Neste curto romance (novela?), o escritor francês Michel Tournier (mais conhecido entre nós pelo seu excelente Sexta-feira ou os limbos do Pacífico) elabora uma parábola em que faz um pastor reviver, pela fé, a história de Moisés. Em nota de pé de página, o autor afirma que a inspiração da história veio de uma pergunta, retirada literalmente do livro Moisés, de André Chouraqui:
A proibição que Jeová fez a Moisés de entrar na Terra Prometida escandalizava há séculos milhares de gerações de teólogos judeus e cristãos. Como o melhor dos filhos de Israel, o maior dos profetas e o único a anunciar a Torá ao lado da Sarça Ardente no Sinai, pôde ser tratado assim pelo divino mestre de toda justiça?
A história é de um jovem filho de família protestante que por algum tempo esteve junto a um marceneiro aprendendo, mas sua morte súbita desfez o sonho do rapaz de substituí-lo na oficina. Vai à feira Galway com um galho no gorro, na esperança de encontrar um mestre, mas seu pai, no entanto, negociava com um criador o trabalho de seu filho como pastor.
Vivendo como pastor de ovelhas, Eliazar descobre sua vocação para pastor de homens. E faz seus estudos de religião e teologia para começar a pregar na sua região natal da Irlanda, numa comunidade incrustrada entre católicos. Acaba se casando com a filha de um rico proprietário, Ester. Com ela teve dois filhos: Benjamin e Cora.
Em certo momento de êxtase – momentos frequentes ao longo da narrativa – sente-se iluminado e compreende que as Escrituras lhe destinam: ser um novo Moisés sem conduzir, contudo, o povo hebreu as terras de leite e mel, mas conduzir sua família para o novo mundo.
Embarcam e por 40 dias no barco Hope atravessam o oceano e chegam à Virgínia. De lá partem em caravana de imigrantes para o oeste: a Califórnia (novo Canaã) é o destino. Percorrem grande trecho junto com a caravana, mas novamente inspirado e relutante contra os pecados cometidos por seus companheiros de viagem, separa-se do grupo para sozinho conduzir sua família através do deserto, atravessar a Serra Nevada e chegar à Califórnia.
As peripécias da viagem são narradas e seus episódios sempre compreendidos à luz da Bíblia, do Antigo Testamento, da figura de Moisés. Todas alegrias e desventuras têm uma interpretação bíblica. Eliazar somente se pergunta se também a ele seria impedido de chegar à terra prometida, a terra da abundância.
Consegue escapar de um ataque de índios por um “milagre”: algumas noites anteriores ao ataque, o melhor arqueiro do grupo havia destinado uma flecha à lua. A lua sempre a devolvia e aquele que a encontrasse teria sua proteção. Acontece que daquela vez a flecha atingiu uma das carroças da família. Cora, uma personagem um pouco retraída e um pouco mística, pede ao pai que não retire a flecha. Pois é esta flecha que, reconhecida pelo cacique Serpente de
Bronze, acaba protegendo a família.
Seguindo pelo caminho, entram no deserto. E como lhe dissera o guia da caravana, você saberá se está no caminho certo se nele for encontrando carroças abandonadas, corpos insepultos, esqueletos… são daqueles que se arriscaram pelo caminho que Eliazar acabou escolhendo.
Seu próximo encontro será com um bando de criminosos que assaltavam caravanas. Um destes bandidos, providencialmente chamado José, aproxima-se da família para descobrir sua capacidade de resistência. Depois acaba se juntando a ela e com ela organiza a defesa contra seus antigos companheiros de crime, já que havia sido conquistado pelas pregações do pastor Eliazar. Embora tenham se salvado, o pastor acaba ferido.
Para ele isso foi um sinal de Jeová: ele, como Moisés, não entrará na Terra Prometida. Efetivamente não entra: quando chegam às pradarias californianas, vendo as plantações de frutas, Eliazar retorna para a floresta encarregando José (Josué na Bíblia) para conduzir sua família. Mas não consegue caminhar muito. No dia seguinte, sua mulher Ester, seus filhos Benjamin e Cora, e o novo membro do grupo José o encontram morto na floresta, e o enterram.
O segundo título do romance é explicativo: entre a fonte (de leite e de mel), e a sarça (ardente) do deserto, Moisés ouviu da Sarça Ardente a voz de Jeová. Castigado, fica no deserto com a sarça sem chegar à fonte.
Outra alusão constante é à Irlanda como a terra verde, de fontes, águas e brumas… Mas estas não são fontes de “leite e mel” da terra prometida. São na verdade, na compreensão que faz de si e da vida o pastor Eliazar O’Braid, apenas empecilhos que não lhe permitiam compreender efetivamente o Antigo Testamento. Sua iluminação precisará da luz do deserto para chegar e para que ele compreendesse: seu destino, como parábola, era ser um Moisés da imigração ao oeste americano.
Uma bela parábola!
Referência: Tournier, Michel. Eleazar ou a Fonte e a Sarça. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1998.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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