Um atrevimento para Dário.

Hoje, vamos fingir que estou em uma sala de aula, e todos os meus leitores agora serão alunos, então vamos fazer uma leitura, meus amados: Uma vela para Dário de Dalton Trevisan.

É um conto muito bom para pensar as relações sociais, é claro que podemos fazer várias observações sobre tipologia, foco, clímax, personagens, e assim vamos…Claro, que alguns de vocês sabem, ou até já presenciaram, que realmente acontece essa coisa de roubo de pessoas que morrem em acidentes, ou mesmo assim como Dário: De repente. Mas o que nos incomoda nesse conto, curtinho, não é isso, são como diria minha ídola da música sertaneja, Roberta Miranda: são tantas coisas, só nós sabemos o que envolve o sentimento.

Tudo bem, amigos, voltarei ao que importa, essa obra prima da literatura brasileira que poderia ser apenas lida e trabalhada sem se importar com o que ela movimenta em nós leitores, em nossa humanidade.

Dário, é gordo, tem um infarto, morre, pessoas vão roubando seus pertences um a um, e ao final Dário está só a espera do rabecão. Entre o infarto e a espera solitária se revela a mágica deste texto: a observação dos observadores da saga de morte de Dário. O roubo, o descaso, a incapacidade de se comover, de estender a mão, de buscar em seus documentos socorro ou providências, de pagar-lhe o táxi, de arrastar-lhe até um lugar adequado, de abanar as moscas que tomam a face do homem, de deixar a aliança em sua mão, manter minimamente sob sua cabeça o terno. Ainda assim é preciso registrar que um menino, um menino negro, faz um gesto.

Esse gesto é capaz atravessar nossa descrença, a sensação de que a humanidade e o que importa, ou deveria, que é a vida deve ser preservada, cuidada, enfim. E como gesto é um símbolo: a vela – a luz, o calor, a vigília, a proteção, a mística – é uma fagulha, mas que com os pingos da chuva se apaga, poderia incendiar, mas apaga.

Então temos só a violência, que não é singular, mas plural. Assim, as violências passeiam invisíveis na anuência da sociedade. É claro que nem todos ali roubaram, nem todos pararam para ver Dário, ou mesmo conseguiriam dar socorro. Será?

Leiam o conto, leiam e de novo se emocionem. Confesso a vocês que estou emocionada porque minha intenção é das piores.

Não vamos mais fingir nada.

Prendemos um homem em uma cela porque seria reeleito. Roubamos cotidianamente esse homem, tiramos a companheira, matando-a inclusive, adoecemos esse homem, é preciso dizer: velho.  Todos nós assistimos a saga de morte, violentamente assistimos de nossas janelas/internet  ou TV, somos como os passantes que atropelam Dário, e rapidamente já buscamos Haddad para seu lugar. Não queremos saber de família, de afeto, da vida, de nada. Em momento algum alguém checou se Dário ainda respirava. Não interessava. Era importante que ele não pudesse reagir.

E num gesto como o do menino negro que trás a vela, sete meninos, não meninos, trazem em sua humanidade agigantada uma greve de fome. É um gesto.  Comove-me profundamente porque a literatura me permite saber que apagarão esse gesto. Fome por justiça, 24 dias, parecem anos, logo parecerão uma eternidade.

Em súplica, eu peço: Não vamos deixar que a chuva dos deuses do supremo, com tudo, apaguem as velas.

Amém.

Professora, militante, escritora
Mara Emília Gomes Gonçalves é formada em Letras pela Universidade Federal de Goiás. Gestora escolar, professora, militante, feminista, negra. Excelente leitora, escritora irregular. Acompanhe-a também em seu blog: LEITURAS POSSÍVEIS.

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