Textos sobre textos: No Inferno

O escritor cabo-verdiano Arménio Vieira, que recebeu o Prêmio Camões em 2009, publicou este romance através do Centro Cultural Português, em 1999. Este é um romance inusitado, cujo enredo o leitor acompanha sempre em dúvida, porque a linearidade cronológica aparente é transgredida não por recortes e retrocessos no tempo, mas pelos deslocamentos que provocam os inúmeros narradores postos a contar as histórias que o compõem não seguem a lógica da coerência. O narrador do penúltimo capítulo diz: “”Leitor, convence-te de uma vez por todas que esta ficção não é como as outras. Ela é maluca, não tem pés nem cabeça.” Mas não se creia que estamos diante de um romance non sense fora do tempo.

A narrativa se inicia com uma Nota Prévia assinada pelo autor que já nos informa que seu personagem foi “compelido a libertar-se pela escrita, ele tentou-o, mas com sofrível sucesso em razão de uma sobrecarga de informações livrescas”. E é talvez este excesso, que o autor demonstra possuir, que se defende uma tese de que o romance já deu o que tinha que dar na história, estando destinado ao desaparecimento:

Incumbido de escrever um romance, à semelhança do protagonista do livro em pauta, não o fiz, porque não quis fazê-lo ou porque não o pude fazer, em virtude de uma série de razões: a) o romance, gênero herdeiro da epopeia, na sua qualidade de narração em prosa de feitos heroicos, deu já o que tinha a dar, tornou-se caduco; b) nas suas versões realista e naturalista, Balzac, Flaubert e Zola tiveram de há muito os seus dias de glória; c) na sua vertente psicologista, atingiu o ápice com Dostoievsky, Proust e Faulkner; d) Joyce, o experimentador fáustico, conduziu-o aos limites; e) deixando o resto de lado, digamos para finalizar que Borges, o último dos grandes ficcionistas, preferiu não escrever romances, mas, em vez disso, elaborar resumos de hipotéticos romances e comentá-los.

O leitor fica avisado: o que encontrará pela frente será um romance “de fim de linha”. Uma despedida do gênero? Ou uma estranha e inusitada narrativa sem heróis e muitos protagonistas às voltas com a própria escrita e o esquecimento que não há do já lido. Imaginei a segunda hipótese, e enfrentei a narrativa. Vamos a seu resumo.

Uma leitora, que se assume narradora em primeira pessoa, lê um poema e decide que quer encontrar o autor. Procura-o em Coimbra e lá fica sabendo que lhe fora encomendado um romance e que o escritor estaria em Praia, na capital de Cabo Verde. Viaja para lá e o encontra num bar. O diálogo é curto e o autor lhe entrega os originais de um romance com a recomendação que depois de lido deveria ser destruído.

A narradora torna-se, então, leitora que nos vai apresentando o livro que lê, mas cuja voz praticamente desaparece, pois abre espaços para um novo narrador, em terceira pessoa, que conta a história de Leopold, um escritor que acorda, desmemoriado e encerrado no segundo andar de uma mansão isolada, em cama vestida de panos vermelhos. Sai a descobrir o espaço em que estava e descobre que não tem saída: estava preso. Recebe um telefonema com longas instruções a propósito do que encontraria em sua nova morada, de que somente seria libertado quando entregasse um excelente romance pronto a ser analisado por um comitê de especialistas: só então estaria livre.

Leopold torna-se Robinson a vasculhar pela casa o que lhe fora preparado. E encontra uma biblioteca com grandes romances: abre um deles e começa a ler e então sua memória se torna um prestígio: consegue repetir este e todos os romances da biblioteca de cor! Sabe-os, já os leu. E já que tinha uma única saída para se ver livre, começa a escrever. Mas seus textos são pequenos contos, que aparecem na linearidade e no mesmo nível de narrativas de seus sonhos. Enquanto os contos põem em ação um narrador, sempre o mesmo, Leopold/Robinson, os sonhos que entremeiam as histórias têm outro narrador (a voz feminina do início do livro?). Sonhos e histórias envolvem sempre personagens da literatura mundial. Romeu e Julieta são presenças constantes. Romeu sempre um inimigo do narrador: afinal, tivera Julieta que o narrador disputa. Mas ele não quer somente Julieta, outra personagem o encanta: Beatriz.

Só por estas indicações o meu leitor já pode perceber a polifonia e as referências constantes a outros autores da literatura mundial. Há duas constantes neste romance: 1) as sucessivas mudanças de narradores/narradora; 2) as inúmeras notas de rodapé indicando as referências literárias e fílmicas que aparecem no interior das narrativas, ora pela citação de algum personagem, ora pela citação literal de passagens de outras obras.

Trazer a voz do outro para o interior do romance (desde o título, que dialoga com O Inferno de Dante); tomar a escrita como o inferno do escritor que para escrever precisa esquecer, porque a escrita é um gesto de esquecimento do lido porque se presente o lido, não há razão para o retorno à escrita; percorrer uma vasta literatura, que vai da Bíblia, passando por obras literárias clássicas, até chegar a personagens de Walt Disney; tudo isso faz a excelência deste romance, já que este mesmo romance se apresenta como uma condensação do que foi o romance e do que suas personagens nos ensinaram ou deixaram como registros dos modos de vida, já que fazendo ficção, conta-se uma história oculta do que poderia ser ou do que de fato era.  Ou seja, o romance No Inferno, por sua forma literária, defende de outro modo o que a Nota Prévia anunciava: que o gênero está agonizante. Mas

Que fazer então? Continuar a escrever romances, fazendo de conta que ninguém os escreveu antes de nós? Ignorando, por exemplo, que as simples cacofonias bastavam para que Flaubert ficasse insone? Que a ambição de uma escrita pura ia anulando Valéry? Que Mallarmé sonhou com o livro irrealizável? Que o Finnegans de Joyce é a romanesca quadratura do círculo? Que os cultores do nouveau roman, a que também se chamou du regard, não passaram de chatérrimos funâmbulos em queda mortal?

A suposição de que o essencial já foi escrito desconsola-nos. Mas seja como for, cultivemos nossos jardins. Foi o que fizeram Hemigway, Camus, García Marquez, Saramago e tantos outros, com Nobel ou sem ele. E saíram0se muito bem.

 

Referência.

Vieira, Armênio. No Inferno. Lisboa : Editorial Caminho, 2000.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.