Textos sobre textos: Sete Dias a Cavalo

O escritor pernambucano Hermilo Borba Filho, falecido em 1976, deixou-nos uma vasta herança literária: foi novelista, romancista, crítico literário, dramaturgo e diretor treatral (foi fundador com Ariano Suassuna e outros do Teatro Popular do Nordeste e depois foi um dos fundadores do Teatro de Arena do Recife). Suas obras não merecem entrar no esquecimento, até porque são representativas do que de melhor se produziu no país em literatura fantástica.

Como nordestino, o autor sempre buscou raízes populares (particularmente no teatro). Trouxe o mundo das histórias e dos causos para a literatura, num estilo bem marcado pela perspectiva fantástica.

O livro Sete Dias a Cavalo (Editora Globo,1975) é um conjunto de 12 novelas curtas. O autor as chama de novelas, mas a crítica situa o livro entre os contos por ele publicados. Este volume faria parte da trilogia de novelas fantásticas sobre “o povo miúdo e graúdo do nordeste, tal como ele os vê” (Quarta-capa). No entanto, foram quatro os livros com novelas que de forma fantástica retomam histórias nordestinas.

Embora se diga que Hermilo Borba Filho não se deixou levar pelo “realismo” do realismo mágico, adentrando para assuntos político-sociais, creio que o leitor atento descobre suas remessas, no fantástico de suas histórias, à realidade social e política brasileira. Tratando-se de 12 novelas, vou aqui restringir minhas anotações a apenas algumas delas.

Hierarquia parte de uma questão absolutamente individual de um soldado  que leva a toda a hierarquia de poder a se mobilizar. Eis a questão, para um aperitivo do estilo de narrar:

“… nada impedindo que seu órgão quente, mesmo repelido pela frieza, se arrastasse pelo quarto, só cobra, e cobra grande, bem grandona, já no corredor, empinando-se, a cabeça com os seus delicados compartimentos e em cada um dos compartimentos tampas de cerveja, pontas de cigarro, pules de jogo-do-bicho, papel de jornal breado, algodões de dentista, gazes e esparadrapos, uma esponja  do mar, cascas de  aruá, uma aliança de latão; e no arrasto invadindo o quarto deixado só ouviu o grito no desespero, em seguida os ais, mais em seguida mas quase tudo no mesmo tempo é porque contado assim só dá pra dizer uma coisa de cada vez, o ruído da carreira, desembalada na madrugada fria, recolheu-se o órgão, ninguém diria, tudo como se nada fosse, murcho todo ele, encolhido, nu sem farda, descoberto sem quepe, descalço sem rangedeiras, desarmado sem rabo-de-gato, desarvorado sem bandeira:

                                            Eis o soldado que perdeu sua parada

                                            Tomou um copo de cachaça

                                            Foi falar com o Anspençada.   

De “autoridade em autoridade”, do  chefe imediato ao cabo, do cabo ao Caporal, do Caporal ao Furriel, para o sargento, para o Alferes, para o Delegado, para major, para o comandante, o conjunto militar se encaminhando para a autoridade religiosa, para o sacristão, deste para o padre, que juntou todos para irem à autoridade jurídica, o tabelião, o promotor, o juiz da paz, e foram todos ao Prefeito, de lá para o bispado, e acharam que deveriam ir ao Diabo, mas o diabo não foi encontrado e então “foram acudidos por um trêfego, buliçoso, chocarreiro cara de pau, de nome Mosquito, que aos pulos e cambalhotas no meio da poeira conduziu-os à presença do Gerente da The Great-Western of Brazil Railway Company LImited, que tudo ouviu sem pestanejar, fumando o seu cachimbo de espuma-do-mar, e deu-se

                                              O Gerente disse não

                                            Tomou uma talagada

                                            Com aguarrás e alcatrão

                                            Pegou todos num punhado

                                            Botou num caldeirão

                                            Mexeu bem mexido

                                            E comeu com pirão.

Como se pode ver, o percurso pela hierarquia chegou ao seu apogeu no Gerente que comeu a todos com pirão (autoridades militares, religiosas, jurídicas, civis). Pensando que o livro foi publicado em 1975, quando vivíamos o “Brasil, ame-o ou deixe-o”, qualquer leitura que perceba a alegoria não estará enganada.

As Esporas focaliza uma relação mal sucedida, com traição e morte e a condenação do amante a ver eternamente as esporas da amante… Em Jogo de Bilhar o personagem central dá-se ao desfrute da vida, dia todo a descansar para durante a noite jogar bilhar e ganhar sempre, torcedores fazendo apostas. Ao final da noite, sempre descia do Alto do Lenhador (zona de meretrício) Jesuína Guardanapo, num abafa-banana de homem, com quem Janjão terminava suas noites. Rotina diária até aparecer num baile da Padroeira uma “fêmea de azul-claro, roliça, alva, mais para o senhoril, não propriamente camafeu mas esfinge cunhada em moeda antiga”. Com ela Janjão dança e passa a “carambolar carambolas, o taco dentro as bolas fora, caramboleio, carambó-bó-bó, até que veio um golpe militar, os dois ficaram sozinhos, foram presos como subversivos, mas nem por isso deixam de carambolar.”

A novela Sete Dias a Cavalo, que dá seu nome à coletânea, para mim é a mais bem acabada das histórias que narrou neste livro Hermilo Borba Filho. Trata-se da viagem de um fiscal de rendas pelos domínios do Patriarca que vivia numa casa grande apalacetada na cidade. O Patriarca designou Neco Graveto, seu agregado pau para toda obra que fazia desaparecer desafetos, para acompanhar o fiscal visitando as fazendas e engenhos, cada um deles gerido por um dos filhos do Patriarca.

A viagem a cavalo, por léguas e léguas de terras, encerra-se em sete dias dos quais o fiscal das rendas não retorna e não se sabe o que aconteceu com ele, se anda ainda a vagar pelas terras a perder de vista do Patriarca.

A cada parada, quando chegam ao anoitecer à sede da fazenda/engenho, anota o fiscal o que lhe informa o dono, o filho do Patriarca. E há obviamente uma descrição de cada um deles, como são, como vivem e como recebem o menino de recados do pai acompanhado pelo fiscal. E na minha leitura, cada um deles representa um dos pecados capitais:  na primeira parada, Solidão, encontram Albino-Olho –de-Fogo e sua mulher “senhora dona da casa que recebia visitas sentadas num pequeno trono, ladeada por duas negras, uma vestida de verde e a outra de encarnado[..], os agregados formando alas, as filhas, os filhos, os genros, as noras e os netos, um por um aproximando-se, curvando-se no beija-mão, a mão estendida da senhora nem tremia sequer, e eram curvaturas, ósculos, zumbaias e salamaleques…” Trata-se, obviamente, de uma alegoria da soberba, afinal “havia o mundo e havia ela, que condescendia em viver no mundo”.

 Um dia de cavalgada, léguas vencidas, chegam a Barra dos Ventoso, gerenciada pelo filho Artemus-Lubim, “o que é é sumítico, é homem capaz de descomer numa peneira para aproveitar os carocinhos do feijão que ficam”. Sem qualquer dúvida, trata-se da avareza.

Como sempre, às quatro da madrugada partem para Olho d’Água das Panasqueiras, “onde reinava o Coronel Abecê, segundo Neco Graveto mais conhecido por Abecê-Tripé, libidinoso impenitente e contumaz, anão por natureza e pela maldade de Deus, esquisito, dizia, vai ver, aquele tico de gente possuidor de assustadora estrovenga, daí o apelido, aquinhoado por muitos homens, valendo por dez, cria, o terceiro filho do Patriarca”. Chegam à propriedade em noite de festança, abastança e sexo. Mia suma vez, outro pecado capital: a luxúria.

No quarto dia chegam às terras de José Amâncio, o coxo, conhecido como José Amâncio-Caga-Raiva. Ele “tem raiva permanente “, “bradava injúrias, blasfêmias e outras catotas”, sempre resmungando e ameaçando. O fiscal das rendas é praticamente escorraçado da fazenda… Trata-se do pecado capital da ira.

De madrugada partem para as terras de Pharmácio-Zanoio, que vesgo era. Lá foram recebidos com um banquete em que Pharmácio se banqueteava com “patos e galinhas-d´´agua, capotes e paturis, rolinhas e nambus, porcos e capivaras, veados e tatus, vacas e carneiros, farofas e arrozes, queijos e frutas, doces e babas-de-moça e sequilhos e bolos-de-goma e o inglês e o da bacia e o do rolo e refrescos e vinhos e águas”. Comia até que sua mulher, uma Alves da Silva, irmã das mulheres dos demais filhos do Patriarca, gritava: “Chegoôôôôuuuuuu!”. Eis o pecado: a gula.

De lá seguem rumo a Tororó, terras em que reinava Quilidônio, lábio leporino, penúltimo filho do Patriarca. Lá sequer se banquetearam. Quilidônio, na varanda, desfilava: “o velho Eleutério tem um zebu que só podia ser meu, no engenho Penderaca tem uma vaca leiteira de cinquenta litros diários que só podia ser minha, o cabriolé de Fanal da Luz, equipado como está, só devia ser meu, o alazão de Porfírio Tolentino, baixeiro como é, só estaria bom nas minhas mãos”. Cobiçar os bens dos outros era sua vida. Eis a inveja.

Seguem como sempre, às quatro horas da madrugada, para o Engenho Preguiça, propriedade de Reliquiso-Muçu, o ultimo filho do Patriarca. Por lá, tudo estava às moscas. Ninguém fazia nada. Todos estavam sempre cansados. Obviamente, o próprio nome da propriedade já denuncia o pecado capital da preguiça.

No percurso de uma fazenda/engenho para outra, às q   uatro horas da tarde, sempre havia uma batalha de dois exércitos: os morenos e os loiros. Um com a cruz, o outro com o estandarte em que figurava um bode… Este exército chefiado por um quadrípede, um bode… A luta era renhida entre os anjos e os demônios, que esta é a alegoria. As descrições das batalhas vão desde as batalhas medievais, passando pelo uso das armas brancas e pela pólvora. A última batalha é de fitas, e surgem aves das mais variadas cores. Uma espécie de paz decretada entre anjos e demônios – um fim de mundo?

Para os amantes da literatura fantástica, sem sombra de dúvidas este é um livro de estar na estante. Para aqueles que levam em conta a cultura popular, este é um “Rabelais” nordestino, brasileiro. De qualquer ângulo, este livro entre os demais de Hermilo Borba Filho marca a literatura fantástica brasileira e pode ser colocado ao lado de O Coronel e o Lobisomen, de José Cândido de Carvalho.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.