O escritor gaúcho Cyro Martins tem uma capacidade invejável: desvelar a alma de suas personagens e, fazendo isso no particular, no singular, dar um panorama sobre o ser humano, seus desejos, seus conflitos, sua esperanças e desesperanças.
Em sua pequena novela – Um menino vai para o colégio – não deixa de fazer isso. Três almas se expõem em profundidade nestas curtas páginas: Carlos, o menino; seu pai Afonso e sua mãe Alzira. E se expõem de formas distintas.
“Carlos gostava de brincar sozinho, de falar sozinho com os sues peões, dando ordens, distribuindo serviços, tomando providências”: filho de estancieiro, aprendeu na lida o seu brinquedo com cavalos, bois, ovelhas e campos, tudo em pequenos ossos, paus…
À roda das casas, porém, o seu prazer era ficar horas a fio entretido nas fantasias do mundo que concebera. E não era um mundo inalteravelmente pacato, aquele; havia trabalho ordeiro, mas também estripulias, desencontros feios, arranca-rabos medonhos e, a espaços, choques de arma branca, talhos, sangue. É que nem todo o seu pessoal era manso. Entre os de confiança, existiam índios borrachos e até bandidos. O que ia fazer? Precisava deles… O pior seria deixar, por falta de ente, os terneiros orelhanos, os tourinhos “inteiros”, as ovelhas sarnosas. Assim, antes aguentar aquela indiada baguala, do que ter prejuízos. O certo é que, apesar dos aborrecimentos que lhe causavam as rixas de peão com peão, sempre impunha a sua autoridade, sem deixar de ser amigo de todos.
Esta passagem, aparentemente apenas mostrando o menino Carlos, suas preferências e suas compreensões das relações na estância, desvela a naturalização que se constituiu historicamente nas fazendas gaúchas: o patrão, proprietário de terras; e o peão, seu empregado e defensor – constituindo não só um grupo que encarrega do trabalho campeiro, mas também servindo como exército de seu patrão… A expressão típica desta naturalização é o peão afirmando “sou gente do…”. No caso, gente do que se tornou o Coronel Afonso Abreu.
O pai, o Sr. Afonso aparece com a autoridade que o menino se impunha a si mesmo quando lidava com sua imaginária estância: a ele compete tomar as decisões, fazer as coisas acontecerem, criar o gado e vender, alimentar e pagar os empregados. É o dono da casa-grande da fazenda, que no interior campeiro do sul nem sempre é uma “casa grande”: patrões e peões compartilham a mesma qualidade de vida. Obviamente, patrão é dono; peão é peão.
Há uma caraterística no pai de Carlos: o interesse pelas notícias, pela política, pelo andamento das lutas políticas do Estado que Borges comanda e a que Assis Brasil se contrapõe. Torna-se assisista de carteirinha e em seu rincão, faz-se coronel e ajunta povo para a revolução. O lenço vermelho dos assisistas, os maragatos, se contraporá aos lenços brancos dos chimangos. Mas esta guerra não aparecerá nesta novela. Dela, somente se têm a notícia dos preparos, quando já Carlos estudava na Capital, no colégio dos jesuítas.
A decisão de mandar o piá para o colégio foi tomada pelo pai… sempre adiada pela mãe que choramingava achando o menino ainda muito criança para se afastar da fazenda. Este dado desvela o que é a mulher na fazenda campeira: estando presente o marido, não são qual Ana Terra. São apagadas pelo autoritarismo do marido. Quando tomam partido, choramingam. Foi assim que D. Alzira conseguiu manter Carlos estudando na fazenda até os 12 anos. Então foi para o colégio que seu pai e patrão de todos decidiu: o colégio dos jesuítas na capital. E interno.
São ontológicas as páginas desta novela que descrevem a viagem a Porto Alegre (e depois as viagens que faz Carlos entre a capital e a fazenda durante as férias) e a espera de pai e filho na sala de recepção do colégio:
Apesar das escapadas da imaginação, a espera naquela sala penumbrenta, silenciosa, fatigava. Aos poucos ia se gastando a boa disposição que os animava ao penetrarem no edifício. O guri antevia na taciturnidade do casarão, uns indícios sombrios da prisão que o aguardava. O pai já fumara dois crioulos […]
O pai levava o filho ao colégio acalentado por um sonho: ver o filho doutor advogado, fazendo discursos e movendo politicamente sua cidadezinha de interior. Com falas rebuscadas, quase incompreensíveis mais bonitas, ao estilo de um Assis Brasil de “Ideias não são metais que se fundem”, ou do deputado Vasconcelos, na Assembleia de deputados, que termina seu discurso dizendo “O casarão feudal da ditadura oscila e fende, deixando penetrar por entre as paredes fúnebres, o sol que fere o ditador que tomba!”, discurso arrebatador lido por Carlos, bem mais tarde para o pai já coronel em preparos de revolta.
A escola mesmo, como aparece? Estou relendo alguns livros neste projeto que certamente não concluirei: ver como a literatura trata a escola, porque estamos habituados a ler como a escola trata (e mal segundo a maioria dos estudos) a literatura.
A escola aparece em toda a novela em quatro momentos, ainda que sua existência e a matrícula de Carlos numa delas seja o motivo de toda a história. Vamos aos episódios:
- Quando da chegada ao colégio, depois de se despedir do pai, Carlos é levado pelo diretor para a sala de estudos:
Ao entrar, acanhado, na ampla sala do “estudo”, Caros viu fuzilar de cada estante um par de olhos que o espreitava. Indiferentes uns poucos; ávidos de curiosidade quase todos. Sobretudo escarninho os que lampejaram na cara ruiva e dardenta dum tipinho enfezado.
[…]
Ninguém bulia na vasta sala supervigiada. Uma mexida de pé ressoava áspera como um arranhão. No relógio colocado acima do púlpito, os ponteiros movima-se numa lentidão extenuante.
[…]
Nisto um cochicho: passa adiante! Daí a um pouquinho, de novo, porém mais insistente: passa duma vez! O padre retesou-se e varejou a sala com um olhar que era capaz de atravessar até os corpos, quanto mais as almas.
Carlos começou a sentir um aperto na garganta, como se aquilo fosse com ele. Ordem absoluta. Nem uma página de livro folheada.
De repente explodiu uma risada, brusca como um disparo de arma.
Um vermelhão súbito inundou a cara do subprefeito, como se lhe houvessem jogado um pote de tinta encarnada. Incontinenti, ergueu o braço direito, fechou a mão, e descarregou o punho no púlpito, com uma violência de possesso.
– Mal – cria – dos! Si – lên – cio!
- Quando do retorno para as primeiras férias, um diálogo entre pai e filho:
– Então, trouxe os atestados de exame?
– Vem tudo aí na mala – respondeu o guri com desembaraço.
O pai gostou do jeito dele falar, senhor de si.
– E as notas?
– Geografia, 10; português, 9; aritmética, 8.
– Hum, vai ladeira abaixo.
– Espere. Francês 8 l/2.
– Acho muito bonito saber línguas. Já estás falando francês?
O guri não esperava por esta. Atrapalhou-se, remanchou.
– Ainda não, mas pra o ano…
– Bem, continue.
– História do Brasil, 10; História Universal, 8; desenho, 5.
– Sempre fui de opinião que não darias pra engenheiro.
Fez-se uma trégua enquanto seu Afonso bebia o copo d’água fresca, recém-tirada da pipa, que Ricarda lhe alcançara.
– E que lugar tiraste na turma?
– Se não fosse omaldito desenho, teria tirado o primeiro, mas por causa desse 5, fiquei em segundo lugar.
– Bueno, bueno. Não está de todo mau, mas, pra o ano que vem, vamos forcejar pelo primeiro!
- Um ano depois
– Desta vez, sim, tirei o primeiro lugar!
Dona Alzira sentiu-se envolvida numa felicidade mais doce e desviou os olhos meigos da face adolescente que a encantava, para encarar o marido como quem pergunta:
– Então, o que é que eu dizia?
– Me ganhaste, mulher, me ganhaste. Lindo, lindo, bonito! E (dirigindo ao filho) com isto basta. Não quero saber as notas.
- Inquirido pelo pai sobre como andavam as coisas na política, em Porto Alegre. Qual sua opinião, que corrente era a sua, ele não soube o que responder. Nada disso entrava para o internato. E aparece a seguinte reflexão:
Enquanto escutava as confidências da mãe, uma revolta se esboçava no seu íntimo de menino contra o internato que o mantivera por tanto tempo alheia a fatos tão importantes. Esse resto de dia passou pensativo, à roda da casa, sem entusiasmo para camperear. E à noite, ao recolher-se para o quarto, pediu à mãe que lhe botasse a lâmpada branca da sala de jantar em cima do seu bidê. Ia ler. E de fato, arrebanhou toda uma ruma de Correios do Povo e de Correios do Sul, zelosamente guardados pelo pai numa das gavetas da cômoda, e enfiou noite a dentro, inteirando-se da situação política do Rio Grande.
Estes quatro “aparecimentos” da escola são notáveis: o controle da sala de estudos, o silêncio imposto; o controle das avaliações, as notas e as classificações, orgulho dos pais e do menino; e por fim a ausência do mundo político na escola: o estado podia estar em pé de guerra; a escola desconhecia o presente em nome do passado e do currículo ensinando o que sempre se ensinou, embora na novela não apareça nada deste ensino. Seria a escola uma rotina tão previsível, em seus fazeres e seus conteúdos repetitivos, que para o novelista nada do que lá acontece interessa à história de “Um menino vai para o colégio”? Parece que sim! A ausência da escola concreta nesta novela – e até agora em todos os textos que li – é o maior índice da rotina e da repetição do mesmo em todos os tempos. Vejamos como ela vai aparecer em outras obras.
Referência. Martins, Cyro. Um menino vai para o colégio. Porto Alegre : Movimento, 3ª. edição, 1977.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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