Uma dor habitando meu peito e desabrigada de humanidade

A sensação de ver um prédio desabando é como se nossa vida estivesse ali. E tantas estavam mesmo ali, ocupando esquecimentos e aquecimentos dos mercados. Imóveis desocupados enquanto faltam habitações, não pode parecer natural que pessoas tenham necessidades vitais negadas, ao tempo em que outras transformem essas mesmas necessidades, em excedentes e objeto de especulação.

Cumpra-se! Desocupe! Cale-se! Prendam! Matem, queimem, derrubem. Imperativos verbais que nos remetem aos impérios erguidos sobre os ombros cansados, destes que hoje migram de suas senzalas para favelas e coabitações. Dizem ainda que o excesso de sal pode estragar uma fundação de imóvel, é preciso ter cuidado para as lágrimas, destes choros intermináveis.

E como se já não bastasse invadir e ocupar todos os espaços de resistência torna-se importante ser invisível: sem voz, sem dor, sem fome, sem abrigo, sem proteção, sem oportunidades, sem merecimento, sem choro, sem direitos… Apenas leis para serem cumpridas.

Quanta dor e lamento cabe na vida deste povo? E que teimosia move essa marcha dos sem nada? Convenhamos não lhes falta apenas teto.  E suas imagens são ameaçadoras, mas não agora. Como se andar fosse um transbordar de silêncio e esperança, feito criança que não sabe para onde, e se arrisca, e que não se sabe sozinha, e acredita-se segura no caminhar ladeado pelo outro.

A tragédia colocada no Primeiro de Maio anuncia as dificuldades e tormentas de um tempo vindouro muito mais do que a bonita música de Alceu Valença: “tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais…”. E os sinais não são sutis e se apressam pelo tempo da desesperança.

Assistimos entorpecidos pela incredibilidade e pela fúria ensandecida dos que se opõem. Mostram a tragédia invertendo culpas e vítimas, não aproximam as câmeras, não “intimizam” os ângulos de forma que apareçam estragos e ruínas, não precisam estar humanizados.

Aproveitam as imagens do fogo que consome tudo, é ainda o mesmo fogo que queimou hereges, rebeldes, bruxas e curandeiras. Não vasculham sequer a dor das perdas, como se não fossem humanos por não ter: – não perderam nada, os que nada tinham!

E assim figuras blasés pululam em inserções midiáticas com seus comentários realizados em tons elegantes e, por vezes, sofisticados, dotados de sentidos absurdamente envernizados de ordem e bons costumes, um disfarce ideal num mundo desigual para iguais.

O que temos nós se não as vidas? As nossas próprias vidas e de mais ninguém? Teremos tempo? Compaixão? Respeito? Teremos amor? Teremos futuro?  E as perguntas fazem um processo inverso ao erguer de um muro, como se fosse possível cada pergunta encerra em mim um tijolo, e um vazio enche meu peito e cabeça.

As palavras não fazem sentido quando você vê alguém com 65 anos dormindo em uma calçada fria, reforça-se a incompreensão lendo um depoimento em que outro morador disse ter retirado criança de colo de dentro do prédio. Onde estarão elas? Não há vida que vale mais, e não deveria haver vida que valesse menos.  É claro que todos nós sabemos que muitas pessoas dormem nas ruas: histórias e marcas profundas nas cidades e cicatrizes nas almas: 248 pessoas e 92 famílias são os números oficiais da prefeitura.

O desmoronamento do edifício Wilton Paes de Almeida ainda parece-me, e quero muito estar enganada, um marco de inauguração de tempos sombrios. Enquanto escrevo, lembro de uma música de Milton Nascimento que invariavelmente tenho vontade de chorar ao ouvir, e sim estou mesmo desmoronada (nem quero fazer trocadilho infame com o nome do juiz).

E, embora ela me entristeça, sempre termino com o coração mais bravo e forte, capaz de fazer com minhas próprias mãos o meu viver, mas por hora essa música não me parece dizer muito sobre essa tragédia, talvez o inconsciente diga mais do que sei interpretar, ela fala sobre a travessia que fazemos, e ao final que é preciso resistir…

Quando você foi embora
Fez-se noite em meu viver
Forte eu sou mas não tem jeito
Hoje eu tenho que chorar
Minha casa não é minha
E nem é meu este lugar
Estou só e não resisto
Muito tenho pra falar

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver

Solto a voz nas estradas
Já não quero parar
Meu caminho é de pedra
Como posso sonhar
Sonho feito de brisa
Vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto
Vou querer me matar

Vou seguindo pela vida
Me esquecendo de você
Eu não quero mais a morte
Tenho muito que viver
Vou querer amar de novo
E se não der não vou sofrer
Já não sonho, hoje faço
Com meu braço o meu viver

(Travessia  – Compositores: Rocha Brant Fernando / Milton Nascimento)

 

 

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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