Textos sobre textos: Kadish. Por uma criança não nascida

Prêmio Nobel de 2002, o escritor húngaro Imre Kertész, neste romance elabora um longo solilóquio do personagem, nominado B., em que ruminações e rememorações emergem desde uma pergunta de outro, o Doutor Oblath, se ele tinha filhos.

“Não”, a resposta dada abre este romance e é seu fio condutor. Se o paradoxo passa, este é um monólogo atravessado por três diálogos fundamentais: o diálogo relatado como “real” com o Doutor Oblath; o diálogo com o filho não gerado e não nascido e, por fim, o diálogo com sua ex-mulher, “a bela judia” que se aproximou de sua mesa de bar para discutir algo que havia escrito ou dito.

Se o “Não” é uma resposta, suas razões vão aparecendo e se impondo. A recusa de ter filhos (Teu não-ser visto como liquidação radical e necessária do meu ser) funda-se no que é inescapável para qualquer eu. No caso, filho de judeus, era-lhe impossível não ser judeu. E isto define-lhe um destino. A narração deste destino, sem qualquer ordem cronológica, constituiu o “enredo” deste diálogo/monólogo, em que a voz do outro aparece reportada mas que se impõe como a voz que interroga e faz falar a personagem: o outro obriga!

Vasculhemos três focos que percorrem todo o livro:

  1. É possível ter filhos depois de Auschwitz?  Sobrevivente do campo de concentração em que foi confinado pelo simples fato de ser judeu, presenciando as atrocidades inomináveis, num tempo de “esclerose dos sentimentos” (esclerose que o sobrevivente receia incorporar em si), a questão posta para gerar um filho é saber que ele será judeu! Nas reflexões sobre o campo, recuperando conversas com outros sobreviventes, cada um dizendo de que campo provém, Mauthausen, Donbogen, Resck, Sibéria, Ravensbruck, Fö utca, Andássy, út 60 “os nomes das aldeias de deportação, as prisões após 1956, Buchenwald, Kistarcsa e eu receava chegar a minha vez, quando felizmente alguém me antecedeu: “Auschwitz” disse alguém em modesta, porém firme entonação de vencedor, e as pessoas assentiram: “Imbatível” […] “Não há explicação para Auschvitz”.

Nas reflexões que se seguem, além de apontar para a falsidade da frase, pois para o que há, há sempre uma explicação […] que Auschvitz seria o produto de forças irracionais não apreensíveis pela razão, […] todas as ações deixam-se derivar como uma fórmula matemática; derivadas de algum interesse, da ganância, da preguiça, da cobiça de prazer e de poder, da covardia, da satisfação de um ou outro instinto e, se de nada além disso, então de algum delírio da paranoia, da doença maníaco-depressiva, da piromania, do sadismo, do assassinato compulsivo, do masoquismo, ou megalomania demiúrgica ou outras megalomanias, da necrofilia, de alguma entre as tantas perversidades que conheço, ou talvez de todas ao mesmo tempo, porém, eu poderia ter dito, tenham agora bastante atenção, pois o realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal, é o Bem.

As contínuas reflexões sobre Auschwitz, de um sobrevivente, que se atendesse ao que lhe propôs a então mulher, hoje ex-mulher, ter um filho e a resposta pronta “Não” se justifica. Depois de barbárie, o Bem se torna inexplicável porque resulta do Amor, e a falta do Amor reduz a humanidade do homem, e o torna o nascedouro da esclerose dos sentimentos.

  1. 2.       O sentimento de ser estranho

Pertencer a algo: uma religião, uma sociedade, uma comunidade. Não ser estranho: este o Dasein de ser judeu. Paradoxalmente: ao mesmo tempo que fechados em seu mundo próprio, e por isso mesmo de uma pertença grupal fortíssima por nascença, por destino, os judeus são sempre estranhos onde estiverem. … com o exílio de uma sociedade não se torna, automaticamente, membro de uma outra sociedade. O judeu que se exila continuará sempre judeu. E o totalitarismo sempre pode voltar e se voltar contra o judeu: … vivo porém com o sentimento de que os alemães podem voltar a qualquer momento, e se atribuo um determinado sentido simbólico a essa concepção ou modo de vida, ou como eu possa chamar, logo isso parece menos absurdo, pois é real e verdadeiro, no sentido simbólico é verdade, os alemães podem voltar a qualquer momento, a morte é um mestre da Alemanha, seu olho é azul, ele pode vir a qualquer momento, ele lhe encontra, onde quer que você esteja ele lhe encontra.

Se este sentimento de estranheza, de exílio, está entranhado como passado, quando tomado pelo amor, confessa a personagem em conversa com sua mulher, este amor somente pode advir do esquecimento, por um momento, do passado, do peso do tempo. Nietzsche é invocado: Há um grau de insônia, de ruminar do passado, de sentidos históricos junto ao qual o vivo é prejudicado e por fim perece, seja este vivo um homem ou um povo ou uma cultura […] quem não pode se instalar no limiar do momento, esquecendo todos os passados, quem não pode ficar em um ponto como uma deusa da vitória sem vertigem e medo […] esse nunca saberá o que é a felicidade, e pior: nunca fará algo que faça outros felizes.

Esta invocação do momento, da paixão e do amor, ou seja, do êxtase, produz felicidade. E a felicidade torna o homem, confessa a personagem, improdutivo. Por isso, é preciso afastar a felicidade para que a produção não pare jamais.

  1. 3.       O internato e a autoridade paterna

São antológicas as páginas em que a personagem narra seu tempo de internato, em que entra ainda criança, para ficar até ao fim da adolescência. Neste espaço e neste tempo viveu num mundo anímico: a onipresença do Ser e aparecimento do diretor, que tudo via, produz o efeito desejado, já que perante o pai e perante Deus somos sempre culpados, da crença na onipotência do pai (o diretor) ou de Deus que conhecia meus pensamentos já no instante de sua formação.  Ao viver cercado de tabus, seus poderes chegavam à materialidade da ditadura pedagógica em todos os seus rituais. O exemplo que narra é da expulsão de um colega de dezessete anos que, fechado num quartinho existente no dormitório comum, fazia amor com uma empregada jovem. Flagrados, foram retirados do quarto ainda nus. E a expulsão da jovem se deu de imediato, mas a expulsão do colega havia que preencher o ritual público da execração do pecado. O escândalo da castração pública que, para nos intimidar, acontecia sob nossa colaboração, isto é, nós colaborávamos para nossa intimidação quando castrava-se um de nossos colegas.

Com um ritual como este, ao castrar um pelo castigo, castra-se a todos. Diante da autoridade do pai: Neurose e violência como formas exclusivas, sistematicamente formadas da relação, adaptação como possibilidade única de sobrevivência, obediência, como práxis diária, delírio como resultado final.

Quando terminei de ler Kadish. Por uma criança não nascida, visitei a Estante Virtual para comprar todos os livros de Imre Kertész disponíveis. Aguardo a chegada dos livros para voltar a ele. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.