Textos sobre textos: O Quieto Animal da Esquina

Depois de ler algumas páginas deste romance, comecei a ficar com um pé atrás… Estava achando que o personagem, um jovem desempregado, poeta anônimo, estava mal acabado. Introduzido por suas andanças em Porto Alegre à procura de emprego, vivendo numa ocupação urbana com sua mãe, tudo parecia indicar que se iniciaria aí um percurso de luta pela sobrevivência, “retratando” a vida miserável da cidade grande.

Mas não! O rapaz comete um estupro, é denunciado pela vítima, é preso… e eis que aparece não se sabe donde, um personagem que o tira das mãos do delegado, carrega-o para um “clínica de recuperação”. Do tratamento, sobre na narrativa apenas um possível sonho: o personagem vivia no campo, numa casa, com a estuprada e seu filho! Não sobra do período da clínica, e reaparece o personagem de terno e gravata – depois se fica sabendo que é Kurt – e o leva para seu sítio próximo de Porto Alegre.

Fiquei irritado com estes lances narrativos em que uma força oculta vem salvar o herói… Uma força que aparece assim, sem mais nem menos!!! Mas mais irritado fui ficando comigo mesmo: não conseguia parar de ler a narrativa, não conseguia fechar a página e me dizer, como consolo, você não é obrigado a ir até o fim!

Acontece que não é o enredo que enreda o leitor nesta narrativa! É a própria narrativa, o modo de narrar. João Gilberto Noll não nos prende pelo enredo, como faz qualquer telenovela. Ele nos prende pelo modo de narrar e em narrando, não importam que acontecimentos do enredo sejam encadeados, vai mostrando a quase inutilidade dos gestos, a distância que guarda o personagem daqueles com que convive, aproximando-se somente quando seu interesse comandava a ação: o apetite sexual o leva à cama de Amália, a empregada da casa de seus “benfeitores”; a camaradagem com Otávio, uma espécie de capaz do sítio, somente acontece uma vez e para mostrar a Kurt que ele era um “bom homem”; e mesmo a aproximação com Kurt, depois da morte de Gerda, sua mulher, somente acontece porque o personagem pretendia saber o que afinal seria dele depois que Kurt morresse!!!

Trata-se, portanto, de um romance sobre as mazelas humanas mais profundas, cuja superficialidade apenas se apresenta no enredo. Na contracapa , Manuel da Costa Pinto dá a dica: seria um “romance de deformação”, opondo-se ao tradicional “romance de formação”.  É possível.

Em todo caso, romance de deformação ou não, se lhe cair nas mãos este livro, saiba que você será fisgado pela narrativa e não vai parar de ler o livro até seu final, ainda que o fim não tenha nada de fim, mas muita abertura para pensar sobre o tipo humano que a sociedade construiu! E começará você mesmo a adjetivar este homem feito que conta sua história pela pena de João Gilberto Noll.

  

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.