Uma formação necessária?

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em dezembro de 2017, definiu as áreas do conhecimento que devem integrar os currículos e propostas pedagógicas de todas as escolas de Educação Infantil e Ensino Fundamental. A BNCC definiu, também, os conhecimentos, competências e habilidades para cada disciplina, considerando tais tópicos como básicos ao tratamento didático proposto para a educação. É preciso dizer, ainda, que tal seleção (con)forma o perfil dos alunos, fazendo da expectativa de aprendizagem um imperativo no processo de formação dos futuros cidadãos e trabalhadores,

A pergunta que reverbera em minhas reflexões é o que é currículo? E suspeito que não haja apenas uma resposta para isso.

Se entendermos o currículo como prática cultural e como um texto que vai sendo significado em diferentes práticas sociais, veremos que essa via educacional consiste em um conjunto de lutas político-discursivas que articulam diferentes demandas, incertezas e diferenças para definir um conhecimento legitimado e avaliado como aquele mais adequado para um projeto de sociedade.

Falamos de currículo em tempos de complexidade política, em relações de poder difusas, em estruturas descentradas, naquilo que alguns autores estão chamando de morte do sujeito, de desestabilização das instituições e de fim das utopias; portanto, é necessário questionar signos e símbolos como inovação, mudança curricular, qualidade da educação, conhecimento, boas práticas. É preciso problematizar tudo o que se fala sobre currículo: flexível, diversificado, dinâmico, criativo vs. comum, essencial, inclusivo, democrático. É preciso avaliar estes e tantos outros discursos que são produzidos socialmente sobre o que seja currículo e sobre seu caráter necessário. É preciso questionar a pretensão de construir identidades plenas (sujeito educado, trabalhador, profissional), pois estamos sempre construindo o que seja cada uma dessas coisas. Portanto, é preciso conectar o que seja a dimensão social, a dimensão econômica e a dimensão cultural na postulação de currículos.

A suposição de um sujeito centrado impossibilita a relação intersubjetiva com outro. A necessidade de se ter controle sobre um sujeito em formação leva a desconhecer que tipo de sujeito se está formando. Quanto mais planejamos objetivos, mais deixamos fora da escola a cultura, as diferenças. O currículo, ao buscar eficiência social, volta-se para o mercado e, nesse campo, não há como silenciar a ideologia em nome da funcionalidade. O currículo é o conhecimento selecionado em nome de um projeto de formação de sujeito.

A noção de verdade e de certeza influenciam a construção de um currículo e, sendo assim, o que ensinar? Que atos de poder legitimam o conhecimento?

Penso que não há consenso e nem aprendizagem plena, mas mesmo assim buscamos comunicação para construir acordos. E a educação é a busca da possibilidade de garantir acordos necessários e contingentes. Fazemos opções e negociamos com os sujeitos sociais que produzem currículo para, dessa forma, decidir o que seria adequado a um contexto limitado, tratando a ideia de lutas conjuntas de forma distinta.

Todavia, os acordos não são tão simples. A educação é atravessada por diferentes normativas, o mundo é bem mais complexo, e pensar em agenda conjunta é muito mais profundo. Mesmo diante de atos normativos e regulatórios, homologações e resoluções, ainda é possível pensar que lutamos. As lutas são distintas e por causas distintas, mas ainda assim é possível pensar que lutamos, porque não há apenas poderes localizados, estratégias preestabelecidas ou uma única forma de fazer. É preciso traçar as maneiras próprias de percorrer o cotidiano.

 

Cristina de Araújo escreve neste blog às segundas-feiras.

Professora, pesquisadora e escritora
Cristina Batista de Araújo é professora Adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso, desde 2009. Doutora em Letras e Linguística, pela Universidade Federal de Goiás. Tem experiência na área de ensino de língua portuguesa, tendo atuado durante 14 anos na Educação Básica pública e privada e em Escola do Campo. Desenvolve pesquisas em Análise do Discurso, com ênfase em linguagem, educação e mídia. Coordena grupo de estudantes-pesquisadores em nível de graduação e pós-graduação nos seguintes temas: letramento, ensino de língua, comunicação e mídia, discurso, história e subjetivação. É autora da obra Discurso e cotidiano escolar: saberes e sujeitos.