Na semana passada, em meu último texto, toquei em um assunto bastante inquietante: a prisão da advogada Valéria Lúcia dos Santos no exercício de suas atividades profissionais. Retorno ao caso apenas de passagem para ativar os conhecimentos adquiridos previamente, ele será meu álibi contra vocês que me leem. É assim que quero elucidar minhas impressões.
Antes falarei sobre desprezo.
A maioria de nós conhece o desprezo, o que não significa que por conhecer, tendo sido em experiências como autor, vítima ou os dois, que sejamos empáticos aos desprezados, ou mesmo humanamente solidários aos que são assim tratados. Exemplos vários permeiam a nossa literatura, medicina, história, artes, e enfim todos campos de existência, conhecimento e manifestações das pessoas.
Todas as pessoas que leram o texto a qual me refiro, e segundo as estatísticas do site foram muitas, nenhuma se mostrou em choque com o ocorrido. Percebem? Engana-se quem pensa que o choro é livre, nem o Lula é. Esse não é ainda o ponto que falo sobre desprezo, e tampouco hoje será necessário falar sobre a etimologia da palavra em questão.
Nessa semana duas falas de extremado desprezo pela sociedade brasileira circularam os noticiários, e, o pior, oriundas de uma boca que postula ocupar o cargo de líder, ou vice, que em tempos de golpe e autogolpe significam a mesma coisa para a nação. Vamos a elas: Não é preciso de povo, ou de representantes do povo para fazer uma Constituinte – aqui já estaria de bom tamanho, mas acrescentou-se ao despropósito (com propósito) a assertiva de que mulheres pobres, mães e avós, são fornecedoras de mão de obra – ainda infantil, para o tráfico.
Teminaria o texto aqui.
Para frente seriam muitas exclamações, registrando o tamanho do estupefamento. Não é possível. Eis que me rebelo e escreverei ainda, pois nem só de memes o homem, e no meu caso a mulher, viverá.
Verdade que as expressões de desprezo soam até pequenas se pensarmos que a sociedade tem aceitado coisas muito piores: tatuar na testa de uma pessoa que é ladrão e vacilão, que um torturador que se ocupava da cadeira do dragão(https://super.abril.com.br/mundo-estranho/como-era-uma-sessao-de-tortura-na-cadeira-de-dragao/) seja homenageado, que mulheres morram todos os dias vítimas de violência domestica e sexual, que pessoas que fogem à heteronormatividade sejam tomadas por doentes e que devam ser espancadas até a morte, que a juventude negra seja vítima de extermínio em massa, que uma vereadora do Rio de Janeiro seja assassinada e que nada seja investigado de verdade, que um rapaz negro seja preso por portar um detergente, que um menino, Marcos Vinicius, seja morto trajando uniforme enquanto volta da escola, que 10 crianças infratoras morram em poder do estado, e poderia elencar vários outros fatos aqui.
Tem um caso especifico que desejo destacar: um jovem negro amarrado ao poste. Barbárie. Linchamento. Imperdoável desumanização. Ouço ainda a voz de uma porta-voz da mídia: – Tá com pena? Leva para casa.
Chego ao ponto que quero da questão.
Muitos serão os responsáveis pela barbárie que se aproxima: Prisões injustas, condenações sem provas, fissuras e rasgos nas Carta Magna, ou Constituição Cidadã. Todos os feitores dessa nova ordem: o caos. Terão seu lugar ao Sol, e podem bater no peito e rufar os tambores e trombetas anunciando o novo tempo. Ainda é cedo para pularem de galho, os mais afoitos temem por suas próprias feridas: PSDB, Sherazade, FHC após inflarem as pessoas menos afeitas as reflexões, invocando a moral e os bons costumes contra o petismo, o socialismo e a ameaça venezuelana, mesclando questões de ordem individuais e liberdade com opiniões e fanatismos religiosos, e vendendo demônios vermelhos ao prazer dos mercados internacionais do petróleo.
– Feminazis, abortistas, desgraçadas, putas. Ninguém fez nada. Subiram o tom: – Gayzistas, pornográficos, destruidores da família e do casamento, surra e homofobia. Tom ainda mais alto: – terrorista, comunista, vagabunda, estupro nas bombas de gasolina, só não te estupro, porque você não merece. E absurdamente desumano: vagabundos, sem terras, quilombolas preguiçosos, índios não têm que ter terra, chacinas nas tribos e periferias, esses negros tão de mimimi, cotas não! Meritocracia! E não tem limite.
Até que falam de mim, mas esse mim é diferente. Esse mim é bem-nascido, pensava-se. Um mim que vociferava nas câmeras:
– Tá com dozinha? Leva para casa! Direitos humanos é para humanos direitos!
Bastou! A ela garantimos sororidade. Daremos audiência porque a sua dor, e só a sua, importa. Seu constrangimento é significativo, simbólico. E todos nós embarcamos na indignação da mulher branca que se vê criando seu filho e tendo sido criada sozinha pela mãe, sendo chamada de desajustada. O problema não é de interpretação de texto, certamente. Não me pareceu real, afinal, o destino da ofensa tem endereço certo: pobres que moram em lugares carentes. Pobres, como aquele jovem que fora amarrado ao poste. Não você! Não uma pessoa que sequer já foi barrada na porta giratória do banco. Não! Essa fagulha de bom-senso diante da barbárie.
A questão é que os direitos não são para todos. Em breve serão para poucos. Em meio a um ambiente de carência e abandono, em que sequer mães e avós são respeitadas no exercício de suas atividades e na luta cotidiana de constituir e cuidar de uma família monoparental, desamparadas por leis e justiça alicerçadas em regras e condutas patriarcais, realmente as coisas tendem a barbárie.
Cheguei ao ponto, mas não está posto ainda o que quero dizer. É como a lembrança do sangue da carne do churrasco de outrora, cada tempo um ponto e cada corte um sabor novo. Até que não tem mais sangue e o que resta é sabor amargo.
Basta pensar que vivemos o impensável: um mundo de absurdos em que propostas de assassinatos e extermínios se tornam justificáveis pela simplória manutenção dos bens materiais, e votos.
Ao ouvir a barbaridade saída da boca do político que nega a política, militar – que nega a soberania do país, – ficamos perplexos pela falta de sensibilidade. Uns ficarão estarrecidos apenas aparentemente.
A questão não é o anuncio da tragédia, mas o desprezo pela humanidade. Entendem? Sabedores que são da realidade de meninos e meninas moradoras de periferia, sem a presença paterna, criados por mãe e avó trabalhadoras, quantas mães, quantas tias, quantas avós, quantas amigas, quantas jovens e outras tantas poderiam apresentam esse histórico, e de resultado diverso ao esperado, mas é claro que existem vários casos de tragédias recortadas pelas drogas, muitas vezes pela falta de segurança, oportunidade, profissionalização, identidade, investimento em educação integral, saúde, moradia, dignidade e afeto. Faltas que um político deve conhecer para intervir. É preciso mesmo sensibilidade.
Quando, seu moço
Nasceu meu rebento
Não era o momento
Dele rebentar
Já foi nascendo
Com cara de fome
E eu não tinha nem nome
Prá lhe dar
Como fui levando
Não sei lhe explicar
Fui assim levando
Ele a me levar
E na sua meninice
Ele um dia me disse
Que chegava lá
Olha aí! Olha aí!
Vou invocar na voz de Elza Soares, a canção de Chico Buarque, Meu Guri para falar do desprezo da fala que é dada por incapacidade das pessoas em enxergar aqueles que pouco ou nada tem(ver nesse link https://www.youtube.com/watch?v=K-sepKbQv_k) Aos desavisados podem achar que a letra cantada aborda a marginalização da favela, e suas crianças, majoritariamente pretas e pobres, na mesma perspectiva: pobreza e meio somados são um gatilho para a criminalidade, acrescenta-se a isso uma ausência paterna e pronto: temos os meninos do tráfico! Acalmem-se e não me deixem a sós, tampouco deite fora o texto ainda, o fundo do poço se aproxima.
Essa música é uma obra-prima, apresenta uma realidade chocante de falta de oportunidades, de igualdade, de identidade, tudo isso escorado num muro alto de invisibilidade por parte da sociedade. O artista tem essa capacidade de denunciar em sua arte, questões que são invisíveis são descortinadas, sensível às dores das mães, negras e pobres, invariavelmente: Eu consolo ele, ele me consola, boto ele no colo pra ele me ninar. É tudo que a mãe trabalhadora tem para oferecer, seu colo, seu consolo. As mães, as vós, e os filhos que me circundam vivem o cotidiano de invisibilidade. Ainda assim escolhemos ouvir a dor falsa de uma mãe branca que sequer foi atingida pela fala muito clara, como a sua pele. As outras continuam silenciadas por trajetórias desumanizadas, suas jornadas esticadas, penduradas em ajudas e jeitinhos, em bicos para complementar a renda, toda a luta para alcançar o melhor. Luta que não precisava ser tão solitária, e chega pelas mãos do desprezo da sociedade que vibra com a barbárie anunciada.
Todos vemos. Uns mais que os outros. Nem sempre é desprezo, mas só sabe medir quem sente.
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
Comentários