixar sorrir quem quer sorrir, sambar quem assim desejar… E viver, e amar… Dentro de suas múltiplas possibilidades. Não era o carnaval do pecado e da luxúria, mas poderia ser também bem como podia ser o carnaval da única alegria da gente humilde que se fantasia de ser visto. Mais forte ainda um recorte do tempo e espaço que nos faria, com o tempo, mais tolerantes, parecia o certo que de tanto repetir a paz, e a aceitação se tornasse caminho natural.  Na cadência de uma pulsação que vem do coração, diferente de marchar.

Outro caminho se viabilizou, e a resignação é retrocesso, marcado com botas de chumbo, com temor e grosseria. Medo de que? É a pergunta.

Só sabe a resposta quem sabe ser inteiro. Em meio à dor, a prisão e uma liberdade vigiada, está o aceno generoso de quem sabe ressignificar o amor, assim despido de palavras, eis que emerge um aceno para o amanhã da esperança que virá, depois das cinzas, das ressacas: Vai passar!

Vai passar nessa avenida um samba popular
Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar
Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais
Que aqui sangraram pelos nossos pés
Que aqui sambaram nossos ancestrais
Num tempo, página infeliz da nossa história
Passagem desbotada na memória
Das nossas novas gerações
Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída
Sem perceber que era subtraída
Em tenebrosas transações
Seus filhos, erravam cegos pelo continente
Levavam pedras feito penitentes
Erguendo estranhas catedrais
E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz
Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval
O carnaval, o carnaval
Vai passar

(trecho de “VAI PASSAR” De Chico Buarque e Francis Hime)

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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