Textos sobre textos: Os desvalidos

Quando Francisco J. C. Dantas lançou Coivara da Memória (Cia. das Letras, 1991), o crítico Alfredo Bosi o saudou como o retorno à literatura regional. E neste Os Desvalidos lançado dois anos depois, esta regionalidade se aprofunda, tanto no aspecto do espaço físico em que se desenrola a história, quanto em sua temática – os tempos de Lampião pelo sertão sergipano – e por seu rico vocabulário e formas de construções analógicas e metafóricas.

Como muitas vezes já foi afirmado, a universalidade se atinge à medida que se aprofundam os sentidos do local. O poeta é universal quando canta o fato singular, o amor único, o local. O escritor se derrama pelo mundo quando nos conta a história situada, vivida por um punhado de homens e mulheres, datada num período de duração curta, ainda que de cem anos (lembro Gabriel Garcia Marques e os Buendias, ou Érico Veríssimo de os Terra). É no particular que está, concretamente, o universal, este resultado de abstrações que perdem os liames com o mundo da vida.

Em Os desvalidos, Francisco Dantas nos conta a história de Coriolano, filho de João Coculo. Nascido no Aribé, uma encruzilhada onde o pai comprara um peço de terra bruta e construíra onde a estrada se torna em três, uma casa com grande mansarda. Seus dois irmãos mais velhos caíram na vida e nunca mais apareceram a não ser nas poucas lembranças esporádicas de Coriolano. Este, por sua vez, sonha em abandonar o Aribé e buscar vida noutras paragens.

– Moleque feio atentado, você é minhas vergonhas! É a minha condenação! Já tá se pondo hoimem, e ainda não disse pra que veio ao mundo! Menino vadiadeiro! Inventador de moda! Rape o chão aqui pertinho. Ande! E não saia das minhas vistas!

E se o filho embirrava, fazendo bico amudado, o pai lhe sentava a mão no pé do ouvido: pá! A terra inteira estalava, o chapeuzinho de pindoba avoava e não raro ele caía, com a zoeira das abelhas lhe fervendo em ferroadas no casco da cabeça. Haverá lance mais triste do que se rum menino refugado? (p. 142)

Certa madrugada, foge e deixa o velho pai sozinho, a morrer sem quem o pranteie. Vive um tempo com tio Filipe, em Rio das Paridas. Tio Filipe é amansador de cavalos, de fino garbo e desejado pelas mulheres que o rodeiam. Coriolano, ao contrário, com sua cacunda desde nascimento, é o inverso da cobiça feminina.

Tio Filipe se apaixona por Maria Melona, com quem se casa. Mas infeliz na profissão, macambúzio, acaba sendo incentivado pela mulher para realizar seu sonho: tornar-se caixeiro viajante. É o que faz. E na ausência do marido, Maria Melona é assediada. Dela não conseguem os favores… e então lançam calúnias que chegam ao ouvido do sobrinho. Este não se faz por esperar: quando tio Filipe retorna de viagem, conta-lhe o que se diz no lugar. Maria Melona, melindrada pela desconfiança e sem dever paga, sai de casa para nunca mais voltar. Tio Filipe vende suas terrinhas, mas mantém a casinha em Rio das Paridas. Coriolano fica só…

Sai em busca de outro tio, distante, dono de uma botica em Forras. Toma gosto pelo serviço leve que o afastou da enxada e da terra bruta. O tio não tendo herdeiros, acabou lhe deixando a botica com uma condição: que jamais em suas prateleiras aparecerem estes remédios fabricados longe, estas coisas medonhas da modernidade industrial. Conheceu então seu tempo de regalo e rendas, mas fiel à promessa feita, Coriolano acaba sofrendo a concorrência de farmácias que expõem em suas prateleiras medicamentos em caixinhas coloridas… e obviamente vai à falência, tendo que fechar e entregar sua botica.

Um tempo de papo para o ar, pensando e matutando no que fazer, acaba se tornando aprendiz de coureiro: quer se dedicar à profissão, fazendo à mão os apetrechos de couro dos cavaleiros, os arreios caprichados. Novamente a indústria o bombardeia, com a fabricação em série, produtos lustrosos e vistosos. Outra vez volta Coriolano à miséria, e torna-se mestre de reparos, e fazedor de tamancos.

Sai de Rio das Paridas, em busca de nova vida. Vive um tempo em Propriá, onde lhe dão notícias de tio Filipe. Sai em busca do parente que lhe resta. Pelas bandas de Penedo (do outro lado do rio São Francisco, já em Alagoas), encontra-se com o bando de Lampíão, figura sempre presente nas páginas todas desta história. Como remendeiro, fica alguns dias trabalhando para o bando… e lá encontra Maria Melona, agora Zé Queixada, membro do bando (um Diadorim?), com quem conversa e mostra seu arrependimento pelo mal causado ao dar ouvidos às maledicências.

Pago e libertado, sai espalhando amizade com o capitão Virgulino, o que lhe trará a perseguição dos “macacos” ou “mata-cachorros” como eram chamados os componentes das volantes que andavam sertão adentro caçando Lampião.

Povoam a narrativa os medos dos “desvalidos”, aqueles que não têm um coronel patrão que os salve. Medo dos jagunços, medo dos soldados:

Sabem que é terrível se defrontar com a tropa volante do governo ou com a gente perversa do cangaço, um e outro conduzidos por um governo trágico e cruel. Nessa má hora desgramada a impiedade é um bacilo que a gente pega no ar, onde as punhaladas relampejarão em afrontas insultuosas, e não há como escapar delas quebrando o corpo de lado a malicias recusas. De nada valerá a esperteza. É tudo na mais limpa porretada! (p. 172-173)

Retornado a Rio das Paridas, vai levando a vida desgraçada. Que coisa mais rendo é esta vida! Sonha com retornar a Aribé, o que acaba fazendo e reforma a casa paterna, ajudado pelo amigo Zerramo: torna-se dono de uma estalagem de boa freguesia… e volta a viver com rendas e sem fomes.  Um dia lhe aparece tio Filipe. Passam então os três, Zerramo (também caixeiro-viajante) a viver na estalagem gerenciada por Coriolano, dono proprietário.

Numa madrugada aziaga, aparece Lampião com mais três capangas. Quer fazer de tio Filipe seu fornecedor. Este tenta recusar, Zerramo se oferece para a lida, Lampião de incomoda por não lhe quererem obedecer. Zerramo acaba sendo assassinado. Tio Filipe é salvo por um cavaleiro que o leva para longe. Depois se sabe que é Maria Melona que sempre andara aos redores de seu homem. Coriolano foge para a caatinga, volta a Rio das Paridas, onde a morte do Herodes, do Virgulino, do Lampião o encontra em sonhos de voltar para Aribé, lá onde a vida deveria ter sido e não foi por causa do peste cego. Mas vai ficando, ficando… aparece por lá, já amalucado, tio Filipe que andara pela Bahia, mas lá havia sido encontrado pela volante que o torturara até torna-lo inútil para o que queriam: que dissesse onde estava o bando.

A narrativa zigue-zagueia pelo tempo. Começa com o anúncio da morte de Lampião, termina novamente em Rio das Paridas com tio Filipe que só cobra juízo quando sozinho examina sua riqueza em metais sempre escondida de todos e Coriolano vive a miséria dos desvalidos sociais.

As passagens citadas já mostram o estilo, as surpresas:  a zoeira das abelhas lhe fervendo em ferroadas no casco da cabeça. A obra toda está carregada de passagens em que o discurso direto livre aparece, como quando se relatam reflexões de Coriolano:

Mesmo homem avulso, despareceirado, tendo chochado sem fazer filho, e já agora um ovo indez, vitalino de potência encruada – confere e atesta que este mundo é um viveiro de lembranças! Família quisera ter, se deliciava a fitar as moças alvas, tiradas a espuma de leite: – ah, Aldina de Codorá! Mas montar maridando mesmo, a canseira não deixou, nem era de bom juízo abrir casa de fome. Veio rufiando apenas ao acaso, com uma ou outra de uns buguelos, já tinha virado um mamoeiro macho, passado do ponto de casar. Um pé de pau peco, bichado, é isso aí! Era só precisão que me guiava. Não me sobrou tempo pra mais nada. (p. 215, grifos meus)

À riqueza vocabular se juntam construções que são verdadeiros achados, quer pelo que enunciam, quer pela forma de enunciar. Eis alguns exemplos:

“Coragem não se fabrica, é uma doidura que se desata de dentro, sim senhor, …”

“… o começo de qualquer ofício é um trecho penoso e arrenhento, muitas vezes estirado em desânimo, para não falar nas desistências que aí são frequentes, … “

“Essa vontade encravada na agonia de se fazer caixeiro viajado, vendedor de um lote de quinquilharias e miçangas de armarinho, e outros penduricalhos e metais de algum luxo…”

“Pose, minha gente, quem tira e bota é o zinabre do dinheiro! O resto é conversa fiada!”

“A folhagem do umbuzeiro parada numa fixa estampa de parede” [para dizer que tudo estava parado, sem vento que bulisse as coisas]

“… peguei a dar fé de que a única garantia de avultada semente só podia vir do medo que espalhasse. De todos os caminhos experimentados, via que o mais curto e certo era brutalmente intimidar: aberturava o avarento pelo gogó, ou lhe riscava o peito a bico de punhal.” [reflexões de Lampião sobre os coronéis fazendeiros que encomendavam trabalhos de morte e se recusavam a pagar].

Este é um romance que não deveria ter ficado tanto tempo na prateleira, esperando hora para ser lido!!! Li Coivara da Memória assim que foi lançado. Este, no entanto, ficou aguardando tempo… E ele vale a pena!

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.