Textos sobre textos: Os 422 Soldadinhos de Chumbo do Senhor General

Este livro infanto-juvenil, escrito por Rudi Bohn, se apresenta como uma iniciação à filosofia, e pretende “o início de uma mudança”. Trata-se de uma aposta nas crianças e na reflexão a contrapelo das inúmeras e chamativas ideologizações patrocinadas pelo sistema, quer na família como unidade de consumo, quer na mídia como indústria cultural de formação das percepções de mundo, quer na escola em que circula o pensamento do vencedor (e sempre que o pensamento do vencido aparece, não faltam acusações de que se trata de reflexão partidária e é disso surgem as propostas de uma “escola sem partido”).

A história é simples: um general aposentado semanalmente veste seu uniforme e põe sobre a mesa seus 422 soldadinhos de chumbo, organizando uma batalha… soldado morto num flanco, reaparece vivo noutro, de modo que os soldadinhos terminam o dia exausto de tanto guerrearem. Repostos da caixa escura, guardados ao lado do uniforme de general, os soldadinhos se revoltam e elegem uma comissão que sai da caixa em duas missões: saber porque há guerra e encontrar um lugar para viverem tranquilos e sem guerra. Saem os três soldadinhos de chumbo e circulam pela vida da cidade: o primeiro, que dizia haver guerra por causa de comida (uma justificativa sempre presente na história, inclusive recente), viaja dentro da sacola de uma viúva de um soldado morto na guerra. E descobre na feira que há alimentos suficientes e que há muito desperdício de alimentos e não falta deles; um segundo viaja no bolso de um diretor de uma multinacional. Defendendo que a guerra é por causa do poder, descobre que o poder também pode ser útil às pessoas e à supressão da guerra. Restava-lhes conviver com crianças: elas não deveriam ter o menor interesse em guerra. Caem na mochila de um menino que os descobre e no intervalo todos brincam de guerra, e segundo um ponto de vista, a violência é “natural” nos humanos, nascemos violentos dentro de nós mesmos e depois esta violência se torna social. O livro não explora, no entanto, a hipótese de que o mundo dos adultos desde sempre conforma também as crianças. Resta, pois, uma posição anti-rousseauniana: não nascemos inocentes e depois nos tornamos violentos, mas nascemos maus desde sempre…

 Por fim, os soldadinhos de chumbo encontram uma solução: a única forma de viverem em paz, sem guerra, seria viverem num museu! E para lá que fogem e esperam que todos os soldados do mundo venham viver num museu para que assim as guerras acabem.

O roteiro da história aqui resumida é muito interessante. À antropomorfização de soldadinhos de chumbo é o reverso de sua própria inspiração: eles são representações dos soldados reais, dos guerreiros reais sempre comandados por generais loucos para porem em prática suas estratégias de guerra aprendidas no estudo de guerras do passado. Torná-los seres vivos, pequenos mas pensantes, estes soldadinhos de chumbo desvelam um pouco do que vai na cabeça de cada convocado para as guerras em sucessão que acontecem no mundo, mesmo quando nos imaginamos em paz como agora. Com a doutrina de que “o mundo é um palco de guerra” introduzida na “diplomacia” norte-americana após o atentado terrorista de setembro, há guerra em diferentes locais do planeta, com a preferência óbvia pelo Oriente Médio onde se concentram as reservas petrolíferas do planeta.

Tomar consciência de que estamos vivendo num tempo de guerra, ainda que estejamos longe dela, é talvez o primeiro caminho de um processo que inicie uma mudança. Apostar, como faz este livro, na leitura e reflexão de crianças e adolescentes, descartando os dois principais argumentos usados para justificar as guerras, é já um começo. Como o livro é de 2003, talvez devesse ter trazido à baila um terceiro argumento que justifica as intervenções militares contemporâneas: o combate ao terrorismo pelo exercício do terrorismo. Acabar com o terrorismo através do terror: eis o que estamos vivendo e apoiando com nossos silêncios.

O livro Os 422 Soldadinhos de Chumbo do General deveria ser de leitura obrigatória nas escolas, não fossem estas também lugares de formação para o sistema de injustiças e de guerras em que estamos vivendo. Toda vez que uma escola se insurge contra os objetivos para os quais foi constituída, são seus agentes – os professores, os coordenadores, as direções – que são acusados de partidários, como se cumprir a missão de formação de espíritos “dóceis” para aceitarem a guerra não fosse também uma tomada de partido. Não há e nunca houve neutralidade na formação e educação de nossas crianças, seja na família, seja na escola. Por isso, reproduzimos hoje as mesmas guerras da antiguidade nas novas formas tecnológicas da engenharia de guerra, talvez a indústria mais desenvolvida do planeta.

Vamos a uma curiosidade de percursos de leitura. Comprei meu exemplar num sebo. Ao final do livro há algumas páginas em branco. Numa delas há um manuscrito, provavelmente texto de adulto, professor(a) ou não, isso pouco importa: “O que você(s) colocaria(m) no museu para que ficasse somente na lembrança das pessoas?”

A resposta: “As botas do general e a inveja. A segunda parte deste enunciado é legível mas foi apagada! Que terá acontecido numa possível correção feita à resposta dada? Certamente a correção foi guiada pelo fato de que a inveja, não sendo material, não poderia estar num museu. Também a inveja não aparece explicitamente como uma das causas da guerra. Aparece apenas implicitamente na discussão do poder. No entanto, a resposta da criança pondo a inveja no museu mantém o mundo da invenção própria do livro que está lendo. Se o museu é o lugar onde ficariam guardadas coisas que somente devem ficar na lembrança e não na prática da vida, por que não estarem no museu: a fome, o exercício da tirania e a inveja? Este seria o melhor museu do mundo: aquele em que não só objetos se tornam apenas ícones resposta corrigida.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.