Textos sobre textos: Prisão Perpétua

O escritor argentino Ricardo Piglia reúne neste volume uma novela brilhante – título do livro – e mais seis excelentes contos relativamente longos. Do ponto de vista da construção narrativa, chama atenção os “narradores” postos a falarem em cada um dos componentes desta coletânea. Do ponto de vista sociológico, merece destaque o fato de que seus heróis são, todos eles, sujeitos marginais, que agridem a normalidade bem posta do herói romântico. Ao contrário, são tipos que ninguém pretende imitar, mas que por isso mesmo, na sua vida “fora do estatuído”, trazem reflexões extremamente poderosas para se entender o cotidiano, a rotina, a ordem.

Iniciemos pela novela: o narrador começa a lembrar conselho de seu pai, para depois afirmar que deve escrever sobre si próprio, e não sobre seu pai. Chama ao texto um diário que começou a escrever mais ou menos na época em que seu pai, um médico peronista perseguido, muda-se de Buenos Aires para o interior (Mar del Plata).

A novela é recheada de pequenas narrativas, anotações, todas supostamente retiradas do Diário. Algumas destas narrativas são contos curtos. Outras vezes o que temos é uma sequência de aparente anotações de extraio o exemplos

A caça de elefantes. Se a literatura não existisse esta sociedade não se daria ao trabalho de inventá-la. Seriam inventadas as cátedras de literatura e as páginas de crítica dos jornais e as editoras e os coquetéis literários e as revistas de cultura e as bolsas de pesquisa mas não a prática arcaica, precária, anti-econômica, que sustenta a estrutura.

A situação atual da literatura sintetizava-se, segundo Steve, numa opinião de Roman Jakobson. Quando foram consulta-lo sobre o oferecimento de um cargo de professor em Harvard a Vladimir Nabokov, ele disse: Senhores, respeito o talento literário do Nabokov, mas a quem passa pela cabeça convidar um elefante para ministrar aulas de zoologia?

A estúpida e sinistra concepção de Jakobson é a expressão sincera da consciência de um grande crítico e grande linguista e grande professor que supõe que qualquer pessoa está mais apta a falar da arte da prosa que o maior romancista deste século. A autoridade de Jakobson permite-lhe enunciar o que todos seus colegas pensam e não têm coragem de dizer. Trata-se de uma reivindicação de classe: os escritores não devem falar de literatura para não tirar o trabalho dos críticos e dos professores.

É nesta cidade de Mar del Plata que o narrador-personagem conhece seu outro, e que dominará toda a novela: Steve Ratliff, o “inglês”. A este, o narrador atribuirá seu destino de escritor pois foi ele quem o colocou em contato com a literatura norte-americana. Encontram-se os dois no bar Ambos Mundos. Amiudadamente. Num destes encontros, Ratliff entrega ao jovem narrador um original seu: um conto “O fluir da Vida”, narrativa com que se encerra esta novela. Do começo deste texto, duas passagens: “Um homem prisioneiro de uma história, empenhado em conta-la até demonstrar que é impossível esgotar uma experiência. […] Um narrador, diz o Pássaro, deve ser fiel ao estado de um tema. Busca surpreender num espelho os reflexos de uma cena que acontece em outra parte. O relato está ligado às artes divinatórias, diz Pássaro. Narrar é transmitir à linguagem a paixão do que está por vir.  

Ratliff, efetivamente, havia se apaixonado por uma mulher (Pauline O’Connor). Ela o abandonou para se casar com um engenheiro que veio trabalhar na Argentina. Ele seguiu seus passos. Veio para a cidade em que morava o casal. Por alguma razão que não se explicita na narrativa, Pauline matou seu marido e entregou-se à polícia. Ela passou a viver na prisão. E ele viveu perpetuamente na prisão do amor por esta mulher.    

Atas do julgamento é o primeiro conto. Trata-se de um depoimento de um acusado de ter assassinado um general (caudilho uruguaio). A palavra, uma vez introduzida pelo narrador, passa a ser somente do acusado Rebustino Vega. O que se narra são as constantes escaramuças entre federados e “centralistas”. O general reunia seus homens para pelearem. Numa destas ocasiões, fez o grupo fugir sem ter enfrentado o inimigo. Diziam que tinha se vendido! Desde então o general estava “morto”, e o que fez o acusado era o que ele tinha que fazer.  Foi por isso que fiz o que fiz. Mas já tinha acontecido antes, naquela noite no Bajos de Toledo, enquanto a chuva não deixava que a gente respirasse tomando todo o ar. Foi dessa vez que aconteceu. E não foi por diversão. Nem por medo de lutar, como andam dizendo, mas por coragem e porque o General já não mandava nem nele mesmo. E foi dessa vez que nós falamos para ele. O que aconteceu depois, foi como se não tivesse acontecido.

A caixa de vidro. Este é um conto que tematiza a amizade e a não-ação no momento necessário. Rinaldi, a personagem central, dentro de um parque encontra um menino que lhe entrega uma caixa de vidro – um jogo, golf. O menino sobe uma torre, e do alto vê a cidade. Quando começa a descer, um dos suportes se desprende e o menino cai e morre. A descrição deste momento entre os tateios em busca do apoio e a queda, enquanto Rinaldi assiste a tudo sem nada dizer e nada fazer é a parte mais tensa do conto. Depois deste acidente, Rinaldi – que vivia numa pensão sozinho – convida para viver com ele o narrador da história. Mais uma vez aparece um Diário em que Rinaldi registra suas impressões sobre o que vive. Há uma mulher: Aurora. E Rinaldi vive confinado, acompanhado daquele que recolheu e cuidou e que agora o cuida. “Não é preciso falar. Olhamo-nos em silêncio. Nada como um segredo para unir os homens. Se esta compreensão é o que o mundo chama de amizade, as relações entre mim e Rinaldi são, sem dúvida, de amizade.”

Anotações sobre Macedônio num diário. Todo o conto são as anotações, a primeira de 5.VI.62 e a última datada de 9.X.80. Aqui o tema é a própria literatura, o narrar. Na primeira anotação, anota-se que o Prof. Carlos Heras fala sobre Macedonio Fernández, um promotor que teve a glória de conseguir que a absolvição de todos os réus que lhe caíram nas mãos. Era um escritor e teria feito notas manuscritas no exemplar de Una novela que comienza existente na biblioteca. O narrador vai em busca deste livro e todas as discussões que se seguem partem das notas de Macedonio, ao mesmo tempo em que se narra um pouco sua vida e seus modos de enxergar a vida. Eis um de seus pensamentos: “Para evitar o contágio nesta sociedade que agoniza corroída pela avidez de dinheiro e honras, é preciso isolar-se das correntes do meio e ignorá-las: não compreender como as crenças dominantes podem ser o que são.” O conto se encerra com outra reflexão, esta a propósito da literatura, expressa pela personagem Renzi: “Qual é o problema maior da arte de Macedonio? O pensar, diria Macedonio, é algo que pode ser narrado como se narra uma viagem ou uma história de amor, mas não do mesmo modo. Parece-lhe possível que num romance possam se expressar pensamentos tão difíceis e de forma tão abstrata como numa obra filosófica, mas sob a condição de que pareçam falsos. Essa ilusão de falsidade, disse Renzi, é a própria literatura.”

O preço do amor. Este conto focaliza a relação homem/mulher. Um homem que se incapacitou para viver e que era sustentado pela mulher (Adela). Desaparece e reaparece no apartamento da amada, inicialmente como se viera para fazer amor, mas na verdade vinha buscar dinheiro. Dinheiro que a mulher lhe dá, este o preço do amor.

O Laucha Benitez cantava boleros. Uma história de um boxeador mal sucedido. Sua glória maior foi ter se mantido em pé numa luta com um campeão do box, Archie Moore, numa espécie de luta-ensaio para o qual a personagem central, Viking, se voluntariou. Uma foto dos dois no jornal El Gráfico acompanhará Viking pela vida. Sem lutas, acabou entrando numa troupe e se apresentava no interior lutando num ringue em praças públicas. Ao retornar a Mar del Prata, vai ao ginásio – Club Atenas – onde encontra Laucha, um ainda garoto que treinava para se tornar boxeador. Os dois passam a viver juntos. Até que numa noite que ninguém viu, Viking acaba matando Laucha, a socos. Depois disso é internado num hospital psiquiátrico, onde o narrador o encontra para recuperar a excelente história que aqui narra.

A louca e o relato do crime. Uma louca assiste a um crime. Emílio Renzi é encarregado por seu jornal para acompanhar a história. Como a polícia já apresentava o suposto criminoso – Juan Antúnez, que vivia com Larry, a mulher assassinada. Juan ao sair de cena, diz ao repórter que ele era inocente. Ele acredita na inocência e vai ouvir inúmeras vezes as falas da louca Anahi, que repete sempre a mesma história de seu amor por Bairoletto. Repete, repete. Emilio Renzi grava suas falas e usando de um método “linguístico”, vai coletando das falas precisamente palavras que emergem no relato e diferenciam um do outro. Todos pareciam iguais, mas não eram. Com as palavras que emergiram no delírio, Emílio Renzi obtém o testemunho: “O homem gordo esperava por ela no saguão e não me viu e lhe falou de dinheiro e brilhou esta mão que fez ela morrer”. O homem gordo era Almada, ex-amante e efetivamente o assassino. O editor do jornal, no entanto, não aceitou a versão de seu repórter, pois um jornal jamais deve desmentir a polícia! Pede-lhe que escreva um texto curto, confirmando a versão policial e o nome do assassino que fora apresentado à imprensa. Emílio Renzi debruça-se sobre sua máquina de escrever e escreve: Gordo, difuso, melancólico, o terno de sarja verde-piscina flutuando em seu corpo, Almada saiu ensaiando um ar de secreta euforia para tentar desfazer seu abatimento. Este parágrafo final do conto é precisamente o mesmo que o inicia, de modo que o leitor, ao final, descobre que o repórter escreveu o conto que acaba de ler.

Referência

Piglia, Ricardo. Prisão Perpétua. São Paulo : Iluminuras, 1989.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.