Correspondente no exterior, o jornalista polonês Ryszard Kapuscinski fez reportagens memoráveis, particularmente de guerras no Irã, na Rússia e outros países. Especializou-se em África.
Para além da reportagens destinadas a jornais, ele também trabalhou em textos longos, numa linguagem que o aproxima da literatura, ainda que seus textos continuem jornalísticos. Desta série é Imperium sobre a Rússia. Agora acabo de ler sua longa reportagem sobre a Etiópia, neste O Imperador. Nele o jornalista vasculha os “bastidores do palácio!” nos tempos do imperador Hailé Selassié I, que reinou por 44 anos.
Esta longa reportagem, produzida na segunda metade dos anos 1970 (o imperador morreu em 1975), e publicada na Polônia em 1978, retrata em cores vivas e locais o mundo interno ao palácio, o seu cotidiano, as andanças de serviçais e de dignitários. E o faz a partir da voz daqueles que exerceram funções de serviço dentro do palácio.
Certamente o jornalista enfrentou inúmeras dificuldades para realizar seu projeto, num tempo em que a Fetacha, isto é, a revista de qualquer cidadão poderia ser feita por qualquer outro que, no momento, se investia de autoridade para ver se o revistado portava armas ou era um perigo para a nação.
O interessante deste livro-reportagem é sua construção através das vozes dos informantes. O autor dá a palavra a seus informantes (sempre apresentados com iniciais, provavelmente falsas para dificultar identificações, embora em alguns casos a descrição do trabalho que realizavam para seu amo no palácio poderia aponta-los com certa facilidade). É impressionante como, já morto o Imperador, seus “serviçais” continuam a tratá-lo como um ser vivo e poderoso, usando de expressões de respeito e submissão total à vontade tirana de Hailé Selassié. Nos relatos ainda se respira o medo de errar, o medo de não agradar, o medo de dizer ou não dizer em momentos inadequados. Em palácio, estes homens deviam viver eternamente sob uma pressão enorme para realizarem, às vezes, tarefas que impressionam a nossa cultura. Por exemplo, o encarregado das almofadas que devia colocar uma das 52 almofadas disponíveis aos pés do Imperador quando ele se sentava, para evitar que sua baixa estatura se tornasse evidente ficando o “amo” com as pernas soltas no ar. Ou então aquele que deveria ajoelhar-se diante do Senhor para que ele percebesse que era hora de encerrar a atividade em que estava envolvido para seguir para uma próxima “sessão”.
Chamam atenção, obviamente, estas vozes que falam no livro – o jornalista aparece apenas raramente, sua escrita é marcada graficamente por um tipo de letra diferente, em que nos fornece um discurso relatado abreviando os dizeres de seus informantes.
A fala dos “submissos” funcionários do palácio não desenham um quadro lisonjeiro dos dignitários etíopes de então. Suas rusgas, frustrações, empurra-empurra para estarem próximos do Imperador e serem vistos, tudo isso aparece junto com as formas de tráfico de influência e da corrupção e apropriação do público para o patrimônio de cada dignitário.
É certo que o Imperador foi um tirano. Mas sua tirania correspondia passo a passo ao invertebrado corpo de dignitários que se sujeitavam a tudo para terem as benesses do Senhor.
Há no livro passagens que se aplicam à política brasileira contemporânea. Por exemplo: “… o fato de um ministro estar ou não à altura de suas funções não tinha a menor importância; o essencial era que demonstrasse uma inabalável lealdade ao imperador (p.62).
O Império parecia de ferro, pois nada o abalava. Mas a partir do retorno de um dos agraciados pelo Imperador que foi estudar no exterior e que retorna e assume o governo de uma província, chamado Germame, a solidez das estruturas começa a mostrar suas frinchas. Novidadeiro, estava governando olhando para o povo, o que foi lá – e é aqui no Brasil até hoje – uma afronta aos dignitários. A passagem abaixo é reveladora:
“Após algum tempo, os dignitários de Sidamo voltaram a aparecer, dessa vez acusando Germame de ter passado das medidas: ele estava distribuindo terras improdutivas entre os camponeses, pondo em risco o princípio da propriedade privada no país. Germame revelara-se um comunista, o que era muito grave. Hoje, ele está distribuindo áreas improdutivas, amanhã tirando terras de seus legítimos donos, começa pelas pequenas propriedades, depois se apossa dos bens do império todo! Diante disso, o digníssimo amo não podia mais permanecer em silêncio. Germame foi convocado para a capital e na Hora das Nomeações foi revaixado para o posto de governador do Jijiga, onde poderia distribuir terras à vontade, já que toda a população era nômade.” (p. 80)
Germame liderou uma revolução fracassada. Ele acabou se suicidando. Mas a “semente do mal” já fora lançada nas terras do império…
É na fala de F.U-H. que encontro uma passagem que se aplica como uma luva à classe média brasileira… Naquele tempo, diz o informante, ele era um humilde funcionário do Departamento de Séquitos, que definia a ordem em que dignitários estariam no séquito do monarca quando de suas viagens ou aparições públicas. Segundo este depoimento, a briga era de foice e martelo (para que jamais esqueçamos o símbolo), particularmente na composição das fileiras do meio, isto é, da abominável classe média… Eis o que diz o informante:
“… toda vez que nosso amo tinha uma visita programada ao estrangeiro ou ia deixar Adis-Abeba para distinguir alguma província com sua augusta presença, iniciava-se no palácio um luta sem trégua para participar do séquito imperial. Os combates eram sempre travados em dois assaltos – no primeiro nossos dignitários duelavam para ser incluídos na comitiva; no segundo apenas os vencedores desse primeiro processo eliminatório disputavam entre si a posição mais alta e a mais digna possível no séquito. (…) Tais fileiras eram formadas por membros da família imperial e do Conselho da Coroa (…). Também não enfrentávamos problemas para compor as últimas fileiras do séquito, formadas pelos guarda-costas, cozinheiros, colocadores de almofadas, camareiros, porta-bolsas, carregadores de presentes (…). Mas entre o topo e o fim da fila havia uma vasto campo livre que era objeto de cerradas disputas entre os favoritos da corte. Enquanto isso, nós, os responsáveis pela composição do séquito, vivíamos como se estivéssemos entre duas grandes pedras de moinho, prontos para ser esmagados por uma delas, porque a nossa função era propor nomes aos escalões mais elevados da hierarquia palaciana. Assim, era sobre nós que desabava o desejo daquela multidão de cortesãos, manifestado através de pedidos, ameaças ou lamentos; havia os que nos ofereciam dinheiro, outros nos prometiam montanhas de outro e outros, ainda, nos ameaçavam com denúncias. Por dias a fio os protetores dos favoritos exaltavam as qualidades de seus protegidos, insistindo para que fossem incluídos na lista, fazendo-nos as mais severas ameaças. Essa insistência dos protetores era até compreensível, pois, ao sentirem as pressões vindas de baixo, eles disputavam entre si a honra de conseguir incluir o nome de seu protegido no séquito.” (73-74). Como se vê, mutatis mutandis, na descrição dos bastidores de um palácio de um tirano temos uma descrição da estrutura social de nosso próprio país.
“Já foi comprovado na prática: um homem exaurido pela fome por toda a vida jamais se rebelará. Lá, no Norte, nunca tinha acontecido um levante. Nenhum dos habitantes jamais elevara a voz ou a mão. Mas basta que um súdito consiga encher a barriga e depois você queira tirar-lhe o prato para ele imediatamente se rebelar. Aí reside a utilidade da fome, no fato de a mente dos homens permanecer exclusivamente focada no pão. Todos os seus pensamentos concentram-se em comida e ele não tem mais cabeça nem disposição para ser tentado pelo prazer da desobediência. Basta ver quem destruiu nosso império. Não foram os que tinham muito nem os que não tinham nada, mas aqueles que tinham apenas um pouco. Sim, sim, é preciso sempre se proteger desses que têm um pouco, pois eles representam a pior e a mais gananciosa das forças – o desejo de ascender.” (p.129).
O ensinamento de A.A. a propósito da utilidade da fome talvez justifique, por exemplo, a exclusão de mais de milhão de brasileiros do programa Bolsa-Família: o governo atual de Michel Temer está reintroduzindo o Brasil no mapa da fome da ONU. E a fome tem sua utilidade… mas aconteceu o que não deveria ter acontecido na história do país: um momento fora da curva!!! E neste momento alguns chegaram a ter pouco e descobriram que podem ter mais… Agora, retirar-lhe o prato de comida pelo desemprego ou pelo congelamento de recursos para políticas sociais pode levar à revolta… É isto que teme a elite brasileira. É isto que odeiam em Lula e nos governos petistas: já não há os que se submetem a trabalhar por um prato de comida e uma roupa velha!!!
Ler O Imperador nos ensina a história da Etiópia, os ensina a história da tirania e nos ensina a ler a realidade vivida num país como o nosso, onde a elite impera com a mesma ganância dos dignitários do palácio de Hailé Selassié I.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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