TEXTOS SOBRE TEXTOS: UM PÔNEI CHAMADO CAVALO

Acompanhar maravilhado o crescimento de uma criança é a experiência maior que nos é dada pela sorte e pela natureza. Não há olhar atônito, há olhar curioso. E um olhar que nomeia e ao nomear cria um mundo de fantasia em que reina sem absolutismo, porque a parceria com seu outro – o adulto – compõe paisagem e personagem destas nomeações do mundo, já não mais adâmicas porque o que é individual no reino da fantasia se deixa penetrar pelos parceiros com que a criança brinca.

É claro, há brincadeiras solitárias num mundo fechado em que ela reina absoluta, mas a linguagem com que refere, ela já sabe, é também do outro mesmo que o outro dê nomes distintos ao que ela nomeia com nomes outros, fazendo entrecruzarem-se realidades distintas que perdem a distinção: toda criança sabe que no “upa, upa, cavalinho” no pé de um adulto, o pé não é um cavalo e ao mesmo tempo é um cavalo.

Neste reino a lógica da igualdade não funciona. O que funciona é a lógica da metáfora, da ultrapassagem dos limites com que lidam os adultos quando estão sérios. Nem eles, quando brincam com crianças, com filhos e netos, filhas e netas, aceitam limites referenciais que amortecem (no sentido radical da expressão, dão morte) ao mundo.

Pois é neste terreno que trabalha o livro UM PÔNEI CHAMADO CAVALO (Cânone Editorial, 2014), de Alexandre Costa e Santiago Régis. Uma beleza armada de cotidiano. Seus personagens se chamam Fulano Pai e Fulano Filho, com que pretendem lidar com as relações entre pai e filho. Neste texto de literatura infantil – com o qual os adultos têm novo acesso a si próprios – correm livres vários aspectos do mundo contemporâneo. Os autores realçam três deles.

Primeiro, a família triádica de pai-mãe-filho desaparece. Fulano Filho é filho de pais separados. Não mora com o pai. Talvez com a mãe, mas isso pouco importa à história narrada. E este contato periódico, mas não cotidiano entre pai e filho, lhes permite construir um tempo somente deles.

Moacir Gadotti escreveu, depois de sua separação, sobre a dialética do amor paterno. Parece que ele se torna mais visível quando os encontros entre pai e filho se dão sem a intervenção do cotidiano. Cada encontro é uma festa. Cada festa é uma lembrança, uma memória.

Em segundo lugar, as personagens são afrodescendentes. São pardas. Pai e filho em tudo iguais – “um o focinho do outro” – estão marcados pela cor da pele em toda a ilustração. Este dado real nos coloca de imediato diante de outro dado, aquele da exclusão étnica mesmo em contos e narrativas infantis.

Os autores enfrentam aqui o preconceito social, ao mesmo tempo que o calam. Não se trata de livro militante. Trata-se de livro que traz para as páginas da literatura infantil personagens presentes e ao mesmo tempo esquecidas de nossas vidas.

Por fim, o texto destaca com clareza a plurissignicação religiosa do mundo. Ao remeter à canção que pai e filho escutam de Jorge da Capadócia, de São Jorge, também chamado Ogum, permite que se tenha não um sincretismo religioso, mas uma visão distinta sobre uma mesma personagem histórica que, apesar de ter perdido por obra e graça de João Paulo II o codinome de Santo, iluminou o mundo e se tornou objeto de reverência. São Jorge – insisto no São – em seu cavalo enfrenta o dragão.

Aqui os autores também sabiam que estavam enfrentando um dragão. Ao referenciar uma mesma personagem histórica com dois nomes e, portanto, com dois sentidos distintos segundo ensina o matemático G. Frege, fazem eclodir o radicalismo e o fanatismo religioso, não daqueles que chamam Jorge de Ogum, mas daqueles que chamam Jorge de São Jorge! O pentecostalismo jamais perdoará a existência de outros nomes para as mesmas realidades…

Certamente este livro deve ter encontrado dificuldades de circulação, mesmo escolar, em função da interdição que estes três aspectos podem suscitar em espíritos mais ou menos tacanhos que, de Bíblia em punho, leem o Antigo Testamento em busca de um Deus irado e vingador.

E no campo da vingança divina de que eles se julgam expressão, não é possível admitir a leitura de um texto em que há pais separados, em que as personagens pertencem a uma minoria étnica (minoria só economicamente) ainda que estes mesmos sujeitos de Bíblia em punho sejam negros ou pardos (o Deus de sua representação é branco e com ele querem se identificar). E, como se não bastasse, novamente, a presença de São Jorge/Ogum lhes é ainda mais abominável.  

No entanto, e precisamente pelos mesmos motivos da interdição, o livro, pela ilustração e pela história, mereceria leitura de todos os pais, separados ou não; de todas as crianças para recuperarem seus pais e suas afinidades; em todas as escolas para aprenderem que o mundo não é definido por um único discurso nem por uma única realidade.

Um pônei pode ter por nome Cavalo, um filho pode ter por nome Filho e um pai pode ter por nome Pai. E Filho e Pai podem brincar de cavalos, muitos cavalos com almofadas, com travesseiros, com vassouras: tudo será cavalo se a imaginação assim o quiser quando se brinca e se apreende o mundo neste gesto tão humano da nomeação criativa.  

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João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.