A redação do aluno (desvios ortográficos foram aqui desconsiderados em função do foco da análise) foi escrita assim:
“Eu acordei e aí eu fui escovar os dentes. Depois fui tomar café. E depois eu arrumei a minha cama. Aí eu fui jogar bolinha e depois eu fui jogar bola. Depois eu andei de bicicleta. Aí eu fui almoçar e depois fui assistir televisão. Depois eu tomei banho e fui fazer tarefa. Depois eu vim na escola.”
A primeira manifestação, mais explícita, que esse texto nos dá é a noção de tempo. De um certo tipo de tempo: cronológico. Ao mesmo tempo, se olharmos para a sequência de ações que o expõe… Que ações foram efetuadas pelo menino? Acordar… escovar os dentes… tomar café… arrumar a cama… jogar bolinha… jogar bola… andar de bicicleta… almoçar… assistir televisão… tomar banho… fazer as tarefas… vir para a escola.
Minhas primeiras observações dizem respeito à área de Língua Portuguesa. Bem… se eu tivesse escrito apenas escovar… eu teria dito qual a ação praticada? Não, não teria dito a ação. Portanto, a noção de verbo está errada. O que é a noção de verbo? Verbo é a palavra que diz a ação praticada (segundo a gramática). Se eu ocultasse as palavras complementares (os dentes) eu invalidaria a definição de verbo. Para validar a definição de verbo eu vou em busca do complemento. Assim, de forma questionadora, eu posso introduzir ao aprendizado do que é complemento nominal/verbal. Se eu quiser introduzir o aprendizado de objeto direto, objeto indireto, verbos transitivos, intransitivos… eu vou procedendo de forma questionadora face ao texto. Mais adiante, se eu ocultar os complementos, perco as diferenças entre, por exemplo, tomar café/tomar banho. Há diferenças entre estes dois “tomar”. Portanto, há situações em que preciso de várias palavras para explicitar a ação. Introduzir à discussão o seguinte: se eu disser, conforme a gramática, que “o verbo é a palavra que indica a ação praticada”, eu estou fazendo uso de uma abstração. Devo, então, deixar claro que esta abstração é referente a um determinado tipo de verbo. Não se pode generalizar, sem discutirmos a existência de complementos.
Em seguida, nosso aprendizado vai rumo aos tipos de verbos. Verbo transitivo: é aquele que exige complementos para entendermos seu sentido. Exemplos? Volto ao texto. Percebo como e de que jeito o próprio texto exigiu de mim complementos a certos verbos: tomar banho… tomar café. Para explicitar ações num texto fui em busca da definição de verbo. Depois, para compreender melhor o verbo precisei de vivência do texto, precisei de complementação. Como esse movimento eu fui chegando a uma outra definição. O ponto de partida foi o texto, não foi a definição gramatical. Fui a esta depois de ter listado as ações praticadas…
O menino contou o dia dele. Ele usou 12 verbos, 12 ações, antecedidos todos de “e depois” ou “aí”. Não são todos iguais, nós sabemos. Podemos, então, estudar a partir das compreensões que este texto permite. Como classificar tais ações? Isso requer critérios, claro. Todo raciocínio classificatório demanda critérios. Por exemplo, teríamos como critério o obrigatório e o não-obrigatório. Critério “A” e critério “B”. O primeiro verbo (ação) que o texto expressa é acordar. Sob qual grupo colocar “acordar”? Critério ”A”? Acordar seria então obrigatório. É isso? Concordamos com esta obrigatoriedade? Acordar é obrigatório (e é classificável) em relação a adormecer. Podemos ir por aí? Dependendo das discussões em sala de aula, essa direção pode nos conduzir a: o que sabemos em relação ao sono? O que é sono? Neste nosso critério, tomado para discussão, fomos levados, precisamos pensar interdisciplinarmente.
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(AN) – Me permite, Wanderley, uma “intromissão” nesta reflexão. Você trata o texto “extraindo” dele algumas categorias (classificações) pelas quais perpassou a vivência do menino. Através dessa abordagem, vamos compreendendo como foi que o garoto diversificou palavras, como foi que ele ordenou verbos e exprimiu pensamentos escritos. Pergunto: ao proceder assim temos aí um recurso didático para a compreensão? Facilitamos deste modo nosso entendimento da relação menino-realidade. É isso? Palavras, verbos, conjugações, tempos, pensamentos transcodificados… Tudo isso constitui uma “realidade plural”. Realidade interpretada pelo menino, através de um texto (redação). A discussão que decorre deste exemplo facilita novas (e coletivas) intepretações interdisciplinares? Vai por aí? Tentando (aproxi8mativamente) uma classificação, o Wanderley vai construindo um recurso didático para compreendermos não apenas o texto em si, mas compreendendo o texto alcançamos uma dimensão maior. Qual dimensão? Aquela que relaciona a realidade o aluno a redação, como parte de um campo de conhecimento e a situação de sala de aula. Se você caminha por este rumo, pensei eu, a classe toda deste menino se beneficia da redação dele. Por quê? Um passo importante para a compreensão científica é a classificação. Através da classificação pôde o Ser Humano compreender. Simultaneamente um grande número de fenômenos diferentes, interconectados em uma mesma realidade. A classificação foi uma forma de lidar com a simultaneidade das diferenças entre fatores (ou entre fenômenos). Foi um avanço isso, a seu tempo. Compreender as diferenças, simultaneamente, como partes ativas e diferenciadas de uma totalidade foi um avanço no campo epistemológico. E isso foi permitido pelo procedimento classificatório. Em seguida, conforme discutiu conosco o Porf. Arguello, o tratamento científico analítico é complementado. A este tratamento se soma uma abordagem transdisciplinar. Bem, Wanderley, é por aí? Me corrija aí, segundo os rumos de sua reflexão,. Através do trabalho no campo da linguagem, você nos conduz a uma compreensão multidisciplinar. Prosseguimos?
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Ainda seguindo nosso “estudo classificatório” que, como Adrino lembrou, é um exercício de refletir-compreender, podemos, na sequência, refletir sobre o que se segue. Naquele texto o menino escreveu escovar os dentes. É classificável em A ou em B? É de obrigatoriedade diferente daquela aplicada a acordar? Escovar os dentes seria um obrigatório cultural? Há uma outra direção interdisciplinar aí. Pode um índio viver muitos anos sem escovar os dentes e com dentes bons… ele mesmo comento não danifica seus dentes. Brotou aí uma discussão sobre tipos de alimentação, sobre higiene…
Na sequência, a próxima ação a ser classificada tomar café. Seria A ou B? Vocês me dirão que é inevitável. Em outras culturas, como se vê esse inevitável? Este necessário obrigatório (tomar café) é diferente do outro necessário obrigatório (acordar). Vejamos: estamos decidindo, aí, subclasses ou subcritérios dentro das categorias escolhidas. A categoria geral vai sendo submetida e internamente se torna variável. A ciência no século XIX deu bastante ênfase ao raciocínio classificatório. A Linguística, em certo sentido, ainda faz isso. A língua portuguesa, no cotidiano da sala de aula, ainda pensa assim: classes de palavras, tipos de sentenças, tipos de funções sintáticas.
Há um problema se eu permanecer apenas no procedimento classificatório. É limitar os horizontes de pensamento. E limita também a compreensão do fenômeno. Por quê? Porque eu permaneço, o tempo todo, tentando “enfiar” a realidade dentro de meus esquemas classificatórios. Muito embora seja necessário classificar, é ruim perder de vista essa espécie de movimento. Que movimento? Aquele pelo qual 1) eu parto a realidade concreta; 2) escolho critérios para fazer classificações, o que é raciocinar abstratamente (o critério de classificação é abstrato) que me ajudarão a compreender globalmente (e simultaneamente) minha situação e vou enfrentando os problemas tanto na construção dos critérios quanto na capacidade de abstrair; 3) volto sempre à realidade concreta para verificar a aplicabilidade de meus critérios. Vale dizer, parto do concreto, separo, abstraio criando critérios de classificação e com estes volto ao concreto… Minhas abstrações, sem a volta ao concreto, vão ficando cada vez mais abstratas e perdem o cheiro, perdem a cor da realidade. [Nosso exercício de ver as diferenças entre a obrigatoriedade do acordar e do escovar os dentes nos levaram, a partir do concreto, a critérios internos a uma classe dividindo-a… mas se seguir assim, sem abstrações, acabarei tendo um critério para cada ação, ou seja, nada é aprendido!!! Eis a dialética entre abstração/concreto: na pura abstração, perde-se o cheiro de realidade; na pura compulsão do dado concreto, perde-se qualquer compreensão que não seja meramente a repetição do já dado.]
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(CA-Carlos Arguello) Estou pensando aqui, Wanderley, que outros professores podem trabalhar com essa mesma direção que você vai indo. Um professor de biologia, por exemplo. Ele pode “soltar” suas classes de alunos em campo e, com eles, pode fazer análise da diversidade botânica. Pra fazê-lo, eles vão necessitar de critérios, classes e subclasses. Mesmo que esse professor nem diga: “olha, criançada, eu estou trabalhando de forma interdisciplinar”. A apreensão das crianças ocorre de forma transdisciplinar. É uma apreensão “solta”, criativa. Dentro do pensamento dessas crianças ocorrem elaborações criativas e multidisciplinares. O pensamento faz construções. E ele funciona através de apreensões interdisciplinares.
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Gostaria de sublinhar um aspecto. A partir do que o Prof. Arguello comentou, me lembrei de algo. De fato, poderemos trabalhar no mesmo rumo, um professor de biologia e eu, na linguagem. No entanto, este trabalho no mesmo rumo às vezes não favorece a interação interdisciplinar. Por exemplo: já vi gente trabalhando assim, se o prof. de biologia está estudando em campo, classificando, então o professor de língua deveria trazer um texto-leitura que seja sobre o campo. E, mais ainda, (neste caso que vi) a professora de história propunha estudos históricos sobre a questão do campo em relação ao urbano. E mais: a professora de estudos sociais trazia estudos sobre aspectos socioeconômicos do campo. E depois o professor de língua fará com seus alunos uma redação sobre a vida no campo… Além disso, o professor de matemática deveria estudar as medidas e os cálculos aplicáveis ao campo. Penso que isso é um engano. Penso que esta “montagem” curricular não favorece a construção de conhecimento que é, sempre, pluritemática. Penso que o trabalho pedagógico interdisciplinar não significa que todos os docentes adotem um mesmo tema. Me pareceu que a consequência disso foi a seguinte: ficou monótono, ficou aborrecido para a inteligência dos alunos. A integração interdisciplinar ocorre através de processos, através de rumos (como disse o Arguelllo). Tais processos poderá fazer uso de variados temas. A “unitematização” não é uma necessidade prévia à construção do conhecimento de forma interdisciplinar. [E o “tema-gerador” é gerador porque leva a outros temas, não por sua repetição em cada uma das disciplinas; a unitematização não é geração.]
Gostaria de explicitar agora por que é que eu fiz uso de critérios a que chamei de “A” e “B”. Com meus alunos, em situações de ensino, enfrentei realidades complexas. Enfrento fenômenos simultâneos. Como lembrava o Adriano, estabelecer critérios é um facilitador dessa abordagem às realidades complexas. Em sua vida usual, cada criança faz classificações que facilitam sua vida. Brinquedo de noite, brinquedo de noite. Brincadeira para inverno, brincadeira para verão. Amigo para este momento, amigo para outro momento. Há vários critérios que ajudam essas crianças a fazerem suas reflexões. E tudo isso pode ser “puxado” a partir de um texto que ela (criança) produz. Nós, adultos e professores, usamos critérios para viver (com as crianças) a experiência cognitiva face à realidade.
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(CA) Beja você, Wanderley, que curioso. No ensino de ciências, conheço casos em que os meninos são colocados face a face com critérios e classificações já prontos, antecipadamente. Surgem palavrões: artrópedes, helmintos, platermintos, anfíbios, anuros, etc. Pensam as crianças algo assim: “mas da cabeça de quem surgiram esses palavrões?” Diante de enormes coleções de nomes (palavrões) os meninos reagem na defensiva. Tentam colar, em dia de prova. Tentam decorar. Abandonam a escola, pela monotonia, etc. O que não ocorre, quase nunca, é isso que você veio fazendo com um texto; não acontece essa “aventura” de compreensão, facilitada pela classificação. E quase nunca compreendem que estudar pode ser construir conhecimento. Nossa teimosia com a atuação interdisciplinar é uma tentativa de realizar a “aventura” construtiva que o conhecimento.
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Você me lembra, Arguello, um outro comentário que considero importante. Faz bastante tempo, já, decidiu-se que toda proposição tem um sujeito e um predicado. Decidiu-se também que toda expressão é fruto de uma relação Sujeito-Predicado. Foram os gramáticos que fizeram estas distinções. Dou um exemplo:
João lê.
João é leitor.
A ideia de ler (ser leitor) cabe à ideia de João. O verbo principal da gramática tradicional é o verbo “ser” (pensamento ontológico”). E daí viram as noções de sujeito e predicado. Em seguida os gramáticos se depararam com situações como
Chove.
Amanhece.
São situações em que o predicado não tem lugar para um argumento. Como é que fica a definição anterior: toda expressão é fruto de uma relação… Adaptada à língua portuguesa, esta questão receberia classificações como sujeitos simples, sujeitos compostos, sujeitos indeterminados e… sujeitos inexistentes, cuja existência desfaz a definição dada!
Chegando agora à questão que eu considero importante: no processo de pensar/definir tudo isto ninguém nunca disse que haveria seriação. Ou seja, nunca se fez separações seriadas. Não foi estabelecido que o processo de conhecimento referente à expressividade do verbo “ser” seria na quinta ou na sexta série. Nem ninguém naquele processo estabeleceu que se poderia conhecer a inexistência de sujeito de CHOVE na sétima ou oitava série. Foi a Escola quem tomou decisões nesse assunto. A seriação, que retalhou o processo de criação de conhecimento, foi uma decisão político-administrativa da Escola (isto é, seus organismos políticos). É importante que nós nos lembremos deste aspecto, na medida em que quisermos fazer trabalhos didáticos de criação/construção de conhecimentos.
Nota
Texto publicado como Cap. III de Contribuições da interdisciplinaridade para a ciência, para a educação e para o trabalho sindical, de Adriano Nogueira (coedição da APP (sindicato dos professores do Paraná) e a Editora Vozes em 1995), é a transcrição de uma aula ministrada no programa de educação continuada do sindicato dos professores do estado do Paraná, em que nos envolvemos, além do próprio Adriano Nogueira, Carlos Arguello (físico), Eduardo Sebastiani (matemático), Paulo Freire (educação) e eu.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Prezado prof. Wanderley Geraldi,
Que texto instigante este agora publicado, ou re-publicado. Tem muita coisa aí, para professores de qualquer disciplina. Gostei muito da forma como foi apresentado o movimento realidade-abstração-realidade, e da idéia de perder o cheiro da realidade quando ficamos só na abstração. Me lembrei do texto do Borges sobre Funes, o memorioso, quando ele conclui que, por causa do não esquecimento de Funes, ele, Borges, acreditava que não havia pensamento, porque “pensar é esquecer”.
Caro Paulo César, obrigado por sua leitura atenta e pelo comentário. Os retornos são raros e receber este seu comentário dá ânimo para continuar a ir republicando estes textos de arquivo, perdidos na história…