Um Deus para cada

Deus está nos pobres. Ao menos a possibilidade d’Ele estaria. Em meu último texto aqui no blog, terminei dizendo que Ele não existe. Um texto que se chama imprecisão linguística.

A leitura é algo que me movimenta, embora deva reconhecer que pelos últimos laudos médicos, o sedentarismo precisa ser abolido da minha rotina, só ler não está dando certo.  Sempre me perguntam se leio muito, e o que gosto de ler, a resposta imediata é que não sei, algumas vezes gosto de ler, literatura, outras sobre política, outras sobre educação, questões raciais, macroeconomia… História, pedagogia… Leituras são possibilidades várias.

Algumas leituras produzem outros textos em mim, são mais fortes, e me arrebatam para o ato de reescrevê-los, mas com outros contornos e destaques que minha leitura possibilita. É assim hoje, um exercício despretensioso do possível.  Ainda sob o impacto do texto do historiador Carlos D’Incao sobre o que a prisão de Prestes teria a ensinar a Lula, e descobrimos que na verdade sob este argumento, pretende ensinar a nos todos.

Impossível ler e não se indignar com o fato de que os tribunais nazistas, devo repetir em grito: NAZISTAS(porque é assim que ecoa o termo na minha cabeça), manifestaram maior compaixão do que os tribunais brasileiros, permitindo que a filha de Prestes e Olga vivesse.

É claro que o caso de Olga, até pelos símbolos que carregam, precisariam de um projeção maior, até para quebrar a visibilidade e desnudar a fragilidade das instituições, que demonstram muito mais apreço pelo poderio econômico que pela democracia, pelos direitos humanos, e pela vida.

Uma parcela da população sabe bem o que significa a justiça brasileira, os governos executivos e legislativos, a mídia, e, sobretudo, as classes dominantes. Isso porque as pessoas em geral, em maior ou menor grau, já foram alcançados pela indiferença, pela exclusão, pela miséria, pela violência, relacionamentos afetivos, mercado de trabalho, estética, educação, encarceramento, mercado financeiro, uma indústria de eugenia que corrobora para o empobrecimento, adoecimento e apagamento da população negra.

As elites do Brasil nunca se sentiram envergonhadas de suas barbaridades… Com algumas poucas medidas socioeconômicas, Lula tirou da miséria 40 milhões de brasileiros, o que vale dizer que esses milhões de indigentes nunca tinham sido motivo de vergonha para aqueles que estavam no poder.

Ser classe dominante no Brasil significa ser, antes de qualquer coisa, cruel e desumano. Não há no seu dicionário a palavra “compatriota” e muito menos “compaixão”.

É interessante pensar que as elites estabeleceram por meio de uma postura frequente de aniquilação de um grupo social a normalização de situações de crueldade, de total falta de humanidade. Todos os dias jovens negros são mortos, todos os dias mulheres negras são violentadas, pessoas morrem de fome e são atingidos em sua existência.

Assim, se sobre a vida e a morte o poder é de Deus, os ricos assumem a feição de divindade capaz de exterminar e determinar quem merece a vida.  Um deus minúsculo que se dobra aos caprichos conservadores, às barganhas e às garantias de uma vida promissora para seletos grupos que torcem o nariz para pobres.  Um deus que não se preocupa com os meninos que morrem vítimas das balas perdidas, de fome, de miséria, de violência e violações de direitos, que velhos não se aposentem, que pessoas morram nas filas dos hospitais sem atendimento, sem saneamento. 40 milhões saídos da pobreza deixaram o deuzinho do próprio umbigo tão triste. Odiosa na verdade. Fazendo arminha com a mão.

O movimento da leitura me trás de novo a esse lugar de  imprecisão e busca, quero achar o melhor termo, escolher o melhor vocábulo que me faça acreditar.

E me encontro no sorriso do menino que diante das dificuldades mantém os olhinhos brilhantes para a venda de bala no sinal, ele se alegra com muito pouco, não quer saber da vida individual de ninguém que abre ou fecha as janelas do carro, apenas dança e se equilibra entre um carro e outro, um balé indevido e triste. Nesse lugar há deus, ainda não sei se maiúsculo e soberano, ele veste roupas simples, é franzino na maioria das vezes… Se choro, turvo meus olhos e vejo nele meu filho ou filha, é um deus que caminha com os pobres, em romarias, em marchas, aprisionados, … Se ele existir, quem conseguiria vê-lo em faces injustiçadas?

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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