O escritor português Ascênio de Freitas, nascido na Gafanha de Nazaré, em Aveiro, mas muito cedo foi para Moçambique, onde ficou por trinta anos, retornando em 1977, portanto depois da independência das colônias portuguesas promovida pela Revolução dos Cravos.
Quando comprei seu livro E as raiva passa por cima, fica engrossar um silêncio, coloquei-o na minha estante junto aos livros de escritores africanos. E ao começar a ler os contos que o compõem, fiquei tão entusiasmado que fui ao Google saber quem era o escritor e para minha surpresa descubro que nasceu em Portugal. Comprei outros livros seus, mas por enquanto continuarei a manter este volume junto aos demais autores africanos. E as razões ficarão claras só pelas citações que farei.
Este conjunto de treze contos foi organizado em duas partes: a primeira é composta por contos em que as histórias são narradas por africanos; a segunda parte contém narrativas de “retornados” para Portugal (foram chamados de “retornados” os português e africanos das colônias que decidiram retornar a Portugal quando da independência ou logo após a independência). No conjunto, a técnica narrativa se repete: um narrador que introduz a voz de um narrador-personagem. Em todo conjunto, se desvela uma linguagem oral carregada de matizes próprios da modalidade, com a presença das marcas da dialetalização do português nas colônias, no caso, Moçambique. Já no título do livro, uma única marca de pluralidade aparece. Aliás, o autor abre o livro com duas epígrafes precisamente sobre a linguagem:
E nem pela simples razão de o português fundamental, lógica e fatalmente se retransformar no uso quotidiano dos países africanos de língua portuguesa (…) dialectizando-se, nem por essa razão a comunidade linguística se empobrece, antes se enobrece. (Manuel Ferreira)
O escritor, como todo verdadeiro artista, não usa uma língua, e sim uma linguagem. (Assis Brasil)
Consideremos os contos:
Quando a gente de nosso gente foi-se embora. O narrador é o régulo Makombe que nos conta da luta pela libertação – Nós precisa sofrer cada um sua liberdade… – que iniciada por seu povo, não foi acompanhada pelos povos vizinhos, de modo que Régulo Makombe já sabe: não vai mais guentar lutar, porque tempo de cacimba vai cabar água no rio e os outro régulo, terra de Sena, e Chemba, e Manica, e nem até Gorongosa, não que quer judar. A história é desta tomada de decisão: a fuga para longe, onde outros povos estão em guerra contra o domínio português, cujos os soldado branco bedece com ordem má de comandante dele, ficar cortar os cabeça de homem quando encontra pra matar, está enfiar cabeça nos pau e está ponhar ali na temba. E está falar é exemplo. Exemplo o quê?
Os princípio de cada coisa. Trata-se aqui de um episódio de morte por vingança envolvendo dois grandes amigos, Binha Sacuzi e Juô Assene. O primeiro pedira três escudos emprestados. O segundo cobra da mãe nada menos do que trinta escudos, quando Binha não estava em casa. Quando se encontram, Binha bate em Juô e pega o dinheiro de volta, pagando-lhe o que de fato devia. No entretanto, Juô faz queixa na polícia alegando roubo de oitenta escudos, mas a polícia prende a todos – os dois contendores e as testemunhas – pondo-os em trabalho forçado por dias. Saídos da prisão, Binha fica de tocaia e mata Juô.
E as raiva passa por cima, fica engrossar um silêncio remete a dois temas: a miscigenação e a exploração do branco. O ambiente é de plantação de algodão: os trabalhadores pedem aumento do preço que a companhia pagava. Todos se reúnem no pátio da administração, pois o Governador e a polícia haviam chegado e todos esperavam a notícia do novo preço que a companhia pagaria pelo algodão. Esperança frustrada, pois o governador diz ser impossível o aumento… os trabalhadores resmungam, reclamam e a polícia abre fogo: morria, que morria gente, gente dos muene que chega até no mar e nos matotodo de mais distância, ninguém sabe porque está matar. Este é pano de fundo para a voz do velho sô Zico insistir branco, com preto, é as distância. Acontece que a filha de sô Zico é mulher de um branco, sô Pulino, com quem tinha um filho. Sô Zico insistia: eles teriam que ir embora, porque chegaria o dia em que a dominação colonial acabaria. E também seu neto deveria ir embora, pois filho de branco. Reconhece que Sô Pulino trata bem da filha, mas não arreda pé de suas convicções. De quando, é as funda estrada da vida – e as curva das ideia maluca caminhando nas boca da gente? Sem querer. Ou as micaia, que está picar. Sô Pulino falou, exclamado: – “Pai Zico que és racista!…” – demiração de sô Pulino, cadavez mais as raiva dele, causa de ser branco e cocuana[velho] sô Zico está falar sua palavra também sem falar sô Pulino é muito bom. Ou o quê, então? Neste conto aparecem dois ditados com que sô Zico aponta para a revolta que virá: “Passarinho que come carne não tem pago, não.” e “Sono da jacaré faz parte com chão, mas quando que zanga… uá! Estes branco não tem medo?”
Chove chuva, choverando – Dia que Titinha morreu. Trata-se aqui de um parto, que se junta a outros pequenos fatos que engrossam o silêncio que retumbará nas lutas pela libertação. Como Titinha não conseguia dar à luz porque o bebê não estava em posição correta, pedem a sô Pire para levar à administração em busca de recurso. Narra-se a viagem pela floresta, nos arremedos de estradas e da chuva que cai pesada. No meio do caminho, chegados a cantina de Mamudo: Causa de uma mulher preto?”. Convida sô Pire para tomar umas cervejas até que a chuva passe, antes de seguir viagem. Neste ínterim, Titinha morre. Uns dias, tempos, a gente pode que ficar com branco por ajuda em tudo, junto falar tu com tu, outro branco, porque aquele sô Pire, não. Branco malandro, aquele! Está falar pra capitão Dodôlo:
– Seu sacana de merda! … Então eu está vir até aqui com chuva, fazer trabalho de graça, por causa de mulher que está morto? Mulher que está morto? Porque não enterrou logo?… Não é nada…
E a mais diferente noite. E o dia que preto Xaviè morreu. Um mineiro morre, e um companheiro – Xaviè – fica com o defunto enquanto sô Martin vai ao Posto para registrar com o chefe a morte de Bêjami. Anoitece e Xaviè vai ganhando medo, um medão do escuro, da floresta, dos bichos até amalucar… Enquanto isso, sô Martin chega ao Posto e o chefe decide antes jantar para depois ir ver o morto e fazer autópsia. Exige que sô Martin vá junto para testemunhar a “autócia”. Quando sô Martin chega, Xaviè, enlouquecido pelo medo, briga com ele e o joga no fogo, depois foge para a floresta. Quando chegam o chefe, enfermeiros e polícias, Xaivè é morto. Já viu? … Castigo grande, matar assim mesmo, causa de nada. Mas como vai fazer? A gente se envelhece sem si mesmo, com coisa assim, o vivido mau da vida. Enormes da vida, os espropósito, fica pricisão de achar o poder demudar tudo, os mando das pessoa. Não é? Nosso sabe tem branco bom. Mas praquê outros branco manda matar os preto assim, mesma coisa é cabrito? Ou é inhoca? Ou é um bicho qualquer? Não vê que a gente só levanta nas lembrança o que rebrilha de mau e as migalha fica a crescer, a crescer? … depois, olha, eu não sei como que vai ser, não, pensar gela a gente por dentro e nosso fica com medo. Medo grande, memo…
Tudo era aquela parte de terra de fronteria. Trata-se aqui de um fiscal branco designado para trabalhar na fronteira. Alfândega. Era quando que não custava marrar as pessoa pra ir trabalhar no contrato, marrar pra ir voluntário – maneira que muzungo falava – e gente ia assim mesmo, com porrada, os dia demorado, só sofrer. Desterrado em longínquas terras, o fiscal enlouquece e quando os brancos vão embora, chegam à aldeia para trazer o fiscal que é escondido pelas crianças. Ninguém sabe onde ele está. Como vingança, os colonizadores em debandada embarcam no caminhão os pretos amarados. Alguns caem e morrem na estrada. Por razão que eu contar agora, só nas palavra triste que cresce no coração, o resto que era o que aconteceu acontecido, lá – as morte. Cadavez a culpa de sô Minstrador e de ser os branco de um lado e os preto de outro lado, na vida o que se dá de ser mania de os branco só querer ser os manda-chuva, lgo os dono-patrão de tudo, só o que se dá de ser o dinheiro, menos as pessoa.
Lukutúkuè. Um régulo, em aldeia que tem cantina, igreja, polícia, quartel, mulher puta, de soldado… Envelhecido, toma seu vinho português na cantina. Seu filho Zeca oi para a guerra. Lukutúkuè, sua muita tristeza!… Filho Zeca foi embora, ficou escondido na mato – agora a mesma coisa ele é bicho, agora mesma coisa ele é mabandido, filho Zeca, agora Likutúkuè que nunca há-de ver outro vez seu filho, nunca que há-de de ouvri voz dele falar outro vez sua gingação, parece é mesma coi8sa seu filho Zeca morreu… Os pide chegam: querem saber onde está Zeca. Levaram o régulo e sua filha Matina até sua casa: lá estavam os mortos, muitos. Ele precisava reconhecer o filho Zeca. Enxerga-o entre os mortos mas nada diz. Sua filha, no entanto, abraça-se ao irmão, chorando. Lukutúkuè perde o medo: cota o pênis de seu filho e joga-o aos pide toma pra vocês, toma… vocês precisa… Lukutúkuè morre, mas na mata os passarinhos quando cantam estão dizendo lukutukuè, lukutukuè…
História qual como muzungo Emilo Firipe é que sabe – e os preto. Uma história de tortura praticada por pides. Inicia-se a narrativa com a expropriação feita pelos pides das rendas agrícolas da família de Coringe. Depois, querem saber onde o irmão escondeu armas. Como ninguém sabe, prendem um dos irmãos e levam para a cadeia o irmão Tomás. E eis a cena de tortura:
E agora aquele sô Manuer estava ali falar pra ele:
– Você gostas de fumar, não é?
E ele, coisa que falou:
– Não senhor, eu não fuma.
– Não fumas? Mas agora vias fumar. – E foi que Tomás não conseguia mesmo pra entender, proque foi que o tal branco sô Manuer tirou as carça de outro irmão, pegou embôlo [pênis], sabe?, pichota dele, e cortaram-lhe com as navalha. Ele já nem que chorava. Mesmo – só que coração da gente assim fica é xidôco, de tyoda a gente com malvadia fica mais é sozinho com medo. O-quê que mano de Tomás fez com quem, tão mal? Vingança de branco. O-quê que os branco vai querer com vingança dele só de graça?
[…]
– Olha, agora é que tu vais fumar.
– Então isso de meu irmão é que é o cigarro?
– Sim senhor, isso ´=e que é cigarro.
Então puseram no arcoor esnaturado e puseram-lhe depois na boca, cender com fosco.
Maniato Paulino e sô Basilo, os dois que tem Nazareia no meio. Este último conto da primeira parte mostra os abusos sexuais praticados por brancos. Maniato Paulino é noivo comprometido de Nazareia, mas sô Basilo cobiça a beleza da moça, ainda virgem. Obriga-a a uma relação sexual e depois insiste para que Basilo também a usufrua. Querer dos branco é maldar dos preto, seu atormento, esprezar, aí tem sua alegria!… Basilo se recusa ao estupro e sô Basilo manda que Nazareia urine na cabeça dele. Basilo chama outros para baterem em Maniato Paulino, mas todos fogem para não bater em companheiro. Assim foi o querer do branco Basilo, até que um guerrilheiro, que eles chamavam de turras, chegou e castigou feio porque preto estava ficar com força: cortou ele com a faca em pedacinhos.
A segunda parte do livro é composta por quatro contos, todos narrados por “retornados”, lembrando tempos de África. Cão cantador é a história de um cão tão inteligente que aprendeu a “cantar”, isto é, imitar os leões. À noite, o cão cantava e chamava outros leões e leoas: o dono ficava na espreita e os matava, vendendo coros de leão com que enriqueceu. Depois que começou a guerrilha, quando já brancos não moravam por perto, os guerrilheiros atacaram-no e durante três dias trocaram tiros. Até que ele mandou o cachorro imitar leão. Os turras fugiram, porque todos têm medo de leão. Com isso ele próprio se salvou, viajando no dia seguinte para a cidade …
Em A caçada, como contam todos os caçadores, canta este sua valentia na caça de búfalos. Em uma destas caçadas, um búfalo o atacou, jogou-o ao alto e ficou esperado para nova cornada, mas ele conseguiu segurar-se nos galhos de uma árvore. Assim ficam por dias seguidos: nem o búfalo se afasta, nem o caçador consegue descer. Até que ele percebe cheiros e corvos a voar nos altos. Acontecera que o búfalo morrera na espera… Esta narrativa é simplesmente espetacular: só lendo para usufruir. Um resumo, como todo resumo, estraga o trabalho estético.
Bicho desabusado tem o seu tanto de literatura fantástica: o narrador viaja atravessando a floresta para encontrar na aldeia do outro lado uma rapariga – eu andava encanizanado nuns tratos de cama com uma mulatinha com quem havia que ter muito aprumo. Depois de atravessar os matos, chega a um descampado e vê o por do sol e se encanta com a beleza natural de África. Deita-se encostado numa árvore e quando o sol se põe começa a sentir um friozinho… Mas como o frio da perna direita estava aumentando muito, olha e percebe que sua perna está sendo comida por uma “gibóia” … tacou da faca e a cortou inteira.
As almas é a história de um grande pecuarista em África, rico com muitas terras e muito gado. Vendia para abate cabeças e mais cabeças. Em certo dia, de repente, todo seu gado some… Quem provocou isso, para o narrador, foram as almas das vacas mortas pela ganância de ter mais dinheiro no banco! … se fiquei sem nada foi por maldades minhas de querer só guardar dinheiro, porque as minhas vacas se vingaram, as almas das que mandei matar vieram buscar as outras pra que não lhes sucedesse o mesmo… Agora, retornado, o governo quer lhe dar umas 100 vacas para que volte a criar, mas ele depois desta experiência, quer distância de vacas cujas almas estão sempre o amedrontando.
Referência: Freitas, Ascênio de. E as raiva passa por cima, fica engrossar um silêncio. Lisboa : África Editora, 1979.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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