A orelha do livro nos informa que este romance remete aos dois anos que o autor ensinou em Oxford. Pode ser, mas certamente o enredo não é um relato sobre o vivido, muito embora o ponto de vista da narrativa seja o da primeira pessoa, em que aparece um narrador não nominado – exceto por um apelido inventado no momento, de “Emílio”, pelo colega de college, Kanavagh, quando o apresenta a uma menina de programa numa discoteca.
“Almas Mortes” refere a um dos edifícios da Universidade de Oxford, “All Souls”. E inicialmente fazia crer que se falaria das “almas” desaparecidas de professores da cidade que frequentemente é apontada como uma cidade parada, estática, sem qualquer dinamicidade, ao contrário do que se poderia esperar de uma cidade universitária, que implica a presença barulhenta da juventude e a efervescência das descobertas e análises dos professores. Os “dons” – professores com suas togas – parecem vivos-mortos, voltados muito mais a intrigas e pequenos interesses:
De fato, Oxford é, sem dúvidas, uma das cidades do mundo em que menos se trabalha, e nela é muito mais decisivo o fato de estar do que o de fazer ou inclusive atuar. Estar lá requer tanta concentração e tanta paciência, e tanto esforço lutar contra o aletargamento natural do espírito, que seria uma exigência desproporcional, pretender que além do mais seus habitantes se mostrassem ativos, sobretudo em público, apesar de que alguns colegas costumavam efetuar seus deslocamentos sempre correndo para dar uma impressão de perpétuo sufoco e extrema ocupação…
O narrador ficará dois anos em Oxford, ou seja, duas vezes os três períodos de aulas com a duração exata de oito semanas cada um deles – chamados de Michaelmas, Hillary e Trinity (primavera). Dará aulas de literatura espanhola, respondendo a curiosidades etimológicas que desconhece e inventa sem qualquer constrangimento, sem que seu colega professor faça qualquer comentário. – Em Oxford, ninguém nunca diz nada às claras (a franqueza seria a mais imperdoável das faltas, e também a mais desconcertante). – Numa destas explicações, ensinou que “papirotazo” – golpe aplicado com o dedo indicador – procede do fato de que era com este golpe que batiam nos papiros encontrados no século XIX no Egito… Quando se despede de um colega – Dewar – no término de seu tempo por lá, acaba ouvindo:
– Sentirei falta dos seus fantásticos conhecimentos etimológicos. Sempre me surpreendia extraordinariamente. Ainda me lembro do meu assombro quando você explicou que a palavra papirotazo vinha de papo por designar um golpe que se dava na papada ao contrário: fiquei boquiaberto.
Dado o ambiente por que se deslocaria, o enredo se constrói através das relações que o narrador vai estabelecendo com a cidade, com os rituais da Universidade e com alguns poucos colegas da Universidade.
Os ridículos rituais universitários não poderiam deixar de aparecer: um relativamente ao uso da toga preta… que ele muitas usava, mesmo sem que houvesse prescrição de fazê-lo, com o objetivo principal de contentar os numerosos turistas com quem cruzava no trajeto da minha casa piramidal até a Tayloriana e o secundário de me sentir fantasiado e um pouco mais justificado em minha qualidade de adorno.
O segundo ritual ironizado é aquele dos jantares festivos dos “colleges”, chamados de “high table”, em que a congregação e seus convidados se sentavam numa mesa posta num estrado, enquanto as mesas dos estudantes ficavam em nível mais baixo. A mesa era presidida pelo administrador do college ou algo semelhante, que dava o ritmo do andamento do jantar batendo com seu martelo como aviso para os garçons servirem e retirarem os pratos. Uma das regras cômicas era que cada um deveria falar durante sete minutos com aquele que estivesse sentado a sua direita, a seguir cinco minutos com o que estivesse sentado a sua esquerda, sendo proibido pelo protocolo falar com quem estivesse sentado a sua frente. Tudo isso religiosamente marcado pelo martelo do warden, aqui o Lord Rymer. No caso do jantar narrado minuciosamente, a presença de Clare Bayes com um decote elegante e audacioso levou tanto o narrador olhar insistentemente como o warden se perder completamente no ritmo de suas marteladas, caindo sobre a mesa já bêbado para poder ver mais de perto a razão de seu descontrole. Só pelas páginas desta narrativa e descrição do jantar já vale a pena ler o livro.
Na cidade, o narrador caminhava muito, desenvolvendo ao máximo suas buscas de livros raros nas livrarias da cidade e nas bibliotecas. Vem destas visitasse compras um dos elementos que torna complexo o enredo num tempo curto e num espaço limitado. A partir de certo momento ele percebe que um senhor inglês o segue, indo para as mesmas livrarias, acompanhando seus deslocamentos pelas estantes. Tratava-se de um homem manco que tinha um cachorro que havia perdido uma perna, em função de uma briga depois de um jogo de futebol.
Para sua surpresa, na tarde de um domingo, este homem – Alan Marriot – toca sua campainha, depois de ter consultado a florista em frente para confirmar o endereço. Entra em sua casa e o convida para fazer parte de uma estranha associação com o nome do escritor Arthur Marchen (autor de livros de horror). Na conversa, fica sabendo de outro estranho escritor: John Gawsworth ou Terence Ian Fytton Armstrong, para ele até então desconhecido mas cujas existência e obras passam a ocupar parte do seu tempo.
Também neste encontro Alan Marriot lhe dará uma lição: o horror se constrói sempre que se estabelece uma relação inesperada. E lhe dá um exemplo:
– É normal que o cachorro venha comigo. É necessário. É inusitado, se quiser. Quero dizer, os dois juntos. Mas não há horror nisso. Seria mais chocante se o cachorro fosse com ela. Seria horroroso, talvez. O cachorro é sem pata. Se fosse dela (a florista), não a teria perdido numa briga estúpida depois de um jogo. (…) talvez a tivesse perdido por outra causa. (…) Talvez a tivesse perdido por sua causa. Talvez, para que esse cachorro perdesse a pata pertencendo a essa moça, ela a devesse ter amputado. (…) A ideia é horrível. É horrível a imagem da moça cortando a pata do meu cachorro com as próprias mãos, vendo-o com seus próprios olhos, assistindo a isso.
Em sua relação com os colegas da universidade, merecem registro o colega Cramer-Blake, que se tornará seu confidente desde que lhe disse de seu interesse em Clare Bayes, casada com outro professor, Edward Bayes. Queria então saber se ela tinha ou não amantes e quais suas chances de começar um relacionamento com ela. Ainda que Cramer-Blake tenha recusado uma resposta clara, acabou se tornando uma espécie de cúmplice da relação que se tornou efetivamente a razão do narrador estar em Oxford.
Clare tem um filho, Eric, que estuda em Bristol. Uma doença de Eric o traz para junto dos pais, e neste período o narrador não consegue qualquer encontro com sua amante. Será neste tempo que frequentará a discoteca onde recebe o nome de “Emílio”, e em que encontra Muriel, que acaba indo para sua cama e toda a relação sexual que então ocorre é narrada, mas há sempre a terceira pessoa, ausente, Clare, com que o narrador vai comparando cada gesto de sua parceira eventual…
… quando já estávamos nus e na minha cama, que comecei a pensar em Clare Bayes de verdade e sentir falta dela de novo, ou melhor, (…) a comprovar com estranheza e uma ponta de perplexidade que aquela moça quase gorda e de feições e cachos tão agradáveis não era ela. A fidelidade (o que assim chamamos para nos referir à constância e exclusividade com um determinado sexo penetra ou é penetrado por outro igualmente determinado, ou se abstém de ser penetrado ou penetrar em outros) é produto principalmente do costume, como o é também a assim chamada – inversamente – infidelidade (a inconstância e alternação e o abarcamento de mais de um sexo: a promiscuidade literal (…) Quando se está habituado a uma só boca há muito tempo, as outras bocas parecem incongruentes e apresentam dificuldades: os dentes são grandes demais ou pequenos demais, os lábios são avaros ou excessivamente abundantes, (…) sempre há uma reserva ou uma interrogação a respeito da ordem ou da força com que se devem beijar suas diferentes partes, ou apertá-las, ou mordicá-las, ou investigá-las usando os dedos (…) “Estou com o pinto dentro da boca dela”, pensei ao fazê-lo (…)
Assim, enquanto reflete sobre o que faz com Muriel, os termos serão de comparação com o corpo ausente de Clare. Como disse Bakhtin, o romance acolhe o baixo corporal e a reflexão filosófica mais profunda e abstrata, aqui sobre o que se quer e o que se tem, mesmo durante uma relação sexual.
Há uma terceira personagem importante: Toby Rylands, um catedrático aposentado, espécie de sumidade em literatura. Este foi para o narrador, seu “mestre” em Oxford, enquanto Cramer-Blake teve funções paternas e maternas.
Cramer-Blake era homossexual e tinha suas relações. A partir de certo momento começa a ter doenças frequentes, com licenças para tratamento, com períodos de completo restabelecimento. Embora nada fique explícito, trata-se de HIV positivo. Ele acabara morrendo, notícia que o narrador recebe já em Madri, casado e com um filho recém-nascido, através de carta de Toby. Mais tarde ficará sabendo também da morte deste, e vem daí a primeira frase do romance: “Dois dos três morreram depois que parti de Oxford, e isso me faz pensar, supersticiosamente, que talvez tivessem esperado que eu lá chegasse e consumisse meu tempo para me dar ocasião de conhecê-los e para que agora possa falar deles.”
E é precisamente este “falar deles” que torna complexo o enredo, porque as histórias, os tempos passados e presentes destas personagens darão riqueza ao romance. A história de Clare é minuciosamente narrada. O último encontro, em que Clare é convidada para o acompanhar indo para Madri é minuciosamente descrito e desvela uma amante que sabe que estas relações tem um fim predeterminado.
Dentre as múltiplas reflexões que permeiam as histórias, compartilho uma das passagens sublinhadas. Ela aparece depois do retorno do narrador de uma visita a Toby Rylands, que se queixa do fato de Cramer-Blake não aparecer para visitá-lo, mas o proíbe de transmitir-lhe suas queixas:
Tudo o que nos acontece, tudo o que falamos ou nos é relatado, o que vemos com nossos próprios olhos ou sai de nossa língua ou entra por nossos ouvidos, tudo aquilo a que assistimos (e pelo que, portanto, somos um pouco responsáveis), deve ter um destinatário fora de nós mesmos, e vamos selecionado este destinatário em função do que nos acontece, ou do que nos dizem, ou do que dizemos. Cada coisa deverá ser contada a alguém – nem sempre a mesma pessoa, não necessariamente -, e cada coisa vai se separando, como quem olha, separa e vai atribuindo futuros presentes numa tarde de compras. Tudo deve ser contado pelo menos uma vez, embora, conforme ditara Rylands com sua autoridade literária, deva ser contado segundo os tempos. Ou, o que dá na mesma, no momento certo e às vezes já nunca mais, se não se soube reconhecer esse momento certo ou se deixou deliberadamente que ele passasse. Esse momento apresenta-se *as vezes (a maioria) de maneira imediata, inequívoca e premente, mas muitas outras vezes apresenta-se apenas confusamente e ao cabo de lustros ou décadas, como ocorre com os maiores segredos. Mas nenhum segredo pode ou deve ser guardado sempre para todo o mundo, ele é obrigado a encontrar pelo menos um destinatário uma vez na vida, uma vez na vida desse segredo.
Por isso algumas pessoas reaparecem.
Por isso sempre nos condenamos pelo que dizemos. Ou pelo que nos dizem.
Resta perguntar: um livro como esse, temporalmente situado, espacialmente situado, com o drama de uma personagem – o narrador – será capaz de viver no Grande Tempo? Ora, o que faz um romance viver o Grande Tempo, no sentido bakhtiniano da expressão, não é o tempo da narrativa ou seu espaço, mas o que na individuação dramática está contido do humano que aí se desvela. Penso que Javier Marías caminha para viver no tempo futuro, muito além de seu prestígio contemporâneo.
Referência. Javier Marías. Todas as almas. Tradução de Monica Stahel. São Paulo : Martins Fontes, 1999.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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