Esta excepcional novela de António José Branquinho da Fonseca com narrativa em primeira pessoa de um suposto inspetor das escolas de instrução primária constrói uma personagem mítica, somente designada por Barão, um representante da aristocracia decadente possivelmente dos inícios do século XX português (o fim da monarquia portuguesa ocorre em 1910).
A forma da estrutura da narrativa coloca o leitor em contato quase direto com o Barão, conduz ao mesmo cenário – a maioria do tempo no vasto salão do palácio perdido numa aldeia do interior de Portugal. Os fatos narrados – rememorações do Barão e do inspetor – entrelaçam-se com um enredo quase fantástico do que vai acontecendo enquanto o Barão fala de si e, depois de um momento orgástico, também o inspetor diz de seu amor passado.
A narrativa se inicia com a apresentação que faz de si o narrador – o inspetor – dizendo de seu desejo de sedentarismo que a profissão não lhe permite. Segue, pois, em viagem de inspeção e ao chegar à aldeia busca lugar para se acomodar. Entra a professora, que desaparecerá junto com a escola por completo da narrativa, marcando sua visita para o dia seguinte. Para resolver os problemas de hospedagem e transporte, ela manda recado para o Barão.
Este, chegando à estalagem, convida o inspetor para sua mansão e insistentemente continuará convidando-o para que se demore em sua casa. A todas as recusas, vinha o enunciado que caracterizará um dos aspectos sociológicos do Barão:
– Quem manda aqui sou eu!
A chegada ao imponente casarão, suas incontáveis janelas e cômodos, começarão a aparecer nas descrições sucintas. De fato, eles se dirigem diretamente ao salão, onde o Barão começa a beber e a contar suas histórias do tempo em que viveu em Coimbra como estudante de Direito; suas relações com o pai e com as amantes de ambos; as trocas de mulheres que faziam… e bebia, bebia. O inspetor o escuta e frequentemente perde o fio da meada, porque uma fome aguda o espicaça.
O Barão percebe a desatenção, e convoca a criada e lhe ordena
– Manda chamar a Tuna!
Entre a ordem e a chegada da Tuna – que o leitor nem o narrador sabem o que seja – ocorrem outros eventos: a criada serve o jantar, quando também o inspetor começa a beber; uma caminhada pelos longos corredores; a chamada da criada para que sirva mais vinho… de modo que quando a Tuna começa a chegar, nem o leitor e o narrador já a esperavam:
… neste momento ouvimos ao fundo do corredor, ainda longe, um barulho como o rolar de um trovão que se aproxima. Ele [o Barão] estancou com um sorriso satisfeito. Eu fiquei atónito e imóvel. Recuou de repente e, puxando-me, levou-me arrastado até ao outro extremo da sala de jantar. Eu não sabia que barulho era aquele nem percebia estes vaivéns em que o Barão me trazia.
Era a Tuna. O grupo entra encapuçado, organiza-se em círculo e cada um retira de baixo de suas capas seus instrumentos e começa a tocar. Enquanto isso, as personagens bebem, bebem. Até começarem a dançar, num rito orgástico. Como tal, este sempre demanda excessos, e estes acontecem com a comida e com a bebida, mas contrariamente ao comum das orgias, o sexo apenas aparece sublimado pelas coisas que se contam um ao outro.
Dispensada a Tuna, o Barão convida para irem a casa da Bela-Adormecida, a outra e única mulher que ele havia amado. Saem ambos do salão, mas no meio do caminho o Barão retorna. Seu convidado fica sozinho, no escuro, irritado por ter sido deixado a sós. Começa a caminhar em sentido contrário, perde-se pelos jardins até encontrar a criada, que tenta seduzir. É conduzido ao quarto, onde deita e acende um cigarro. É acordado por um Barão salvador, já que havia fogo na cama em que dormia. Aqui aparece uma referência aos Infernos, imagem que se coadunará com o conjunto dos amores não realizados! Sair do inferno…
E novamente encetar a caminhada até a mansão da Bela-Adormecida. Vão ambos ao jardim colher flores, decide-se o Barão por uma rosa branca. Caminham juntos até os portões da amada, mas somente o Barão pula os altos muros. Novamente o inspetor-narrador se vê sozinho. Caminha a esmo, faz digressões filosóficas – já havia afirmado no início da narrativa “Para pensar bem é preciso estar quieto”.
Distancia-se e perde-se, mas o acaso de um moleiro que vinha pela estrada lhe permitirá comprar toda a farinha e o burro, que monta e retorna até a mansão. Lá surpreendido quando o criado lhe diz que seu patrão sofrera um acidente e estava de cama. Vai ao quarto, encontra-o estendido na cama e este lhe diz:
– Mas ficou… na janela…
O leitor deduz: ao escalar a mansão da Bela-Adormecida, o Barão caiu. Mas lá deixou sua rosa branca.
…
Mais tarde tive notícias dele. Mandava-me dizer que lá me esperava.
Sim, Barão!… Hei-de voltar, um dia. E havemos de tornar a perder-nos pelos caminhos sombrios do nosso sonho e da nossa loucura; e mais uma vez havemos de cantar às estrelas, e dar a vida para ires depor outro botão de rosa na alta janela da tua Bela-Adormecida!…
Estes dois parágrafos finais, em tom irônico, fazem retornar do mundo mítico que Branquinho da Fonseca criou: tanto no que concerne à narrativa em si, quanto à figura principal de sua personagem, o Barão.
Ao lado da decadência da aristocracia, de que o Barão seria um representante; se ao lado dos sonhos e loucuras da busca do amor, da busca da mulher-tigre, da mulher que se ama e que amedronta e que se domina; se ao lado da construção psicológica de uma personagem perdida em si mesma e no tempo de outrora, outra temática, como apontou o crítico português David Mourão-Ferreira, aquela do sedentarismo como possibilidade de pensar se apresenta e é desfeita pelas incongruências do pensar do Barão. Pensa-se bem, também no comboio e em movimento…
O autor, nascido no início do Século XX (1905), participou, como coeditor, da revista Presença (que reuniu escritores como José Régio e Migue Torga). Foi um moderno e sua produção literária se inicia quando ainda nem tinha vinte anos. O Barão é uma novela de sua maturidade. Prova de sua espetacular capacidade de ficcionista. Meu exemplar vem acompanhado de um estudo crítico elogioso de David Mourão-Ferreira.
Referência: Fonseca, Branquinho da. O Barão. Lisboa: Portugália, 1969.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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