O escritor angolano Ondjaki põe numa mesa de bar um excelente narrador que conduzirá todo o desfiar de um enredo cheio de percalços sofrido por um defunto de nome AdolfoDido. O narrador paga com as histórias que conta as ‘birras’ que o ouvinte paga. Ouvinte atento e generoso, mas cuja existência só podemos conceber porque o narrador com ele fala sem que ele jamais fale.
O enredo cômico do morto sem enterro, um defunto personagem de que falam todos os amigos, pois todos queriam lhe prestar as últimas homenagens com enterro digno. Mas não é um enredo simples de acontecimentos numa Luanda que inicia uma vida de paz, com o éme (MPLA) comandando o país pós independência e criando um socialismo de cima para baixo.
As personagens fundamentais que aparecem nesta narrativa em torno da mesa de bar são os dois amigos de defunto, Jaí (um professor albino), Burkina (anão candongueiro – táxi que transporta por roteiro pré-dado quase sempre mais pessoas do que nele cabem, equivalente mais ou menos às nossas vans), a KotaDasAbelhas (personagem entre cômica e mítica, é rainha de uma colmeia), DonaDivina e KiBebucha (candidatas a viúvas de AdolfoDido e a pensionistas do Estado como viúvas do estado, porque viúvas de combatentes pela independência do país). O folclore humano comparece em todas as suas formas – do menino PCG a JuizaMeretíssima, passando pelas prostitutas Eva e Madalena, fundadoras do inexistente Sindicato Nacional da Putas.
Cada percalço, cada acontecimento é narrado com uma linguagem que somente encontra paralelo nas novelas brasileiras, chamando continuamente Odorico (O Bem Amado) e Roque Santeiro. Sempre que o narrador usa uma expressão arrevesada, acrescenta como “dizia o kota (amigo) Odorico”.
Neste Quantas madrugadas tem a noite, o trabalho com a linguagem de Ondjaki é o mais importante. Pode-se rir com alguns dos acontecimentos; pode-se desconfiar sempre de suas verdades; pode-se estranhar a prisão do defunto ou rir às gargalhadas com a audiência da JuizaMeretíssima num processo mandado instaurar pelo governo para acabar de vez com este defunto e definir a primeira viúva do Estado!
Como AdolfoDido, morto, consegue ser preso? Corpo na morgue, uma autópsia inconclusiva o mantinha na gaveta até que DonaDivina, manobrando com suas antigas relações, chega ao morgue como esposa primeira acompanhada de membros das Forças Armadas. Carrega o corpo; quando KiBebucha chega para reclamar seu defunto, não há mais defunto. Está armada a confusão que vai levar AdolfoDido à cadeia: um cadáver aos cuidados da polícia. Até que se resolva quem será a primeira viúva do estado, e as duas estavam mesmo interessadas na pensão que lhes valeria aparecerem como a viúva do defunto.
Em Luanda chove o tempo todo nos acontecimentos narrados. Chuva para inundar. Torneira sempre aberta de causar saudades do sol. Assim mesmo, convencido o Subintendente Galdino de que era necessário “beber” o morto, todos se reúnem na casa da KotaDasAbelhas para beber o mel e besuntar o defunto com um preparado que lhe deu sempre o cheiro gostoso do mel, sem inícios da putrefação natural. Assim, as andanças de AdolfoDido do morgue para a esquadra, da esquadra para o tribunal, e para a festa de velório na casa de KotaDasAbelhas não criaram qualquer problema olfativo!
E como costuma acontecer, a imprensa escreve, mancheteia. O assunto vira questão nacional. “É sempre assim, como dizia o kota Odorico, onde são dão acontecências relevosas, os jornaleiros aparecem abutremente, tendo as notícias factuais como não, inventando mesmo se for preciso.”
Tornado personagem nacional, pelas mãos da imprensa, AdolfoDido revivido vive escapando das perguntas que lhe fazem sobre como é o outro lado da vida. E o governo se vê as voltas porque “Depois desses dias vieram outros dias, aquilo deu alguma maka entre os principais quimbandas, o facto do gajo ir e voltar assim sem querer dar explicações, o governo é que ficou lixado sem poder explicar às populações que aquilo não tinha sido nenhum golpe nem contra-golpe informativo, que não havia nenhuma manobra secreta ou mal escondida, e que o morto era mesmo um morto que tinha voltado, embora oficialmente, e nesse quadro das globalizações que se anda viver, o governo nunca ia poder afirmar aquilo, porque depois ia dar maka com outros governos e entidades igrejísticas, ficou só assim o visto pelo não dito, os jornais comeram por fora pra evitar de falar no assunto, nem convinha mesmo, principalmente nesses âmbitos de terrorismo que tavam na moda, se descobrissem que um gajo podia ir e voltar ileso isso ia se transformar certamente num bom negócio, e os bons negócios são sempre ilícitos, como sabes, mesmo o Adolfo recebia mal as pessoas que lhe queriam indagar desses assuntos, seja do ponto de vista oficial, esotérico ou curiosisticamente perguntativo, como não disse, mas podia ter dito, o kota Odorico.
A citação, mais ou menos longa, é apenas para dar um gostinho da prosa de Ondjaki neste romance de enredos inimagináveis.
Voltemos à festa do velório. Todos já nos conformes, grossos de bebedeira, deixam o corpo de AdolfoDido na casa da Kota, enrolado na bandeira nacional. No dia seguinte, quando deveria acontecer a missa de corpo presente, indagado pelo padre e pela DonaDivina, verifica a esquadra que não tem o corpo! Correm para o lugar da festa, mas encontram apenas a bandeira no chão! Nenhum barulho na casa… Enquanto espinafrava o subalterno, nenhum dos policiais ouve o tiro que acontece dentro da casa, quando o ressuscitado AdolfoDido mata o Cão da KotaDasAbelhas…
Sai vivo e ressurgido o defunto. Correm a querer suas carícias as duas candidatas à pensão do estado e são por ele rejeitadas, porque, afinal, de lá de cima acompanhou todo o enredo de seu não-enterro, da sua missa de corpo ausente!
As madrugadas já passaram… a claridade começa a iluminar a mesa do bar. Tomam as saideiras e confessa o narrador que é o próprio AdolfoDido que vive de contar o que não viveu porque estava morto… Mas narra equilibrando as custas: paga as birras com as histórias.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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