Uma História de Si Mesmos, por José Kuiava

“Escrever é fácil: você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio você coloca as ideias”. Pablo Neruda nos deixou esta dica genial, entre milhares de belas lições de vida e humanidade.

Hoje não vou escrever das barbáries da nossa política nojenta. Vou escrever de nós mesmos, pois todos temos uma história para contar e escrever. Mesmo que nossa existência ainda seja curta e breve, já é uma história. Contar a história de si é escrevê-la entre a primeira letra maiúscula até o ponto final. Embora o ponto final da nossa narrativa não seja o final da nossa história, pois a vida ainda não acabou. E narrar é colocar em linguagens as ideias que temos de nós mesmos. Assim, não formaremos apenas massa de indivíduos, mas constituiremos a sociedade de sujeitos históricos.

Contar de si, dizer da própria existência é inventariar a vida de si com a vida dos outros. Ninguém jamais viveu sozinho e tampouco vive só. Cada um é um resultado histórico. O resultado das relações com os outros. Somos de um tempo determinado da história. Cada um nasceu num lugar e num tempo. Somos do lugar e do tempo. O lugar de cada um é também o lugar dos outros. Da mesma forma o nosso tempo é o tempo dos outros. Somos todos conterrâneos e contemporâneos. Conhecer a nossa contemporaneidade é conhecer a nós mesmos.

A primeira condição humana do conhecimento é nos conhecermos. O conhecimento é a magia do conhecer a si mesmo. Não em segredo e nem numa situação individualizada e individualista, nem no sentimento egoísta da vanglória  ou do  triunfo de si mesmo, mas nas relações sociais com os outros. Os outros são aqueles sujeitos com os quais estabelecemos as relações de vida nas mais variadas e amplas situações e circunstâncias. O conhecimento que não ajuda a nos conhecermos (a realidade determinada) não serve para nada. O conhecimento verdadeiro é aquele que ajuda a nos entendermos como sujeitos históricos, situados no tempo determinado e na realidade determinada.

Temos uma identidade. Temos nome, sobrenome, data e local de nascimento, nome do pai, nome da mãe. Temos família, irmãs(?), irmãos(?), avós, bisavós, tias, tios e outros parentes. Já fomos crianças. Tivemos a nossa infância. E como foi nossa infância? Com quem e com que brincávamos? Quais foram nossos brinquedos? Como foi nossa infância? O que foi e o que é para nós o nosso corpo? Quais valores humanos apreendemos e vivemos em nossa infância e em nossa adolescência? Como fomos constituindo nossa identidade social, identidade cultural, a identidade religiosa, as nossas crenças, os nossos medos, as nossas angústias ante a vida real? Alguma vez já nos emocionamos diante das árvores, das montanhas, das nuvens, do nascer e pôr do sol? Fomos capazes de brincar na chuva de verão? Como construímos o mundo irreal? Já experimentamos liberar nossas fantasias, o mundo ficcional? E qual foi (é) esse mundo da imaginação?

Escrever a vida configura-se como resgate, constituição e representação das múltiplas identidades de si, enquanto sujeitos vivos, existentes, como agentes e instituídos de uma identidade social num determinado contexto e tempo da história. A identidade que transcende a identidade consigo mesmo, pois ela configura-se com a identidade do grupo de que faz parte. Assim, o sujeito se percebe como um ator que se representa e convive com personagens vivos, reais.

Como eu me vejo? Como os outros me veem? Como o mundo me vê? Escrever a história de si é debruçar a mente e o coração sobre a vida. É construir a consciência de si mesmo e sobre o entendimento do significado da vida humana.

É um exame da própria visão e concepção do mundo. Um exercício de criticar a própria concepção do mundo. Escrever a própria história de vida, quem sabe, nos permitiria a elaborar uma nova concepção do mundo de maneira crítica, criativa e consciente. Assim como Antônio Gramsci já imaginou: “O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefício no inventário. Deve-se fazer, inicialmente, este inventário”.

É possível que se todos os educandos das universidades escrevessem suas histórias de vida e se todos os professores lessem estas histórias, certamente os universitários não seriam mais os mesmos, nem os professores o seriam.

Agora imaginemos uma hipótese, segundo a qual todos os políticos e todos os juízes vivos em ação escrevessem suas histórias de vida em plena sintonia com os princípios éticos e morais da humanidade, quer dizer, sem mentiras, sem falsidades e sem hipocrisias, simplesmente dizendo a verdade acima de tudo e de todos. Aí, sim, superaríamos o princípio educativo, hoje reinante, do “vigiar e punir”. E superaríamos a prática de condenar somente alguns criminosos selecionados. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.