Este romance de Umberto Eco tem a estrutura de um livro dentro de outra narrativa, não pra produzir o efeito de que uma é verdadeira e a outra ficção, mas para separar dois momentos (que materialmente aparecem inclusive na composição com diferentes letras). A narrativa que contém o enredo maior funciona como introdução e como conclusão da história da criação de um jornal – Amanhã – que jamais teve um número em circulação, ainda que organizadas as pautas para os números 0/1 e 0/2 e os redatores tenham se debruçado para compor suas matérias.
Colonna é um escritor frustrado que vive de traduções do alemão para o italiano. O romance, sempre adiado. Considera-se um erudito fracassado: Os perdedores, assim como os autodidatas, sempre têm conhecimentos mais vastos do que os vencedores, e quem quiser vencer deverá saber uma única coisa e não perder tempo sabendo todas, o prazer da erudição é reservado aos perdedores. Quanto mais coisas uma pessoa sabe, menos coisas deram certa para ela.
Ele recebe um estranho convite: participar do cotidiano da feitura de um jornal que jamais circulará e cujo objetivo, do editor e financiador, é dispor do título para fazer chegar a quem lhe interessava a possibilidade de que um escândalo escabroso qualquer estava para ir à prensa e circular. Um jornal que serviria, pois, para uma ameaça. A função de Colonna seria de revisor das matérias como disfarce, mas de fato deveria escrever um livro sobre a elaboração do próprio jornal, durante um ano. Este livro seria publicado pelo chefe de redação, Simei, depois do fechamento do Amanhã. Este o plano. Este o contrato de trabalho.
O corpo de redatores foi composto por seis jornalistas, quase todos eles de experiência fracassada. Entre eles um espião (Lucidi). O enredo se compõe das reuniões de pauta, da elaboração das matérias. Mas o que emerge na narrativa é uma crítica contundente à prática jornalística feita precisamente por quem a executa: jornalista. As personagens acabam apresentando um “código de ética” às avessas (e descrevendo na ficção o modo de funcionamento da mídia e, sem querer, praticamente definindo a mídia brasileira contemporânea!).
Neste jogo é possível perceber um duplo: Umberto Eco é especialista em semiologia, em comunicação! E seus personagens são praticantes do jornalismo… As vozes desses contém a voz do crítico da comunicação: impossível não associar o romance ao trabalho acadêmico do autor.
Consideremos algumas destas acerbas críticas ao jornalismo que, nas vozes do chefe de redação, do revisor ou de algum jornalista, instruem os leitores do romance para efetivamente entenderem o que faz um jornal:
- Não são as notícias que fazem o jornal, e sim o jornal que faz as notícias. E saber por juntas quatro notícias diferentes significa propor ao leitor uma quinta notícia. Este aqui é um diário de anteontem, na mesma página: Milão, joga o filho recém-nascido no vaso sanitário: Pescana, o irmão de Davide não está envolvido na sua morte; Amalfi, acusa de fraude a psicóloga que cuidou de sua filha anoréxica; Buscate, sai do reformatório depois de quatorze anos o gatoro que aos 15 matou um menino de 8. As quatro notícias aparecem na mesma página, e o título da página é “Sociedade Criança Violência”. Certamente se fala de atos de violência em que algum menor está envolvido, mas se trata de fenômenos bem diferentes. Só em um caso (o infanticídio) há violência de pais contra filhos, o caso da psicóloga não me parece dizer respeito a crianças porque não se diz a idade desta filha anoréxica, a história do garoto de Pescana prova, eventualmente, que não houve violência, que a morte do garoto foi acidental e por fim o caso de Buscate, lendo-se bem, se refere a um marmanjão de quase trinta anos, e a notícia verdadeira é de quatorze anos atrás. O que os jornais queriam nos dizer com esta página? Talvez nada intencional, um redator preguiçoso se viu com quatro despachos de agências nas mãos e achou útil juntar todos, porque produziria mais efeito. Mas de fato o jornal transmite uma ideia, um alarme, um aviso, sei lá… Em todo caso, pensem no leitor lendo cada uma dessas quatro notícias individualmente, ele teria ficado indiferente, mas todas juntas o obrigam a permanecer mais tempo nesta página. […] Atenção: fazer notícia é uma boa expressão, notícia quem faz somos nós, e é preciso saber fazer a notícia brotar das entrelinhas. (destaque meu)
- A insinuação eficaz é a que relata fatos sem valor em si, mas que não podem ser desmentidos porque são verdadeiros.
- Se por acaso se espalhasse a ideia de que a poluição no mundo compromete não só as baleias mas também (desculpem o tecnicismo) os perus, acho que teríamos súbitas conversões ao ecologismo. [No contexto: perus = pênis]
- 4. … o leitor acha que a norma é fazer serviço porco e é preciso destacar os casos de profissionalismo, é um modo mais técnico de dizer que tudo correu bem. A polícia capturou o ladrão de galinhas? Agiu com profissionalismo.
- 5. Os jornais ensinam como se deve pensar.
- 6. … para contra-atacar uma acusação não é necessário provar o contrário, basta desqualificar o acusador.
- 7. … ninguém nunca é cem por centro íntegro, mesmo que não seja pedófilo, não tenha matado a avó, nem embolsado propinas, terá feito alguma coisa estranha. Ou então, se me permitem a expressão, estranhifica-se aquilo que ele faz todos os dias.
- 8. De uma não-notícia, cavamos uma notícia. E sem mentir.
- 9. O que a senhora sentiu com a morte o seu filho? Os olhos das pessoas se enchem de lágrimas e elas ficam satisfeitas. Existe uma ótima palavra alemã, Schadenfreude, satisfação pessoal com a infelicidade alheia. É esse sentimento que o jornal deve respeitar e alimentar.
- 10. … por enquanto o nosso leitor é sensível ao assunto. Lucidi, o senhor, que tem tantas fontes interessantes, o que poderia dizer sobre os bichas na política; mas, atenção, sem dar nomes, aqui ninguém quer acabar na Justiça, trata-se só de agitar a ideia, o fantasma, provocar calafrios, sensação de desconforto.
Este decálogo, retirado folhando o livro, mostra que ao narrar esta história o que se vai fazendo é uma crítica contundente à prática jornalística. O leitor também se divertirá com os bastidores da redação, especialmente com a jornalista Maia – que acabará se tornando amante de Colonna, com quem ele ficará no final do romance. O primeiro exemplo retiro da discussão provocada pela necessidade de “substituição” de expressões em matérias jornalísticas. Maia sugere um “Manual de Substituições” e sugere:
– Quero dizer, seria legal sugerir que , em vez de dizer caralho, toda vez que alguém quisesse exprimir surpresa ou decepção, deveria dizer: “Oh, órgão externo do sistema geniturinário masculino em forma de apêndice cilíndrico inserido na parte anterior do períneo, bateram minha carteira!
Maia, por brincadeira, propõe a publicação de anúncios de “encontros pessoais”, mas com a interpretação! Tomemos dois exemplos destes anúncios com suas interpretações:
Patrizia, 42 anos, solteira, comerciante, morena, alta e magra, meiga e sensível, deseja conhecer um homem leal, bom e sincero, não importa seu estado civil, desde que tenha entusiasmo. Interpretação: Putz, com quarenta e dois anos (e não digam que, se me chamo Patrizia devo ter quase cinquenta como todas que têm esse nome) ainda não consegui arranjar um marido e vou levando a vida com a mercearia que herdei da minha pobre mãe, sou um pouco anoréxica e fundamentalmente neurótica; será que existe algum homem que me leve para a cama, não importa se é casado, desde que tenha as devidas vontades.
Ainda tenho esperança de encontrar uma mulher capaz de amar realmente, sou solteiro, bancário, 29 anos, acredito ter boa aparência e um caráter impetuoso, procuro moça bonita, séria e culta que saiba me envolver numa esplêndida história de amor. Interpretação: Não consigo pegar mulher nenhuma, e as poucas que achei eram burras e só queriam casamento, imaginem se com a miséria que ganho vou conseguir sustentar mulher; depois dizem que tenho um caráter impetuoso porque as mando tomar naquele lugar; pois bem, não sou de jogar fora, será que existe algum pau de virar tripa que pelo menos não fale “nós vai” e tope dar umas boas trepadas sem exigir demais?
Há, no entanto, uma história contida nestas histórias todas: Braggadocio, um dos jornalistas, corre atrás de documentos com uma hipótese fantástica – Mussolini não morreu, mas um sósia e ele foi salvo pelo Vaticano e pelos serviços secretos existentes em toda a Europa, financiados pela CIA. Trata-se de um conjunto de conspirações, todas para evitar que a Europa se tornasse comunista, seguindo a União Soviética. Muitos golpes, muitos atentados da direita, tudo reunido numa teoria da conspiração mirabolante…
Braggadocio conta suas investigações a Colonna e, no final, para Simei, o chefe de redação que fica entusiasmado com a ideia de uma longa reportagem, mas pede-lhe que confirme algo duvidoso. Mas Braggadocio aparece morto na manhã seguinte… E o medo se instala entre seus confidentes. O editor/financiador resolve fechar o jornal. E todos recebem dois salários e os agradecimentos de praxe. O Amanhã sem ter tido um único número, desparece.
E então começa a “conclusão” do romance: Colonna esconde-se numa casa de Maia nos Alpes. Lá ouve uma reportagem da BBC, na televisão, em que toda a história de Braggadocio, que consideravam apenas elocubrações, vem a público! A BBC, assim, liberta Colonna de seu medo, e ele não precisará fugir da Itália, como lhe propusera Maia, e poderá ficar por lá mesmo, pois muito brevemente a Itália se tornaria uma republiqueta sul-americana, onde tudo é às claras. Eis a proposta que Maia lhe fizera:
… vamos procurar um país onde não haja segredos e tudo ocorra à luz do dia. Entre a América Central e a do Sul existe um monte. Nada escondido, todos sabem quem pertence ao cartel das drogas, quem dirige as organizações revolucionárias, você se senta no restaurante, passa um grupo de amigos e eles apresentam um sujeito como o chefão do contrabando de armas, todo bonito, barbeado e cheiroso, com aquele tipo de camisa branca engomada que se usa por fora das calças, os garçons o reverenciam señor daqui, señor dali, e o comandante da Guarda Civil vai homenageá-lo. São países sem mistérios, tudo ocorre à luz do dia, a polícia afirma ser corrupta por regulamento, governo e delinquência coincidem por ditame constitucional, os bancos vivem de lavagem de dinheiro e ai de você se não levar mais dinheiro de proveniência duvidosa, tiram-lhe a licença de permanência, matam-se, mas só entre eles e deixam os turistas em paz.
Resta dizer: qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência!
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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