Nunca consegui entusiasmar algum aluno meu para fazer um trabalho sobre o tratamento que dá a Literatura à escola. Os trabalhos conhecidos são sobre o tratamento que dá a escola no ensino de Literatura, mas não o inverso. Claro, há resenhas e críticas, no Brasil particularmente ao clássico O Ateneu, de Raul Pompeia. Na falta, aposentado, estou tentando ler alguns livros de literatura que tematizam a escola. Tentei uma vez encontrar os livros sobre a Educação de Príncipes. Encontrei somente o de Erasmo. Andei procurando o manual de La Salle, mas não consegui. Enfim, estou aqui com apenas três romances que quero estudar.
Por ora, um registro da leitura do livro de Edmondo De Amicis, Coração (Cuore, em italiano). Trata-se de um livro escrito para rapazes, publicado em 1886. E logo tornou-se livro de leitura quase obrigatória nas escolas italianas, uma Itália recém unificada (a reunificação resulta do movimento conhecido como Risorgimento, de 1815 a 1870).
O livro tem a estrutura de um diário, supostamente escrito por um estudante – um rapaz que entrava na “classe adiantada”, no segundo piso de sua escola. O diário abrange um ano letivo, iniciando em outubro e se encerrando em julho. Nele Henrique, o narrador, vai escrevendo sobre o que acontece na escola e em seus arredores no fim das aulas. Em alguns dias, o que se narra é a visita que faz a colega ou que colegas lhe fazem em casa. O texto está entremeado de dois outros gêneros: cartas do pai ou da mãe (as do pai são em maior número) e de um conto mensal, que era distribuído pelo professor a um aluno para copiar e lido na sala de aula. Ou seja, havia a leitura de um conto por mês! E sobre ele diz Henrique
… mas eu teria vontade de ir à escola, se o mestre sempre contasse uma história como a que contou hoje. Todos os meses, disse ele, contará uma, e será sempre a história de uma bela ação praticada por um rapazinho.
Trata-se, sempre, de contos edificantes, ressaltando heroísmos de rapazes que orgulham a Itália e que deveriam, por suas ações, se tornarem modelos para os estudantes. As cartas dos pais também incentivam o comportamento edificante, mas ao contrário dos contos, não se referem diretamente à Itália, ao patriotismo (ainda que este apareça em algumas delas).
Esta escola do Séc. XIX (que alguns filósofos da educação, cansados de seu próprio pós-modernismo, estão querendo recuperar), no contexto italiano da reunificação, é uma escola que ensina Composição, conteúdos de aritmética, gramática, geografia. E exige atividades em desenho e ginástica. Verdadeiramente, a escola ideal para a formação do “cidadão” bem comportado e informado pelo que se decide ser o que deve ser informado na escola: o conhecimento dito universal (este mesmo que ex-pós-modernos não percebem que já não fazem sentido na ciência contemporânea).
É da época. Transcrevo uma passagem de estudo árduo de um aluno:
Passando por uma carroça parada em frente de uma loja, senti chamarem por meu nome; volto-me, era Coretti, o meu companheiro de escola, com seu paletó cor de chocolate e o seu boné de coro de gato; estava todo suado e alegre, com um grande feixe de lenha às costas. Um homem de pé sobre a carroça passava-lhe uma braçada de lenha, que ele por sua vez tomava e levava para o armazém do seu pai, onde com pressa e trabalho a ia empilhando.
– Que fazes, Coretti? – perguntei.
– Não estás vendo? – respondeu estendendo os braços para receber o feixe, estou estudando a lição.
Eu ri-me, porém ele falava sério, e tomando a braçada de lenha ia correndo a dizer: Chamam-se acidentes do verbo … as suas variações… segundo o número e a pessoa… E depois atirando mais lenha, e arrumando-a: – segundo o tempo a que se refere a ação. E tornava de novo a levar outra braçada: – Segundo o modo como a ação é anunciada.
Era a nossa lição de gramática para o dia seguinte.
Esta passagem não só explicita o que se ensina e se aprende na escola, mas mostra que se trata de uma escola “universal” frequentada tanto por um pequeno-burguês como Henrique, por um filho de aristocrata, mas também por filhos de pequenos comerciantes, filhos de operários, filhos de miseráveis. Todos na mesma classe. Todos sob a batuta de um mesmo mestre. E todos aprendendo ao mesmo tempo a mesma coisa.
A maior parte do livro é dedicada pelo narrador na descrição de seus companheiros e das ações destes companheiros. Raramente um companheiro não é um “modelo” do que deveriam ser todos. Nominadamente, Franti, o mau aluno, o mau filho, o expulso da escola. O sem comportamento, o ladrão, o filho de uma quase mendiga! Aquele, precisamente, que a escola depois de expulsar, há de readmitir e se esforçar para “enquadrar” no mundo bem comportado.
Mas são os ensinamentos morais que se sobressaem deste “diário”, desta família e desta escola de fins do século XIX. Como os companheiros de escola eram de todas as categorias sociais, o mundo que povoa o livro é diverso e os ensinamentos não são visando sua alteração, mas a um comportamento “digno” e “respeitoso” para com o pobre, para com o filho do operário, tão digno quanto aquele que se espera do cidadão para com a pátria recém unificada. Tomemos um exemplo de uma carta do pai a Henrique, quando este foi visitado pelo colega Pedreirinho (que sempre se vestiu com roupas maiores do que ele, porque compartilhava com seu pai as mesmas roupas):
O Pedreirinho veio hoje à caçadora, todo vestido com um fato já usado por seu pai, ainda salpicado de cal e de gesso. […]
“Sabes tu, meu filho, por que não queria que limpasses o sofá? Porque limpá-lo à vista do teu companheiro era quase repreendê-lo por tê-lo manchado. E isos não era bom: primeiro, porque ele não o tinha feito de propósito, e depois porque o tinha feito com a roupa de seu pai, o qual salpicara de cal no trabalho; e o que se faz no trabalho não se pode dizer sujo; será poeria, cal, verniz, tudo que quiseres… mas não é porcaria. O trabalho não emporcalha. Nunca digas de um operário que vem do tabalho: “Está porco”. Dize: “Tem nas roupas os sinais e os indícios de seu trabalho”. Recorda-te bem. Ama o Pedreirinho, porque é teu companheiro, e proque é filho de um operário.”
Em outro lugar, nos conselhos da mãe, para que Henrique possa dizer em sua oração:
– Senhor, eu quero ser bom, eu quero ser nobre, corajoso, sincero; socorrei-me, fazei que todas as noites, quando minha mãe me dá o último beijo, eu possa dizer-lhe: Tu beijas esta noite um filho mais honesto e mais digno do que o que beijaste ontem.
Há ainda um elemento hoje absolutamente “fora de moda”: o respeito pelo professor, chamado de mestre. As promessas de que nunca serão esquecidos. O reconhecimento, a gratidão por tudo que com eles aprenderam. E é preciso amá-lo mesmo quando ele se revela impaciente, como num episódio em que o professor, de mau humor, ralhou com Stardi. A propósito, escreve-lhe o pai:
Respeita e ama a teu mestre, meu filho. Ama-o, porque teu pai o ama e respeita; ama-o porque ele consagra a vida ao bem de tantas crianças que o esquecem; porque te abre e ilumina a inteligência e te educa o coração; ama-o, enfim, porque um dia quando fores homem, e quando nem eu nem ele formos mais deste mundo, a sua imagem se te presentará muitas vezes à memória ao lado da minha; […]Ama-o sempre. E pronuncia sempre com reverência este nome – mestre – que depois do de pai é o mais nobre e o mais doce dos nomes que possa um homem dar a outro homem.
Referência: De Amicis, Edmondo. Coração. Tradução de João Ribeiro, revista em 1925. S. Paulo : Livraria Francisco Alves, 1960. (em todas as citações atualizei a ortografia)
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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