Textos sobre textos: Feras de lugar nenhum

Tematizando a guerra, o escrito nigeriano Uzodinma Iweala nos faz vê-la pelo olhar de um menino-soldado, Agu, incorporado a um grupo de rebeldes depois que estes destruíram sua aldeia e mataram seu pai. Sua mãe e irmã haviam fugido antes, levada pela ONU como refugiadas. Ele, apesar de criança, sendo o filho homem mais velho, segue a tradição e fica com seu pai esperando a guerra.

A guerra que o leva a se fazer soldado, a ser massacrado por um Comandante pedófilo, e a aprender a massacrar e matar enquanto sonha em encontrar sua mãe e sua irmã, sem abandonar jamais o desejo de ser um dia engenheiro ou médico!

A narrativa de Uzodinma é comovente. E a leitura flui criando ao mesmo tempo raiva e revolta contra a guerra, contra qualquer guerra. Obviamente o texto é de ficção, mas sabemos todos que meninos-soldados foram incorporados e se tornaram soldados que cantavam os soldados adultos:

                                            Soldado, Soldado

                                            Matar Matar Matar

                                            É assim que você vive.

                                            É assim que você morre.

Caminhando pelas estradas, escondendo-se na mata, invadindo aldeias, matando quando lhe mandam matar, aceitando as exigências do Comandante com medo de ser morto, Agu reflete sobre o mundo e sobre si mesmo e sobre a guerra.

“Não sou um menino mau. Não sou um menino mau. Sou um soldado e o soldado que mata não é mau. Digo isso para mim mesmo porque os soldados têm que matar, matar, matar. Então se mato, só estou fazendo o que é certo. Fico cantando uma música para mim mesmo porque ouço muitas vozes na minha cabeça dizendo que sou um menino mau. Elas vêm de todos os lados, zumbindo no meu ouvido que nem mosquitos, e cada vez que ouço essas vozes, sinto meu coração ficar apertado e meu estômago embrulhado.”

A técnica do autor para fazer compreender a passagem do tempo aparece com uma forma estilística muito forte, e sempre como reflexão de Agu:

“O tempo passa. O tempo não passa. O dia vira noite. A noite vira dia. Como posso saber o que está acontecendo.{…] Como posso saber o que está acontecendo comigo?”

“É noite. É dia. Está claro. Está escuro. Está muito quente. Está muito frio. Está chovendo. Está fazendo muito sol. Está muito seco. Está muito úmido. Mas estamos lutando o tempo todo. As balas comem tudo, folhas, árvores, chão, pessoas – comem tudo – fazendo as pessoas sangrarem por todos os lados e o sangue tomar conta do mato.”

Espalhadas pela narrativa da caminhada e das lutas, das invasões e da fome, encontram-se aqui e ali outras narrativas, de mitos fundadores das culturas que compõem a Nigéria de então. Quase sempre remetem à fundação das cidades, à vingança dos espíritos. Ao mesmo tempo, a presença constante e intermitente da Bíblia! Agu é filho de professor, frequentava a escola e lia a Bíblia. Sua mãe era benquista pelo Pastor.

Quando os soldados se rebelam contra o Comandante e o matam, seguem pela estrada em busca de não se sabe o quê. Na caminhada, morre o melhor amigo de Agu, Strika, outro menino incorporado ao exército dos rebeldes e que se recusava a falar qualquer palavra, de modo que os outros achavam que fosse mudo. Somente na hora da morte fala com Agu, pedindo-lhe que não o deixe sozinho. E então Agu fica sabendo que Strika fala… O episódio é extremamente comovente.

Recolhido por uma missão católica na estrada que passou a percorrer sozinho, tendo já abandonado a arma que era obrigado a carregar, Agu volta a comer! E os missionários insistem para que peça perdão e para que conte o que lhe aconteceu. E o narrador não perdoa:

“Às vezes falo pra ela, não vou contar tudo porque vi muitas coisas horríveis demais para contar. Vi mais coisas horríveis do que dez mil homens e fiz mais coisas horríveis do que vint mil homens. Então, se eu contar todas essas coisas horríveis, ficarei muito triste e você também vai ficar muito triste porque existem muitas coisas horríveis nessa vida. E quero ser feliz. Só quero ser feliz.

Digo isso a ela, e ela só olhar para mim e vejo que está com o olho cheio d’água. Então digo a ela, se eu contar todas as coisas que fiz, você vai pensar que sou uma espécie de fera ou diabo. Amy nunca diz nada quando falo isso, mas a água em seus olhos brilha. E digo a ela, tudo bem. Sou todas essas coisas. Sou todas essas coisas, mas uma vez já tive uma mãe, e ela me amava.” 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.