Tenho em mãos três livros:
Museu de Coisas Insignificantes, de Charles Kiefer (Mercado Aberto, 1994)
Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, de Manoel de Barros (Record, 2001)
A Gravidade das Coisas Miúdas, de Jorge Miguel Marinho (SESI-SP Editora, 2016)
O livro de Charles Kiefer é uma coletânea de poemas, contendo a tradução de cinco sonetos de Borges traduzidas pelo autor. Como o título já indica, grande parte destes poemas remete a detalhes, a pequenos detalhes a partir dos quais o poeta vai compondo seu canto. Ao recordar a infância:
Antigos fragmentos de tijolos enterrados
à tona às vezes vêm. São os restos
de uma calçada que levava à casa
em que nasci. (Fragmentos)
Seus temas explodem das coisas pequenas. Há um poema dedicado à laranja que “aprisiona o olhar e a saliva”. Em outros momentos, vai mais longe:
Amo estas paredes de limo e bolor, esse
silêncio de cripta, essa vida emparedada. (Emparedado)
O livro do pantaneiro Manoel de Barros, possivelmente o maior poeta das coisas miúdas, aquele que desde criança descobriu a vocação de ser “fraseador”, para quem queria o irmão que o pai desse enxada já que “frasear” não põe comida na mesa, acompanha as obras anteriores nesta atenção ao detalhe, ao insignificante. Manoel de Barros – como todos os poetas – não pode ser resumido a uma fórmula. E a leitura de sua obra é sempre um soco no estômago pela singeleza do que expõe a nossos olhos cegos. O poema de abertura do livro dá o tom:
Cisco
(Tem vez que a natureza ataca o cisco para o bem.)
Principais elementos do cisco são: gravetos, areia,
cabelos, pregos, trapos, ramos secos, asas de mosca,
grampos, cuspe de aves, etc.
Há outros componentes do cisco, porém de menos importância.
Depois de completo, o cisco de ajunta, com certa
humildade, em beiras de ralos, em raiz de parede,
Ou,depois da enxurradas, em alguma depressão de terreno.
Mesmo bem rejuntado o cisco produz volumes quase sempre modestos.
O cisco é infenso a fulgurâncias.
Depois de assentado em lugar próprio, o cisco
produz material de construção para ninhos de passarinhos.
Ali os pássaros vão buscar raminhos secos, trapos, asas de mosca
Para a feitura de seus ninhos.
O cisco há de ser sempre aglomerado que se iguala a restos.
Que se iguala a restos a fim de obter a contemplação dos poetas.
Manoel de Barros sempre foi o poeta que recupera o espanto da infância ante os detalhes do mundo que pela primeira vez vê. Nós crescemos e nos habituamos às coisas. E queremos ver somente grandes ações, heroicas decisões, gestos largos. Nós já não vemos o que o poeta recolhe das migalhas do mundo, nesta nobreza dos gestos em que “catar coisas inúteis garante a soberania do Ser./Garante a soberania do Ser mais do que Ter” (O Catador). E confessa: “uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.” Quando o leitor começa a querer retirar versos de um livro de Manoel de Barros, ele jamais acaba. Mas há dois versos que precisam ser lembrados: “Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro./Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).”
Jorge Miguel Marinho escreve prosa poética. Seu livro é um conjunto de “crônicas-contos” que se debruçam sobre as “coisas miúdas”, mas que ao mesmo tempo dialoga com um conjunto de outras produções artísticas: literatura (Clarice Lispector, uma paixão do autor é presença obrigatória); filmes, músicas, cinema. Trata-se de um livro cheio de reminiscências a um passado brasileiro recente nas artes. E dos cotidianos: o Biotônico Fontoura, o carrinho de rolimã, o patinete, o colete por cima do suspensório, o jejum para comungar no domingo seguinte, etc. Nada escapa a Jorge Marinho: “Um copo usado e esquecido no canto da festa me comove, também, as coisas desusadas, os seres deslembrados sofrem de memória aguda. Ouvi agora um barulho de louça quebrada, lá longe. Minha sina, meu império é essa metafísica do chão.” Trata-se para o poeta da prosa de “ver a segunda natureza das coisas, o que vem depois da epiderme.”
Como se pode notar, não somente os títulos das obras as aproximam. É esta temática do miúdo, do ínfimo, do insignificante, esta matéria prima concreta, um presente tão presente que se torna ausência sem a voz dos poetas.
O que leva os poetas de hoje aos detalhes, às insignificâncias, às miudezas, ao ínfimo? Esta a pergunta que é necessário formular!
Se a modernidade se iniciou com a exaltação dos feitos heroicos (Camões, de Os Lusíadas, canta os feitos de varões assinalados), ou com o enterro definitivo da Idade Média e seus cavaleiros andantes (D. Quixote, de Cervantes), ou com a carnavalização do sagrado recuperando a cultura popular e trazendo para a literatura o mundo esquecido daqueles de fora dos salões (Rabelais de Gargântua e Pantagruel), e mais tarde no Iluminismo um Fausto negocia com Mefistófeles a alma pelo conhecimento (Fausto, de Goethe), agora a poesia e a prosa [e o bom cinema] estão cantando e contando a vida miúda, esquecida, espaço em que se dão os dramas da existência.
É certo que a geração modernista, no Brasil, foi a primeira desviar o olhar para o real, um real amplo: Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Depois veio a geração de 1945 – tomemos Drummond como o poeta prototípico – a cantar a vida real, o “não nos afastemos muito”, num convite a andarmos de mãos dadas em tempos de homens partidos.
Parece que o desvelamento das promessas não cumpridas pela modernidade (e pela ciência da modernidade), o chamado fim das grandes utopias, das grandes ideias, do combate incansável pelo inalcançável, tudo produziu e está produzindo um fechamento das grandes experiências e cedendo lugar para os impasses do cotidiano, do presente, onde as coisas miúdas contam e a elas se reduzem, definitivamente, as vidas que levamos.
Não só os poetas que nos levam para atentarmos ao pequeno: em pesquisa, particularmente na Educação, o cotidiano está em voga. O invisível que está nas dobraduras do real e que é de fato o real chama o investigador.
Nietzche já apontara para esta vida demasiadamente humana que levamos… e a perda da inocência pela ad-miração dos grandes gestos: o homem é pequeno, somos pequenos. Que queremos, afinal?
Enquanto lia o livro de Jorge Miguel Marinho, também lia um texto inédito do filósofo barcelonês Jorge Larrosa: “Insignificancias, o ¿qué hago yo aquí?” Neste texto, ele dialoga com Bruce Chatwin e seu livro “Qué hago yo aqui?”, um relato das inúmeras viagens deste autor. Seleciono uma pequena passagem do texto (tradução minha):
“A pergunta mais inquietante, disse Chatwin, ou algum leitor de Chatwin, não é a que se interroga por quem somos, mas por onde estamos. Esta nossa época da identidade, da construção e reconstrução permanente da identidade, enfatiza o quem somo, mas a pergunta perigosa, a que abre todas as suspeitas, é “que faço eu aqui?”. E então, quando esta pergunta se faz inevitável e obsessiva, quando os lugares se confundem e perdem sua segurança, seus contorno e suas definições, o que nos resta para saber sobre de que é feito o mundo são os detalhes mas insignificantes, os mais inúteis, os menos edificantes.”
E eis que as insignificâncias reaparecem, agora na filosofia. A pergunta “que faço eu aqui?” pressupõe um fazer, pois não se trata simplesmente de um “estar aqui”.
A resposta seria mais uma vez um imobilismo nihilista? O estar em um lugar (social ou físico) – e a experiência humana sempre acontece num lugar – e perguntar-se pelo que se faz neste lugar somente se torna perigoso se a elaboração de uma resposta pretenda abarcar mais do que insignificâncias.
Mas se restam somente miudezas, coisas ínfimas da experiência neste fim da era moderna e prenúncio do que ainda está por vir – sobre o que, por enquanto, apenas podemos dar pinceladas – há um trabalho de gigantes para elaborar para além do visível, do talher sobre a mesa, da laranja que traz saliva à boca. Mas uma elaboração que não caia nos mesmos erros do passado: o insignificante, o ínfimo, o miúdo devem ter lugar garantido neste futuro. Este o recado de nossos poetas. O futuro não pode apagar o presente; o futuro não pode justificar a falta de liberdade no presente!
Assim, tudo o que estes poetas, nestes três livros, estão nos dizendo é que somente a atenção ao pequeno poderá ser alavanca para significar o futuro. Sem ele, sem o miúdo, o mundo das grandes ideias se esvai como a fumaça do cigarro em seus malabarismos pelo ar.
Assim, diante de certo nihilismo imobilizante, quase um credo do pensamento pós-estrutural, os poetas propõem uma atenção à simplicidade, à natureza com que necessariamente convivemos (Manoel de Barros canta as rãs, as aves, as pedras, …)
Ou, para lembrar outro filósofo que não é muito bem visto entre nihilistas, “tudo o que é sólido se desmancha no ar”: o mais sólido que se desmancha nestes tempos são as virtualidades de um vazio destrutivo da vida, chamado lucro e operado por um chamado “mercado”. No entanto, “a gravidade das coisas miúdas”, incluindo as gentes miúdas, invisíveis para o pensamento global, estão presentes e se não os enxergamos, os poetas nos fazem vê-los porque não se desmancham no ar e é a partir destas miudezas que poderemos reconstruir a vida mais humana que desejamos todos.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
Comentários