O leitor que tiver nas mãos um romance de walter hugo mãe (tudo em letras minúsculas desde o nome do autor ao título do romance, como escreve o autor), certamente sairá buscando outras obras porque o português nascido em Angola é um mestre da palavra, inventivo na história que narra, na forma do narrar e na reinvenção de seu instrumento de trabalho, a língua portuguesa.
Há autores que conhecem o ofício de escrever e são inventivos. Cativam-nos pelo enredo e pelos torneios com a língua: José Saramago, Autran Dourado, Milton Hautoun, entre tantos outos. Mas autores que vão além, que inventam o dizer e o modo de dizer, como fizeram Machado de Assis no passado mais distante e Guimarães Rosa no passado mais recente. São como eles no presente dois autores de língua portuguesa nascidos na África: Mia Couto (Moçambique) e walter hugo mãe (nascido em Angola em 1971, mas a família se estabelece no norte de Portugal quando ele tinha apenas dois anos, precisamente nos tempos mais duros da guerra da independência a que Angola chegou com a Revolução dos Cravos, em 1974).
Ao contrário de Mia Couto cujos cenários são moçambicanos, em o remorso de baltazar separião o espaço em que se movimentam as personagens é o interior profundo do reino, nas relações sociais de servidão em que um senhor de terras mantém cativos os trabalhadores que cuidam de suas terras e de seus bichos sem renda alguma que vá além do necessário à uma sobrevivência parca e porca. Num tempo de referência que poderia estar distante cronologicamente, mas que insiste e persiste nos rincões nacionais.
O narrador é Baltazar Serapião, pertencente à família dos sargas, nome que lhes vem da vaca, suposta mãe dos filhos de velho Serapião, logo suposta mãe de Baltazar, de Brunilde e de seu irmão menor Aldegundes. O dono das vidas e terras é o Senhor Afonso Castro, casado com a que se mostrará megera, Dona Catarina.
Há razão para sublinhar que o feminino é o tema que move e comove todas as personagens. O enredo começa com as primeiras exigências sexuais de Baltazar, que descobre Teresa, a diaba, em que monta como montam vários outros homens para se livrarem da sofreguidão do sexo… Há os arranjos de família para que Ermosinda se torne a mulher de Baltazar. Por ela apaixonado, Baltazar a procura em volteios tentando se fazer notar até que os pais resolvem o acordo de casamento.
Mulher casada precisa ser educada pelo marido. E como o marido é propriedade do patrão, a mulher é propriedade do marido. A educação da esposa para se fazer a mulher que satisfaz o homem de boca e sexo é responsabilidade do marido. Função que Baltazar exerce com a violência característica das relações sociais em que vive: de forma animalesca, com posses violentas e com porradas e maus tratos.
Acontece que Ermosinda é formosa. Seu nome de batismo já o diz, é “hermosa” (bela em espanhol) e também beleza única naqueles ermos. Uma beleza tal não passaria desapercebida pelo Senhor Afonso, que autorizando o casamento, também determina que Ermosinda prestará serviços na casa grande. Serviços que incluem, obviamente, prestações sexuais. A formosa Ermosinda se tornará uma dentre as “mucamas” da casa de que se serve pelos cantos o Senhor Afonso, desleixado da mulher Catarina de peitos caídos e gorduras amplas.
Este não é um triângulo amoroso qualquer, tão imortalizado pelos românticos. Isto porque a obediência ao patrão e seus desejos está na ordem da natureza das coisas. Não se trata de conquista amorosa, mas de posse e propriedade.
A dúvida certeza de Baltazar de que é corno perpassa toda a educação de Ermosinda! E todo sofrimento que redundará no remorso do marido que pensa seguir o modelo do pai que matara sua mãe por desconfiança de gravidez que não fosse o pai a deixa-la prenhe. Decidido a educar mas incapaz do gesto de matar, Baltazar sofre e ama ao mesmo tempo. É violento e amoroso.
A trama inclui a presença de Gertrudes, velha mulher viúva que a comunidade condena à queima por bruxa. Esta buscará abrigo e amizade precisamente na família dos sargas, a mais vilipendiada entre quantos servos são de um mesmo senhor. Terá presença marcante no enredo: foge na carroça em que Baltazar leva seu irmão Aldegundes para o palácio del-rei para lá o irmão exercer o dom que recebeu de ser artista, pendor que se revelou depois do assassinato da mãe que ele busca no meio dos anjos nos céus.
Gertrudes é abandonada pelos irmãos no meio do caminho. Acabam sendo amaldiçoados pelo feitiço de estarem sempre a queimar de calor. Outra bruxa, por uma moeda de prata, lhes dá uma saída: deveriam manter sempre a mão dentro de um cântaro com água da chuva num tempo de estiagem.
Reencontram-se os irmãos com a bruxa Gertrudes em pleno palácio do rei. E sofrem novo castigo imposto pela mulher-bruxa: Aldegundes, Dagoberto (baixinho que testará o feitiço para saber se era transmissível) e Baltazar tonam-se três num só. Se se distanciassem, morreriam todos de calor. Juntos sobreviveriam. E a história, a partir daí, reúne três personagens distintos de alma e dependentes de corpo um do outro. Reunidos num “só corpo” a sensibilidade da arte (Aldegundes), a ingenuidade e boa fé (Dagoberto) e a violência masculina (Baltazar).
Assim reunidos voltam para as terras do Senhor Afonso, onde ficara Ermosinda servindo ao senhor ausente de marido. Causam danos ao ambiente e a quem se aproxima. São expulsos pelo pai para que, sendo coisas do mal, vivessem longe de todos. A sarga, a vaca, abre-lhes caminho e os leva a lugar ermo onde passam a viver os três com as regras que estabeleceram entre si parra sobreviverem ao calor que os queimaria separados.
Ermosinda, tão surrada, já de pé torto, braço destroncado, outro braço morto de movimento, sem um olho, tudo parte da educação que lhe dava o marido, segue-os de longe e se faz presente no abrigo que eles haviam construído. Torna-se a mulher para as premências sexuais dos três homens, confirmando Baltazar Serapião como cornudo até que este decide: mata-os a porradas.
O enredo está dado, sem seus detalhes. Mas o que importa do dito é o dizer. O autor inova a língua, desobedece sintaxe e pontuação. Os diálogos entre as personagens se dão no entremeio das reflexões do narrador. As metáforas são simplesmente desconcertantes e obrigam ao leitor uma pausa para deglutir o novo que significa mais do que antes a palavra poderia querer dizer. Uma amostra destas paradas:
“… que o calor nos matará em pouco tempo assim acorde e nos sinta nada ali,…”
“… só de se amedrontar por escolha de trabalho alternativo, já varas lhe tremiam as pernas…”
“Estávamos quietos em nossas vidas, como assumidos por rotinas pequenas, descabidos de alma ou não, éramos todos muito iguais em sortes, nenhumas.”
“… ali ninguém nos existia.”
“… nada que desaparecesse normal.”
Para se ter um gosto da prosa, eis três passagens das muitas que poderiam ser encontradas a cada página. Estas foram escolhidas, as duas primeiras, em função de seus temas, a visão machista do feminino, permanente denúncia no romance, e o remorso inexistente e, no entanto, constante de Baltazar e a terceira para mostrar a estrutura sintática do diálogo intermediado pela reflexão do narrador:
(1) “as mulheres só são belas porque têm parecenças com os homens, como os homens são a imagem de deus, não é heresia, pensa bem, se se parecessem mais com cabras do que com homens nem natureza para nós teriam. Precisam de nos parecer sem alcançar igualdade, que para isso estamos cá nós, e depois, beleza assim até aumentada, o que lhes tirou deus em préstimo de espírito deu-lhes em curvas e cor, servem perfeitamente para nos multiplicar e nos agradar.”
(2) “sim, poderia sentir remorso pela competência tão apurada usada na educação da minha mulher. por essa sensatez de não deixar que se perdesse sem retorno. poderia sentir remorso por essa bondade de, a cada momento, a ir buscar à razão, a fazer ver as coisas mais corretas da criação, pra a ajudar a encontrar o seu lugar mais humano. poderia remorso naquele instante, perante a minha ermosinda tão diferente, que muito mais descansada estaria do corpo se eu me houvesse desleixado nos bons trabalhos de ser seu marido. aceitei o seu silêncio e compreendi que seria melhor assim.”
(3) “… se mo perguntas to direi, mais marido tivesse mais o enterrava. e isso porquê. Porque me deram todos dores de mau grado, coisa de me terem desrespeito e ódio, postos em mim como bichos a toda a hora. e tu com isso mulher, homem de verdade consome-se de carnes, é normal .nada normal para mim que recuso ser de homem, nada quero que homem algum me toque. e porque te casaste. sempre fui casada por pais ou homens que me mandassem, mulher solteira é má de vida e fica sem trabalho nem amizades. pois mulher minha apanha tanto quanto deve, até que se ensine tudo o que lhe digo. mal lhe dá que te queira, se te deixasse seria mais feliz. que sabe tu disso, se lhe dou corretivo e me ama acima dos erros que comete. acreditas nisso. Acredito ….”
walter hugo mãe inventa sintaxe própria, desconhece pontuações marcadoras, manda as letras maiúsculas para além texto, e recria um fluxo de fala que encanta e exige paradas: pausas de reflexão enquanto o enredo vai incomodando não por si, mas pelo que desvela do medo e paixão que ligam o homem à mulher que por força quer conduzir sabendo que corretivos aplicados representam muito mais o fracasso na batalha numa relação que, nos tempos e nos espaços sociais vividos, eram impossíveis de igualdade.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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