Representatividade importa, mais do que isso, ela incomoda quando representa um grupo que não tem ou não está no poder, e ela pode ser sim um atalho para se chegar mais rápido a um determinado lugar. O detalhe é que a pessoa não conseguiria chegar sem o atalho, e não é por competência (antes fosse), mas porque a barreira dos preconceitos em uma sociedade majoritariamente machista, racista e heteronormativa e, principalmente, hipócrita, não é transponível.
Outro dia, (essa coisa de não lembrar datas é muito ruim) escrevia um texto e lembrei que as crianças sofrem muito na fase escolar por vários motivos, hoje vou falar de um deles: a insegurança.
Não escolhi esse tema aleatoriamente, como vocês poderão perceber, é que a insegurança deixa marcas profundas nas crianças: medo, incertezas, timidez, baixa autoestima, depressão, ansiedade, transtornos alimentares, e, a cereja do bolo, problemas de aprendizagem.
E é por essas e outras que a luta por representatividade é tão fundamental, mais do que isso é urgente e terapêutica. Dois livros que sempre gostei muito de usar na escola e em que sempre embasei meus projetos na questão da diversidade foram Menina Bonita do Laço de Fita, de Ana Maria Machado, e o Gato Xadrez, de Bia Vilela. Dois livrinhos, maravilhosos e acessíveis, que encantam as crianças e oferecem com suas estruturas e linguagens lúdicas o prazer da leitura.
A menina bonita é uma personagem negra, uma menina linda, sua descrição é maravilhosa, que encanta um coelhinho branco e por meio de peraltices desfaz vários preconceitos revelando ao final ancestralidade e hereditariedade. Quando conto essa historinha vejo os olhinhos de jabuticaba de meninas e meninos brilhar como nunca, é o poder redentor da literatura. A partir daí, ganham força e fôlego pra enfrentar a chuva de comentários, entreolhares, e incômodos de origem racista que vão persegui-los por toda a vida.
Acho que até devo um enorme agradecimento à autora: Muito obrigada, Ana Maria Machado. Já Bia Vilela, do outro livro mencionado, por meio de um gatinho, apresenta ao universo dos pequeninos as possibilidades de cores e rimas, talvez a autora fosse vidente e se antecipou a imposições e definições de cores por gêneros, fato é que as crianças se permitem usar todas as cores para pintar seus mundos e universos com os tons e poesias que assim desejarem.
Agora quero dizer da minha alegria em ver que o mercado editoral e as escolas estão sensíveis a essa necessidade de representação, embora eu saiba que ainda falte muito para se alcançar o desejável: superar as datas comemorativas. Uma destas surpresas se deu com o livro literário Um pônei chamado cavalo, do Alexandre Costa.
Alexandre é um amigo que se viu pai de um menino negro, e aflito com a escassez do mercado literário (e tantos outros) descobriu-se escritor, não escreveu uma ou duas histórias, escreveu um bocado delas. E a história da almofada, digo pônei, digo cavalo… Enfim essa história de uma realidade atual e não contada antes saiu impressa num jornal de domingo, e logo ganhou reconhecimento, transformando-se em livro bacana com ilustração e tudo.
A história tem uma linguagem que ludicamente trata de questões bem pesadas, e discute inclusive o fazer linguístico, a semântica, as escolhas, o sincretismo religioso e, fundamentalmente, é um livro que fala de uma relação de pai e filho, sem incensar o pai que cuida do filho, mas trazendo à tona momentos de troca de saber, intimidade e confiança necessários para a vida dos dois.
Talvez a ilustração dos personagens negros e a abordagem da religião de matriz africana entrem em uma seara difícil, mas a literatura tem que dar conta de coisas tais, e dá.
A prova disso é que a voz da negritude está alçando voos cada vez mais altos, já falei sobre Racionais ocupando a academia essa semana. Além do que os pretos e as pretas estão consumindo, e para tal querem comprar produtos que os enxergue e os representem:
“O Fulano Pai cantava essa canção para o Fulano Filho porque achava que era bom, era como cuidar do seu pequeno. Na verdade, essa canção era uma oração, para um santo chamado São Jorge, mas que também era chamado de Ogum.”
O texto não apresenta juízo de valor, ou impõe algo para o filho ou para os leitores, mas registra como se dão as trocas culturais entre pai e filho, e a importância desses momentos que precisam mesmo ser representados nas artes, e na vida.
A obra apresenta ainda uma família dessas muito comuns nos nossos dias, os pais não moram na mesma casa e a criança mora com a mãe, sendo assim visita o pai. Só isso já valeria a adoção do livro em todas as escolas públicas ou privadas, representar esse novo modelo de família, mas que por motivos estranhos e inomináveis (política diminuta) são transformadas em não-família ou meia-família – como se isso fosse possível, ao invés de explicar que as famílias atuais, assim como o gato xadrez, podem assumir uma nova roupagem e ter outras características o que não as fará menores, ou maiores, ou certas e erradas, apenas diversas.
Representatividade nos dias atuais exige mais de nós. Os meninos e meninas que vivem em situação semelhante precisam sentir que não vivem nessa condição por culpa de alguém, algo, ou de si, e que isso não os impedirá de serem felizes e terem carinho. O que é impeditivo é a cultura excludente de que só existe um jeito e um modelo, casos de alienação parental e principalmente o abandono paterno. Livros como este servem justamente para mostrar que adultos devem ser adultos, e que pais precisam assumir não apenas responsabilidades financeiras, mas principalmente laços de afeto e cuidados cotidianos.
E o livro é todinho recheado de aspectos que precisam mesmo ser ressignificados: a brincadeira entre pai e filho, o espaço para a imaginação, os gostos, o respeito, a escuta atenta, o tempo, e a presença de um na vida do outro.
Ps.: Este texto não é, nem pretende ser uma resenha porque outros muito maiores já o fizeram (como este sujeito que nomeia o blog, de quem sou invariavelmente fã). Mas parece-me necessário que, neste momento de enfrentamento, tenhamos mais esse cuidado com nossas crianças negras, com essa volta temática. Veja a resenha de Geraldi em:
Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.
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