Textos sobre textos: Figura na Sombra

Este romance de Luiz Antonio de Assis Brasil é o quarto volume de um conjunto de romances históricos, Visitantes ao Sul. Este volume é dedicado ao botânico Aimé Bonpland: uma biografia ficcionalizada, mas alicerçada na história real vivida em parte com o companheiro de aventuras e estudos, Alexander von Humboldt. Somente a sabedoria de Assis Brasil poderia escrever este livro.

De forma extremamente criativa, o autor põe em diálogo o célebre botânico, já quase no final da vida,  com  seu visitante, o cientista Robert Avé-Lallemant, na modesta sede da Estância Santa Ana, em Corrientes, na Argentina, em 1858, precisamente o ano da morte de Aimé Bonpland.

Assim, a palavra fica com Aimé: ele narrava de seu ponto de vista toda sua vida, desde La Rochelle (lugar de nascimento, que pouco aparece no romance), passando pela vida em Paris enquanto cursava Medicina, mas efetivamente se apaixonava pela botânica, organizando seus inúmeros herbários, classificando as plantas segundo a ciência da época.

Encontra-se com Humboldt, nobre com recursos que dedicou a vida à ciência, com o qual faz a viagem para a América do Sul, chegando ao porto de Cumaná, na Venezuela. De lá parte a expedição, com seus instrumentos de pesquisa, em observação da natureza, colhendo exemplares de plantas desconhecidas, que Aimé vai classificando durante as longas viagens pelos rios. A descoberta maior dos aventureiros foi o canal Casiquiare, que liga as bacias do Orinoco com a bacia do Amazonas, através do rio Negro. A aventura de realizar este percurso em embarcações improvisadas, passando por todos os perigos possíveis, é uma das grandes páginas da história.

“Minha viagem com Humboldt foi errática, comanda pelas pestes, pela política, pela paixão, pela geografia, pela boa ou má disposição dos capitães de navios. O gênio de Humboldt deu sentido a uma aventura dirigida pelo acaso. A viagem, para ele, foi um meio para comprovar sua teoria. Ele buscou a totalidade em meio à confusão dos seres. Ele morrerá com a certeza de havê-la encontrado. Quanto a mim, encontrei a solidão, a malária e o amor. Depois disso, encontrei o pesar, o remorso e, por fim, a remissão e a sabedoria. E quanto mais vivo, mais constato que tudo é diverso, tudo é frágil, tudo é múltiplo e surpreendente.”  

Retornados à Europa, os cientistas começam a escrever Voyage aux Régions Équinoxiales (infelizmente são poucas as traduções de suas obras disponíveis no Brasil). Serão vários volumes, e as tarefas foram distribuídas entre eles. O sonho de Humboldt era encontrar na diversidade a unidade, tese que acabou defendendo em Kosmos, sua principal obra sobre as ciências da natureza.

“Um livro não substitui a vida. Qualquer livro sempre é um necrológio, um inventário. Depois de um livro publicado, cessa a busca que levou o autor à sua escrita. Nas estantes das lojas, o livro torna-se algo mesquinho. Enquanto o livro permanece na gaveta de quem escreve, estará salvo.”

Ambos, ainda em Paris, vão visitar a imperatriz Josefina (esposa de Napoleão) e sua estufa com plantas de todas as partes do mundo. Surge então a grande paixão de Aimé: ele não consegue se desligar de Josefina, que chamará de Rose e para a qual produz um tipo especial de rosa, a que dá o nome da imperatriz. Atendeu a seu convite e se torna o botânico do Império, passa a viver no palácio de Mailmaison, em que vivia Josefina. Ama-a com os olhos, com o coração. Sabe-se talvez correspondido, mas tudo permanecerá um amor platônico. A este período, Assis Brasil dará o nome de Prisão de Vidro.

Por causa de seus afazeres em Mailmaison e sobretudo por causa de sua paixão, Aimé Bonpland abandona o projeto conjunto com Humboldt, mas este continua sua obra e publicando-a sempre em nome dos dois.

“Eu estava apaixonado. Pessoas apaixonadas sempre traem alguém. Eu traía Humboldt, mas entre nós se interpunha a Natureza, essa entidade que entendíamos de maneira tão diversa.”

Com a morte da imperatriz, “a Europa ficara despovoada” e o botânico, para esquecer tudo, retorna à América do Sul, mas para uma região diferente daquela que explorara com Humboldt. Quer esquecer e por isso não pode voltar aos mesmos lugares que o lembrarão do companheiro e de seu abandono do projeto conjunto. Vem para o sul, vem para Buenos Aires, onde organizaria para o governo um Jardim Botânico e um Museu de História Natural.

No entanto, as constantes mudanças políticas jamais lhe permitirão realizar esta obra. Desiludida, abandonará mulher e enteada para perseguir outro sonho. Encontrando homens tomando chimarrão, descobre a “erva-mate” e sai em busca desta erva que considerará milagrosa. Conhece a geografia, precisa chegar às terras em que a yerba era nativa. Segue para o norte, compra uma fazenda e começa sua plantação de erva-mate. Torna-se estancieiro.

Plantando erva-mate, encontra um inimigo: o Dr. Francia, El Supremo, Ditador Perpétuo do Paraguai. Embora as terras de Aimé não ficassem no Paraná, elas foram invadidas a mando do ditador que tudo destrói e o prende em Cerrito, onde tem a liberdade de formar nova plantação e viver em paz, mas prisioneiro. Não pode deixar o Paraguai. El Supremo o mantém prisioneiro, apesar dos inúmeros pedidos de autoridades e cientistas do mundo inteiro. Em Yo, El Supremo, Augusto Roa Bastos inclui este período de prisão do cientista, inclusive o da consulta que lhe faz o ditador quando estava sem esperanças com suas inúmeras doenças.

Como todo ditador, certa manhã El Supremo acorda decidido a libertar Aimé Bonpland, mas este tem que sair do Paraguai nele deixando sua mulher e filha!

“Nenhuma autoridade, entretanto, consegue disfarçar-se da vigilância da História.”

Mais uma vez Bonpland está na estrada. Com o dinheiro que acumulou com a venda do produto das plantações de erva-mate comprara terras no Brasil (na região de São Borja) onde chegará precisamente durante a Revolução Farroupilha. Acaba construindo um hospital de campanha para atender feridos das revoluções do Brasil e da Argentina. Mas não abandona sua plantação de erva-mate. Como tinha também outras terras, estas em Corrientes, acaba se transferindo para a Estância Santa Ana, às margens do rio, para recomeçar tudo.

“Nada que é novo nos pertence. É preciso que  o tempo, em seu curso, dê às coisas um sentido, exclusivo de seu possuidor. Só depois de um ano ele considera aquelas terras como suas.”

Será na Estância Santa Ana que Avé-Lallemant, portador da homenagem que lhe envia Humboldt, o encontrará e ouvirá sua história, contada duas vezes e sem mudanças. Quando termina de ouvir pela segunda vez a narrativa:

“- Mas doutor Bonpland – diz Avé-lallemant – penso ter escurtado a mesma história.

“Foi outra. O que eu lhe disse, quando me entregou a medalha mandada por Humboldt?”

– Peso que foi: “Só um homem generoso como Humboldt pode dar esses presentes do coração”.

“Mas eu dizia com a minha alma: ‘Nunca poderei retribuir esse gesto. Esse presente me sepulta mais no meu remorso.’ O que importa, doutor, é o sentimento com que as coisas são ditas.”

– Como é isso? – Avé-Lallemant alarma-se.

“Quando lhe contei os fatos da minha vida pela primeira vez, foi pensando no que o senhor diria para o mundo e para a minha Posteridade; na segunda vez, eu contei tudo debaixo do sentimento da vergonha e do perdão. Eu precisava ser perdoado.”

É para este mergulho na alma de um homem, de um cientista, que Assis Brasil nos conduz. Bonpland, reconhecido e homenageado pelo mundo, sempre carregou – neste romance que lhe mostra a face humana – o remorso por ter preferido a paixão à ciência; a vida ao livro.  Por isso confessa

“Minha vida é demasiada. Um homem vive apenas para arrepender-se das suas infidelidades e para experimentar seu próprio declínio. Meu caro doutor Avé-Lallemant: dá-me agora um imenso sono. Já conversamos tudo o que deveríamos.”

Resta recuperar, no próprio texto, a razão do título do livro: Figura na Sombra

“E quando na Europa souberem que eu morri, muitos dirão que me julgavam morto há muitos anos. Isso acontece a quem foi uma figura na sombra. Mas viver a sombra foi minha melhor absolvição. E n ão falo apenas à sombra de Humboldt, mas à sombra do que é bom e que é belo, à sombra do amor, à sombra da vida.”

Impossível não transcrever certos enunciados. Nos idos de 1958, meu professor de Língua Portuguesa ensinou a todos nós que organizássemos um “florilégio” com dizeres. Pois aí vai o que então anotaria no meu “florilégio”, para sempre perdido ainda em 1958:

Os suicidas, por não encontrarem respostas, legam-nos as perguntas.

O viajante não vê o conjunto, mas o pormenor imediato. E, ainda, ele tudo avalia segundo seu próprio interesse e suas paixões. A imparcialidade é a menor de suas virtudes.

As responsabilidades dos velhos são sempre tremendas, pois tudo o que fizerem é sob o olhar da Morte.

… na Natureza não há reis, apenas súditos abandonados a uma vontade confusa e, no entanto, esplêndida.

A inveja e o ciúme vigiam nossos passos.

O improvável também pode ser verdadeiro…

A mente humana é um poço de esquecimentos.

Os livros têm existência material para que as ideias não se percam.

Um homem ilustrado que dispensa os livros é um homem sábio. Um erudito precisa dos livros, os sábios os escrevem.

Minhas reais descobertas são aquelas que podem ajudar as pessoas a viverem melhor, tanto do espírito como do corpo. Essa é uma forma bela de viver.

Uma Posteridade só existe quando a vida é contada para alguém.

As estrelas ignoram os destinos dos homens. As estrelas lançam os homens no esquecimento.

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Apenas um adendo: já encomendei todos os outros três livros do conjunto “Visitantes ao Sul”.

AY5Mjozhu0 Administrator
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