Textos sobre textos: Geração do Deserto

O escritor catarinense Guido Wilmar Sassi, nascido em Lajes, neste romance histórico, narra a saga da Guerra do Contestado (1912-1916), região de terras que permaneceu por longo tempo em disputa entre os Estados de Santa Catarina e Paraná, e que levou os camponeses à luta armada em defesa do direito à terra.

Na construção da estrada de ferro Rio Grande-São Paulo, o governo da República cedeu à empresa construtora nada menos do que 15 kms à direita e à esquerda dos trilhos. Depois, o território foi entregue a empresas de colonização, que expulsaram ou mataram os agricultores que ali viviam para estabelecer colônias com venda legalizada das terras a novos colonos.

O movimento de revolta foi considerado “messiânico” já que dois monges foram essenciais à crença num futuro por famílias espoliadas de seus recursos de sobrevivência e expulsos das terras que ocupavam. Primeiro o Frei João Maria, que sumiu da região prometendo que voltaria; depois um suposto frei, José Maria, que se disse irmão de João Maria, assume a liderança religiosa dos revoltosos. Morto José Maria no reduto de Taquaraçu, substitui-o Frei Manuel com as mesmas funções de preservação de uma esperança de ressurreição, de terras e de vida digna.

O romance divide-se em três partes, intituladas todas elas pelo nome da localidade em que se reuniram os revoltosos: Irani, donde saem sem confronto armado com a polícia, depois de negociações entre o líder Frei José Maria e o comando policial. Deslocam-se para Taquaraçu (sede do grupo inicial que se deslocara para Irani). Em Taquaruçu organiza-se uma espécie de estado, com ministros e milícia própria, com os 12 Pares de França designados entre os melhores e mais fortes guerreiros. Monarquistas, chegam a escolher um imperador, Dom Rocha Alves, um fazendeiro simpático aos revoltosos.

A polícia militar do Paraná faz uma primeira tentativa contra os revoltosos, e é rechaçada. Segue-se uma segunda frente, do exército e da polícia, que arrasa com o vilarejo. Os que sobreviveram escolhem outro lugar, mas defensável: Santa Maria, um vale entre serra e mais serras, um desfiladeiro. Imaginado inexpugnável.

Já sem seus santos João Maria e José Maria, a orientação da vida passa a ser dirigida por leigos, sempre crentes. Elias de Morais se tornará a liderança principal; a condução religiosa será exercida por Frei Manuel que interpretava os contatos das “virgens eleitas” com seus santos padroeiros. Adeodato assumirá a Defesa e chefiará os ataques contra os soldados que agora, vindos do centro do país, buscam acabar com o fanatismo dos caboclos, até chegarem ao extermínio da revolta…Este o pano de fundo histórico sobre o qual o narrador tecerá inúmeras histórias vividas por seus personagens, frequentemente em forma de espelho.

As desavenças entre Daniel e Gegé, ambos candidatos a maridos da mesma mulher, sendo Gegé o escolhido, resultam no assassinato de Daniel depois de um enfrentamento com os soldados. De forma especular, mas distinta, estas se repetem nas desconfianças entre Tavinho (cego) e Tibúrcio (o leproso que lhe servia de guia), este escondendo daquele que havia encontrado dinheiro com um soldado morto. Dinheiro maltido, dinheiro papel, da República. Dinheiro que não podia circular entre os revoltados, mas com que Tibúrcio comprava doces, cigarros, guloseimas que consumia à noite quando supostamente Tavinho estava dormindo. Este chega até a ensaiar planos de morte de Tibúrcio, mas este morre sem que haja explicações no enredo. Tavinho, a partir de então, dedica suas noites para encontrar o corpo e apossar-se do dinheiro. Consegue fazê-lo, mas perdido na mata acaba sendo morto pelos soldados.    

As andanças dos revoltados, o enfrentamento com a polícia e com o exército, as primeira vitórias e a retumbante derrota, a crença em seus santos, a demonização da república e o sonho com o retorno da monarquia, tudo aproxima este movimento a Canudos.

Sob José Maria, tudo tentava imitar sua predileção: Carlos Magno e seus Pares de França; sob Elias de Morais, uma interpretação bíblica: ele estava conduzindo seu povo a uma nova terra prometida, mas fazia parte da geração que “morreria no deserto” e não chegaria ao lugar sagrado da bonança. Por isso, Elias se enxergava como um Moisés no deserto (certamente desta imagem vem o título do romance, Geração do Deserto).

O romance é muito bem escrito, em estilo leve e com ações que se desenvolvem com rapidez, como a própria guerra que durou quatro anos. Às vezes aparecem referências à cessão das terras à Estrada de Ferro, às colonizadoras, ao extermínio da população, à concorrência desleal trazida pela indústria madeireira com suas máquinas modernas que levou à falência pequenas serralherias. Mas o romance não explora as causas que fizeram emergir e que sustentaram por tanto tempo uma revolta de uma população desarmada e sem recursos até para a sobrevivência física. A narrativa prefere enveredar por “cotidianos” entre os revoltosos, em pequenos episódios, sempre entremeados pelo enfrentamento com as forças da lei e da ordem.

Chama a atenção o emprego, ao longo de todo texto, de itálicos em três expressões: fanáticos, peludos, pé redondo. As duas últimas expressões eram usadas pelos revoltosos referindo-se aos soldados; a primeira é do narrador referindo-se aos revoltados, também frequentemente chamados de jagunços, mas esta expressão não vem em itálico. Esta marcação pode significar um distanciamento ou estranhamento do narrador com a forma de referência. Mas também pode ser o modo de chamar atenção do leitor para a própria expressão.

Diferentemente de A Guerra do Fim do Mundo, de Mário Vargas Llosa, sobre Canudos, aqui você não encontra nenhuma simpatia do narrador pela luta que seus personagens travam contra a exploração!  Aparentemente o narrador se coloca num ponto de vista externo às condições de emergência e às realidades concretas vividas na revolta. Também não assume a defesa das forças da ordem mandadas a campo para exterminar com os revoltosos.

Neutralidade? Considerando as comezinhas das brigas internas, as evidentes crendices em patuás, em bênçãos, em ressurreição, em contato das virgens com seus santos que lhes mandavam através delas recados, o misticismo religioso, os castigos infligidos às mulheres viúvas que duvidavam que seus homens estivessem retornando para com elas deitarem (a fórmula encontrada por Elias para resolver o problema da falta de mulheres para os guerreiros) e a forma continuada de referência aos guerreiros tratados como jagunços desvela o contrário: não há simpatia pela causa.

Certamente escolher este pano de fundo; trazê-lo à leitura nos anos 1960 quando havia luta pelas Reformas (o livro foi publicado em 1964); deixar claro que houve expulsão de camponeses e destruição de pequenas indústrias, que houve fome entre peões e trabalhadores rurais, tudo isso é já uma escolha significativa. Mas a posição distanciada da narrativa jornalística de Euclides da Cunha se impôs, ainda que o que se narra seja ficção, a história aparecendo como pano de fundo! Obviamente, o modelo não poderia ser Mário Vargas Llosa: o romance A Guerra do Fim do Mundo é de 1981.

O leitor de hoje de Guido Wilmar Sassi, no entanto, tem outros parâmetros em função de outas perspectivas antropológicas de compreensão da Guerra do Contestado. E por isso estranha a suposta isenção e a falta de simpatia do narrador para com seus personagens. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.