Textos sobre textos: Terra Sonâmbula

Um Mia Couto é sempre um Mia Couto: de produzir fôlego, paradas e sofreguidão. É um autor que conhece seu ofício como ninguém. E reúne em suas obras, mas particularmente neste Terra Sonâmbula  um misto de realidade e realismo mágico, um olhar europeu da África e um olhar africano sobre os desfazeres europeus colonizadores.

Este romance, um dos mais festejados e reeditados de Mia Couto, tem como estrutura o desenrolar de duas histórias, de dois meninos-rapazes, Muidinga e Kindzu: são dois enredos, duas histórias, personagens distintos que não se entrelaçam, ainda que o leitor desde a leitura do primeiro Caderno de Kindzu se pergunte como se unirão estas histórias, porque alguma razão conduzia a independência das histórias paralelas, mas que reunidas num mesmo livro deveriam ter, em algum momento, um encontro.

O pano de fundo de realidade é a guerra civil moçambicana, ainda que esta não seja seu tema. Ela existe. E a existência das personas das histórias é marcada pela guerra, pelos bandos e pela “nova organização” política do pós-independência de Moçambique, não sem farpas aos “administradores” da nova ordem que invocam sempre os inimigos da nação num discurso eivado de uma “dialética marxista” distante a anos-luz da obra de Karl Marx.

Vamos às histórias:

Na primeira história, somos apresentados a Muidinga e Tuahir, já caminhantes em estradas sem vida. Encontram um machimbombo (um ônibus) queimado, de que fazem alojamento depois de enterrarem os corpos carbonizados e um corpo de homem que fugira. Junto a este encontraram uma mala contendo mantimentos e um conjunto de cadernos. Estes cadernos contaram a segundo história que assumirá de fato o primeiro plano da narrativa. É a leitura destes cadernos que darão vida a Muidinga e Tuahir, que num mundo parado pela guerra estão alojados sem terem para onde ir ou sem saberem para onde ir. Suas andanças limitam-se aos arredores do ônibus, andando sempre em círculos. Poucos são os episódios que dão movimento a este mundo de um velho e um menino: o encontro com Siqueleto, o velho magro e esfomeado, sobrevivente de uma aldeia saqueada pelos bandos em guerra e abandonada por seus habitantes, restando Siqueleto que se faz semente para que uma nova aldeia surja; o encontro com o fazedor de rios, que cava a terra para “fabricar um rio” que efetivamente vem a correr enquanto dura uma grande tempestade; o encontro com as idosas que em rito contra a praga dos gafanhotos foram surpreendidas por Muidinga, que presenciando suas danças atravessou um interdito e foi castigado com um “estupro” coletivo, antes mesmo de sua iniciação por “mãos sonhando mulheres”. Chega enfim um momento em que Tuhair concorda com Muidinga e afastam-se do ônibus alojamento em busca do mar, passando um pântano em que picado por mosquitos, Tuahir adoece e vai morrer quando chegam ao mar, o corpo posto em uma canoa de nome Taímo: aqui se encontram as histórias. O barco que fora a “locomotiva” de viagem de Kindzu servirá de esquife para Tuhair… e Muidinga se descobre Gaspar.

A segunda história, aquela contida nos Cadernos de Kindzu, são escritas como se fossem memórias deste: um registro de sua vida. Ao contrário de Muidinga que não se lembrava de seu passado, Kindzu conheceu família, pai Taímo e mamã (surpreendentemente não nominada, é sempre “minha mãe”), a aldeia com seus moradores, incluindo um comerciante indiano (Surendra Valá) com quem Kindzu gastava tempo em conversas. Houve a independência e como sua mãe ganhara logo após um filho, o pai lhe deu o nome de Vinte e Cinco de Junho. Ficou chamada Junito, este que por ordem do pai é largado no galinheiro, coberto por vestido de penas tecido pela mãe. Junito passa a viver com as galinhas… até fugir e sumir na história restando como lembrança para Kindzu. Depois da morte do pai, este descobre a existência de guerreiros da justiça, os naparamas. Juntar-se a eles tornou-se o sonho de Kindzu e sai em barco para não deixar rastros e não ser seguido pelo pai, a quem deixava, com a viagem, de levar os alimentos da tradição. Kindzu viaja pelo mar, chega a Matimati, um povoado “despovoado” pela guerra mas repleto de deslocados famintos. O povoado é administrado por representante da “nova ordem”, por um “administraidor” como o chamava a mulher. Kindzu não é bem recebido no povoado. Mas na praia fica sabendo que um navio com mantimentos havia naufragado. A narrativa do episódio é conduzida por um ex-assessor da “administração” numa linguagem burocrática. Segundo esta narrativa, neste contínuo desdobrar-se de narrativas que compõem os Cadernos de Kindzu, “… toda a tripulação desapareceu por intermédio de ondas gigantes e de duração interminável. As autoridades imediatamente desencadearam uma ofensiva de averiguações político-ideológicas tendo apurado a presença do inimigo da classe”. Kindzu, saindo de Matimati, acaba também ele no navio naufragado e nele encontra Farida, a mulher que passa a amar e a quem promete encontrar seu filho Gaspar. Esta promessa faz que Kindzu retorne a Matimati inciando sua busca. E nesta busca se dá a formação do homem Kindzu, que reencontra no povoado seu amigo, o indiano Surendra Valá que junto com o ex-assessor estavam montando negócio de comércio, sempre muito lucrativo em tempos de guerras, com um estoque já amealhado com o desvio dos donativos chegados por navios anteriores. Chegam a inaugurar a loja, no antigo casarão de Romão Pinto, o pai adotivo de Farida e também pai de Gaspar! No convívio com os habitantes de Matimati, desenrolam-se inúmeras histórias que comporão a busca por Gaspar, passando pelas aventuras de Kindzu com a mulher do administrador, Carolinda. Guiado por Quintino, um bêbado de Matimati, Kindzu chega a um campo de deslocados, onde encontra a tia de Farida, Euzinha que lhe diz que Gaspar havia sido transferido para outro campo porque os meninos e jovens que os bandos encontravam eram obrigados a se “alistarem” e irem para a guerra… Desiste Kindzu de sua busca, volta a Matimati e lá toma um ônibus em retorno a sua aldeia. Nesta viagem, Kindzu já dado por falecido depois do incêndio do ônibus, vê Muidinga e o chama (talvez de outro mundo) de Gaspar… E as histórias se encontram.

O leitor, percorrendo os dois mundos das duas histórias, desde o começo desconfia: onde os fios se encontrarão. De início, seria de esperar que Junito, o filho tornado galináceo, poderia ser o ponto de encontro, não sendo mais do que Muidinga. Não foi. Muita história correu até o encontro de Farida, o conhecimento da existência de Gaspar, filho do estupro praticado pelo colono tuga Romão Pinto.

Como em toda obra de Mia Couto, a narrativa é perpassada por mitos moçambicanos, mitos africanos, histórias e mais histórias. Elas desvelam a dicotomia de que a própria obra é exemplo: escrita em português, preenchido de léxico das línguas da terra, o próprio enredo de invenção se deixa penetrar por enredos míticos que povoam o imaginário africano e que são inacessíveis ao pensamento europeu. A duplicidade da história é também a duplicidade do dizer narrativo e a origem do povo moçambicano de que Mia Couto é parte.

O livro está cheio de metáforas. Junito, aquele que recebeu por nome a data da independência é encerrado num galinheiro em vestes que não lhe são próprias. Moçambique, independente, se tornar uma república socialista, em vestes e palavras que não lhe são próprias. Como Junito teve que aprender a cocoricar, a administração da nova ordem tinha que aprender o jargão: o discurso de Assane, o ex-assessor da administração de Matimati e as falas do próprio administrador, chamado pela mulher de “administraidor” revelam esta dualidade entre o espírito cultural próprio e o que se lhe impõe de fora.

Mia Couto encanta em suas histórias. Mas também é um dedicado descobridor que mobiliza os recursos da língua portuguesa fazendo-a falar magicamente. Em qualquer obra de Mia Couto perdemos o fôlego de instante a instante pelo inusitado, pelo que nos mostra que estava ali, nas palavras… Extraio da narrativa algumas passagens, descontextualizando-as. Se há ações que praticamos com a linguagem, como narrar e performaticamente se apresentar como escritor de “brincriações”, há no trabalho sobre a língua um esmero que talvez somente o trabalho da língua na constituição duplicada do cidadão moçambicano possa iluminar. Este duplo constitutivo (do eu europeu e do eu africano) abre caminhos para o fazer estético que implica uma ação sobre a língua. Chama atenção neste livro, para além das analogias e das metáforas, da presença do mito e da ironia, das imagens em cena, também a “produtividade lexical” que faz a língua dizer mais do que diria sem o esforço da ação estética. Vamos a alguns exemplos (os grifos são meus):

  1. Sempre a água me trouxera facilidades, nela eu ficava no à-vontade de gafanhoto em capinzal. Naqueles momentos, porém, concorriam confusas desordens. Me  vinha vontade de regressar, tornar a alimentar meu falecido velho, me simplificar no nada acontecer da aldeia. 
  2. As ideias, todos sabemos, não nascem na cabeça das pessoas. Começam num qualquer lado, são fumos soltos, tresvairados, rodando à procura de uma devida mente.
  3. Sou eu que ando a ratazanar seu juízo.
  4. O velho sai ao desengonços, tropernando pelas escadas…
  5. Que protestava o velho assim tão espalhafarto.
  6. É melhor a gente se emborar.
  7. À volta, se escuta apenas o silêncio pingando.
  8. Timiudamente, despontam os primeiros fios de conversa…
  9. O velho Tuahir admolestava: não se chateie, miúdo.
  10. Minhas mãos tinham o malvoroço de quando seguramos um recém nascido.
  11. Mas vendo seu tamanho maiúsculo me dava ainda mais pena lhe ver assim perninulo.
  12.   … ver o céu, todo redondo, estrelinhoso.

É impressionante a capacidade de Mia Couto de fazer a língua falar, juntar palavras em parte de palavras por um jogo paradigmático, em que a forma da própria palavra chama outra palavra fazendo com que reunidas elas digam a si próprias e mais que isto. Tornar “espalhafatoso” em “espalhafarto” é um achado linguístico. A questão não é somente de ordem semântica (todo o espalhafatoso é farto de espalhafatos), é de ordem do trabalho sobre os recursos expressivos que fazem-nos ultrapassar sentidos e formas.

Uma pesquisa de um linguista poderia apontar os modos de composição lexical de Mia Couto. Certamente isso é possível. Mas certamente encontrar o algoritmo da produtividade lexical não será suficiente para explicar esta falta de fôlego que ler um livro de Mia Couto nos traz: pela história que conta aliada aos modos de contar chegando à filigrana da alteração e criação lexical. Tudo isso faz com que Mia Couto ao escrever sempre está em interinvenção: inventando e intervindo (Interinvenções é o título que Mia Couto deu a uma coletânea de crônicas, ensaios e conferências que proferiu durante certo período; depois, seguiu-lhe outra coletânea: Pensatempos). 

Uma nota da ordem da história do meu exemplar: ganhei-o da colega Profa. Dra. Helena Sá, da Universidade de Aveiro, em 2003, quando por lá estive como professor visitante. A dedicatória: “Lisboa 2?/03/03 Finalmente posso oferecer-lhe a minha primeira descoberta da literatura africana, o primeiro fascínio com a linguagem de Mia Couto (que vou agora continuar numa outra voz, com Guimarães Rosa, uma descoberta vossa). Espero que esta leitura lhe dê tanto prazer quando a mim. Helena”. Havíamos conversado, antes de eu receber sue presente, sobre a aproximação da linguagem de Mia Couto à linguagem de Guimarães Rosa. Eu me surpreendera com algumas páginas do escritor moçambicano e imediatamente fiz a ligação com o autor brasileiro. Somente muito mais tarde, num dos textos de Interinvenções descubro o tributo que faz Mia Couto a Guimarães Rosa.

Quem ainda não conhece qualquer livro de Mia Couto, saiba que está perdendo muito, muito mesmo…

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.