Frederico Lourenço, atualmente professor da Universidade de Coimbra, mais do que pelos três livros de ficção que publicou (Pode um Desejo Imenso, O Curso das Estrelas e À Beira do Mundo) é reconhecido como especialista em cultura clássica e como tradutor. Sua tradução da Odisseia de Homero lhe valeram os prêmios D. Diniz e Prêmio de Tradução (APT).
Vivendo no meio universitário, O Curso das Estrelas toma a vida na Universidade, com suas vaidades acadêmicas e com os jogos de interesses e poder, como o pano de fundo para um romance satírico onde se opõem dois catedráticos e seus dois assistentes que estavam de olho em suas vagas. Eis como nos são apresentados os dois luminares da filologia, membros de todas as comissões científicas de todos os projetos de edição crítica da Literatura Portuguesa:
“José Júlio Mendes, ao tempo o presidente do departamento de Estudos Portugueses na faculdade onde Nuno se licenciara; e Lourenço da Cunha Barroso, director do Centro de Estudos Renascentistas, uma unidade de investigação com sede na mesma instituição de ensino superior (nas mesmíssimas instalações, de resto, do departamento de Estudos Portugueses…): rivais de longa data, opostos em tudo, menos no co0nservadorismo de ideário; um par de titãs que, não obstante ocupar gabinetes contíguos e interconectados, até, por porta interna, tinha o costume insólito de, em épocas mais conspicuamente atravessadas pelo azedume de velhos rancores, comunicar exclusivamente em registro epistolar (“Prezado Colega…”).
Já nesta passagem se prenunciam os azedumes cultivados por anos de “convívio acadêmico” em defesa dos legítimos ideais da academia, palpavelmente interesses mesquinhos de nome, renome e sobrenome.
O enredo envolve o fato de que um recém-licenciado, Nuno Galvão, foi encarregado da edição crítica das Rimas de Camões. E os dois luminares estavam na supervisão do projeto. As discussões, quando se encontram diante de alguma dificuldade “filológica” são hilariantes. O vocabulário empregado por um e por outro é daqueles do fundo do baú… uma discussão, por exemplo, sobre uma passagem de um soneto em que aparece “belígero plectro”, dá panos para mangas, pois segundo um no ideário camoniano não é a lira o instrumento épico, mas a tuba…
Obviamente não faltam ao romance as relações que passam pelas professoras, pelas doutoras, pelas assistentes, entre os membros da Lírica que se debruçam sobre obras de Camões. Na equipe toda, dois expoentes lutam por serem, cada um deles, os indicados para assumirem a vaga que deixará cada luminar e por isso mesmo o jogo de submissão, de retórica, de encômios povoam as relações ditas acadêmicas. Acontece que o protetor de Nuno Galvão vem a falecer antes de se aposentar. Aberto o “processo sucessório”, participa da comissão seletiva precisamente o desafeto do recém-falecido Dr. Barroso, e por ricochete também desafeto de seu protegido. A vaga “deveria” ser sua, mas morto o patrocinador, o campo se tornou livre e o protegido do que continuou vivo veio a ocupar a vaga que não lhe cabia.
Resta a Nuno afastar-se da grande universidade, onde passa a imperar o Prof. Mendes, e procurar emprego em outro lugar. Vai para uma universidade do Norte, onde é contratado e recomeça a vida acadêmica sob as ordens do Dr. Ligurino Aulácio, numa espécie de exílio intelectual, pois em Portugal há para estes senhores apenas duas universidades: Lisboa e Coimbra.
A última cena entre Nuno e o Dr. Mendes se dá quando este remexe os papeis, os originais, deixados pelo seu oponente para uma edição da Revista de Estudos Renascentistas. Previsivelmente, o trabalho de Nuno sobre o soneto Ditosa pena, ditosa mão que a guia, feito sob a supervisão do Dr. Barroso é recusado pelo Prof. Mendes, que lhe devolve os originais sem publicá-los.
Difícil resumir um livro assim. Irônico, com uma crítica fina às relações deste pequeno poder acadêmico que se exerce de forma tão ruidosa e ruinosa para alunos e colegas. Sua leitura me fez lembrar outro livro, este do brasileiro Roberto Gomes, As alegres memórias de um cadáver, que também foca o mesmo ambiente e os conchavos constantes que fazem a vida da academia se tornar uma redoma da qual dificilmente saem seus “habitantes”. Para aqueles que viveram na universidade ou que estão vivendo nela, os dois livros são um excelente passatempo crítico que poderá abrir os olhos cegados pelo lusco-fusco do brilhantismo dos corredores da academia.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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