Textos sobre textos: O Apocalipse dos Trabalhadores

Embora Walter Hugo Mãe não use letras maiúsculas em nenhuma circunstância e apenas dois sinais de pontuação (vírgula e ponto final), desta vez não vou “colar” meu texto a sua ortografia, como fiz quando comentei O Remorso de Baltazar Serapião.

Em O Apocalipse dos Trabalhadores, o autor nos conta uma história entrecruzada de duas mulheres-a-dias (entre nós, empregadas domésticas diaristas) e um operário ucraniano que, vindo de longe em busca de melhores condições de vida, encontra em Bragança (na região de  Trás-os-montes de Portugal) serviço numa pizzaria e logo após como trabalhador braçal na construção civil. Seus personagens são, pois, trabalhadores. E dentre estes, aqueles que estão no mais baixo patamar de salários e de consideração social.

Maria das Graças e Quitéria moram numa daquelas construções sociais comuns em Portugal:  edifícios de pequenos apartamentos. Cabe-lhes o andar térreo e, sobretudo, o espaço dos estendais onde secam as roupas que trazem do serviço para lavar e passar. Ambas também exercem o ofício de carpideiras, deslocando-se pelas cidades e povoados da região a velarem defuntos sem choro.

Enquanto os trabalhos de doméstica de Quitéria pouco aparecem ao longo da história, aqueles de Maria da Graça são centrais ao enredo. Ela trabalha para o erudito senhor Ferreira: limpa-lhe a casa e cuida de suas roupas e coisas. Serve também de amante: este é um livro sobre o trabalho de goya, dizia-lhe o homem, um génio, veja. são coisas como já não há e nem deus havia de estar consciente da maravilha que vinha ao mundo quando este homem nasceu. sabe, maria da graça, há homens que surpreendem o criador, tenho certeza. (…) ele levantava-se, punha-lhe as mãos nos ombros, inclinava-se um pouco à altura dela e beijava-a. não é que esteja certo, dizia ele, não estará com certeza, mas ambos sabemos o nosso lugar e é dessa forma que a sociedade se estrutura, é essa consciência que faz com que não desmorone. a maria das graças trouxe cor a esta casa, eu já lhe disse isso. depois voltava a dobrar-se sobre a mulher e a tapar-lhe a boca com a sua, perscrutando a língua dela como se caçasse bichos ali dentro. o senhor ferreira não devia, ainda ontem aconteceu, e depois tenho pesadelos à noite, interrompia ela. 

  Este é o grande pano de fundo das histórias destes trabalhadores: o amor e a falta do amor, este sentimento que ensina viver. Embora velho, o senhor Ferreira trazia à Maria das Graças o que seu marido, providencialmente marinheiro, não lhe dava, a não ser ausências enquanto usufruía de seus prazeres nos portos tantos.

O erudito senhor Ferreira, que ensinava Maria das Graças a ouvir Mozart, particularmente o Requiem, suicida-se jogando-se da janela de seu apartamento no centro da cidade, surpreendendo vizinhos e Maria das Graças que antes mesmo de sair para o trabalho recebe um telefonema da polícia perguntando-lhe o que era do senhor Ferreira, e ela responde que era amante. Ao chegar à casa, encontra a polícia a examinar tudo na casa, que o suicida preparara enfeitando-a e deixando maços de dinheiros em vários lugares, provavelmente esperando que Maria das Graças os tomasse para si. Morto o maldito, sobrava-lhe o carinho do cachorro vadio que a perseguira e que ela acabara adotando: dera-lhe o nome de Portugal! No nome do cão, há uma referência provável ao país e seu “status” na comunidade europeia. 

A partir da morte do senhor Ferreira, Maria da Graça sonha todas as noites: está morta e caminha por uma longa praça onde vendedores de feira oferecem quinquilharias como se vendessem aos mortos lembranças da terra para que as levassem consigo para a eternidade. São Pedro jamais lhe abre as portas, apesar de seus rogos: ela queria ver o senhor Ferreira, matar as saudades do maldito que a consumiam e que a faziam morrer de amores. O sonho verdadeiro: morrer de amores. Morte impossível, mas sempre desejada. Nas reflexões de Maria das Graças, o maldito senhor Ferreira se vai tornando o amor perdido para a morte: talvez sejamos muito burras e não seja possível sabermos sobre a vida, queixava-se a maria das graças. passei anos a achar que o maldito, coitado, bendito homem, afinal era bendito, entendes o que digo, que passámos muitos anos a julgar uma coisa sobre o que sentimos, julgámos as coisas a mal, e depois, sem mais nem menos, o que nos falta mostra o quanto nos falta e por quanto seríamos fortes para voltar atrás.

Perdido o emprego, Quitéria a convida para o ofício de carpideira. Por cada velório recebem 50 euros, renda extra que se juntava agora a serviços poucos, porque a crise não permitia a todos contratarem empregadas. Acha um serviço de limpeza justamente na “república” em que viviam os imigrantes do Leste europeu, trabalhadores às vezes muito escolarizados que se submetiam a qualquer emprego nos países da comunidade europeia. Portugal, eterno fornecedor de imigrantes, acaba sendo o lugar para onde fluíam agora imigrantes do Leste. No grupo de homens vindos do leste, um russo (Mikhalkov) que acaba se tornando seu parceiro de poucos prazeres, está o ucraniano Andriy: este se tornará o homem de Quitéria que aos vinte e três anos (…) estaria nas casas a limpar pó, aspirara, passar ferro, mas estaria algo embelezada pelas fantasias que os pretendentes lhe traziam.

Andriy Shevchenko, jovem e robusto, viera da longínqua Kórosten (uma das cidades que sofreu com o acidente de Chernobyl). Este imigrante traz para dentro do enredo outra paisagem e outra cultura, um tanto de história da fome dos anos 1930 que vitimou mais de sete milhões de ucranianos, e a sobrevida no regime soviético. Seu objetivo era ter um emprego, mandar dinheiro para os pais e ir sobrevivendo: gostava de acreditar que a vida podia existir apenas como para uma máquina de trabalho perfeita, incumbida de uma tarefa muito definida, com erro reduzido e já previsto, e com isso atender ao mais certeiro objetivo, enviar algum dinheiro para a família na ucrânia, e nem pensar muito nisso e nunca dramatizar a questão. depositar o dinheiro, saber que seria levantado lá tão longe, e mais nada, pensar no acto como um ofício a mais, um item nos seus afazeres. retirar daí a felicidade das máquinas, uma espécie de contínuo funcionamento sem grandes avarias ou interrupções. a felicidade das máquinas, para não sentir senão através do alcance constante de cada meta, sempre tão definida e cumprida quanto seria de esperar de si. (…) para ser uma máquina feliz, sabia-o bem o andriy, havia que manter-se cuidado e, por isso, ele acabara substancialmente com as saídas e as cervejas. o mikhalkov tinha-lhe dito que, no primeiro ano, à custa de não se poder falar, o melhor era beber a cada noite o suficiente para deixar de pensar nisso. não pensas, não falas, não queres falar. e o andriy passou também o seu ano calado à força de beber demasiado e adormecer quente de álcool. é importante perder a lucidez para não existir qualquer necessidade de ser entendido, repetiu mikhalkov.

Quitéria encontra felicidade em Andriy. No final da história, acaba financiando uma viagem de ambos para a querida Kórosten, pois Andriy não recebia notícias dos pais (o pai lhe escrevia constantemente, mas Ekaterina, a mãe, não punha as cartas no correio, simplesmente as guardava). Maria das Graças, no entanto, ainda que descubra ter se tornado a herdeira do senhor Ferreira, não aguenta a vida com o marido e seus cotidianos, e seguindo o exemplo do amante, acaba se suicidando também se jogando do alto do edifício, sobre os estendais rebentando os fios e manchando de sague as roupas estendidas. Portugal gane e se aproxima…

Ler este livro é descobrir. Descobrir um mundo: a terra dos trabalhadores, pensou a maria das graças, deus talvez nem saiba onde isso fica, se isso fica assim metido entre a terra dos outros homens e das outras coisas. No prefácio, Adonis escreve: “Narrar não é contar a realidade como um facto. Pelo contrário, é compreender ou capturar o momento oculto a partir do qual surgiram as fontes dessa realidade. É escrever aquilo que excede o visível para identificar o real na sua plenitude, no seu infinito”.

O apocalipse do trabalhador está para além da miséria visível, lá onde se encontra uma humanidade em desintegração, causada esta sim pelo visível a olho nu. Ler O Apocalipse dos Trabalhadores é aprender a associar o visível (que está no narrado) com o invisível (que funda o enredo e a história da arte de viver nos interstícios possíveis).

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.