Textos sobre textos: Atado de Ervas

A gaúcha Ana Mariano nos expõe, neste romance, diante do correr da vida numa estância do sul. Na geografia do romance, situada no município de São Borja, precisamente a cidade em que a autora viveu sua infância. Mas não importa se há algo de autobiográfico, porque todo romance é ficção entrelaçada com aportes do mundo real, e partes deste podem ter sido vividos pelo autor ou personagens da vida do autor. Pouco importa, já que a literatura criando um mundo não real nos auxilia a compreender o real.

A trama de Atado de Ervas tem um tema: a terra e a propriedade da terra, onde a vida campeira na criação do gado acontece. Nela, estancieiro e peões trabalham ombro a ombro, confundindo-se no vestir e nos hábitos. Tomam juntos o chimarrão, quando estão no galpão, no inverno em torno do fogo,  ainda que o peão não seja convidado para a sala de visitas, que o próprio dono só frequenta quando recebe alguém.

É deste entrelaçamento que atravessa as classes sociais sem, contudo, diminuir suas distâncias próprias entre o patrão e o empregado do campo que se beneficia esta romance tão complexo quanto é a vida no campo, cuja rotina esconde liames e sentimentos, verdades e boatos, desejos e desesperos.

Vamos à história, construída em muitos capítulos quase sempre bastante curtos e frequentemente separados por uma espécie de fac-símile que exporia as anotações da Estância Santa Rita ou da Estância do Conde na agenda “Memorial Riograndense da Livraria do Globo”. Estas páginas escritas pelo capataz (como se pede deduzir da anotação no dia 25.05.36: Hoje escrevo por conta do seu Arthur que tirou uns dias…) ou à mão feminina de Dona Luzia e depois continuada  provavelmente por Leocádia, até que esta vai viver em Santa Maria, e que continuam a aparecer sem que sua autoria seja explicitada (Ignácio? O novo capataz?) e que seguramente será  assumida pela bisneta Antônia, dão o tom da vida “oficial”, cotidiana, notável e narrável.  O efeito destas anotações dá ao romance, como um todo, um tom documental, um efeito de verdade. Vamos a uma página:

MEMORIAL RIOGRANDENSE DA LIVRARIA DO GLOBO

ESTÂNCIA SANTA RITA

25 DE OUTUBRO DE 1930

Sábado

Soltou-se a tropa de vacas no Fundo. Contou-se 241. Marcados

dois terneiros. Foram soltos no Alto e Capiá. Soltou-se 89 bois na

invernada do Piauhy.

Não foi encontrada a égua tordilha que teria cruzado a cerca para

Água Bonita. Seu Américo ficou de procurar.

Chegaram duas carretas trazendo o sal comprado do Rebés. Não recebi

por não ser Sal Mossoró conforme o contrato.

Tratado com Alice as colchas e cortinas novas 40$000 rs dos quais

Adiantou 20$000rs

REVOLUÇÃO

Foi deposto no Rio de Janeiro o presidente da República.

Triunphou, pois, o Rio Grande. Espero que também o Brasil!

 

Carneado um capão para consumo da Fazenda.

O tempo do romance vai de 1928 a 1963. Inicia-se com a anotação de 1963, data em que manda o terceiro herdeiro, Dr. Ignácio. São reflexões de sua mulher, a carioca Dona Leonor, trazida do Rio diretamente para a estância no interior de São Borja, sem água encanada e sem energia elétrica. Logo, o romance toma uma direção cronológica, começando com “os de antes”, já com a viúva Dona Luzia, mas lembrando pelo retrato da ancestral Dona Manoela, os ainda mais anteriores, como se a Fazenda se perdesse nos antigamente e jamais não tivesse existido, como se as cercas postas um dia sempre estivessem lá separando propriedades… Este o efeito de sentido no romance e na vida: a propriedade vem desde sempre com a família dos herdeiros.

Da primeira geração de personagens do romance, é a figura de D. Luzia que dominará o período, até sua morte em 22.11.1929, como anotação no Memorial… Teve uma filha, Clara, que se tornou urbana e se casou com o Dr. José, médico, que passou a gerir a fazenda em conjunto com a sogra e depois sozinho. Em sua gestão, conseguiu ampliar os campos recomprando terras que haviam sido vendidas pelos tios de Clara. Clara morre cedo, deixando três filhos: Matheus, Ignácio e Leocádia. Esta, aparentemente, com algum problema de saúde mental, depois da morte da mãe, é “internada” na estância aos cuidados da avó e mais tarde irá estudar interna em colégio de freiras.

Matheus teve vida curta: o preferido do pai, pretendia seguir-lhe a carreira fazendo medicina, mas moço solteiro e rico, age como tal: frívolo, festeiro, inventa cursos de especialização para suspender sua matrícula no curso de medicina, vai para o Rio, apaixona-se por carros de corrida e com um destes carros acidenta-se e morre. Ignácio faz agronomia e será efetivamente o herdeiro da estância, a que traz melhorias: a banheira, a vacina, melhoria do plantel com compras de matrizes do Uruguai e do Texas, onde conseguiu fazer uma especialização apesar da oposição do pai.

O médico e estancieiro José, para além de administrar de longe da fazenda, tem nela sua amante: Guilhermina, personagem que perpassará todas as gerações do romance. Curandeira, benzedeira, conhecedora das ervas, casada mas amante do Dr. José com quem se encontra numa casa perto do riacho em que lava roupa para a sede da fazenda, a “casa grande” do Rio Grande do Sul. Com o Dr. José teve um filho: Joaquim, que lhe herdou o temperamento e agressividade e que se apaixonará por mulher casada e será assassinado.

Guilhermina não aceita o golpe e nutre sua vingança, um prato que se come frio… Quando consultada pela mulher do suposto mandante, o major Celestino, prepara-lhe um “atado de ervas” que lhe apressa com vagar a morte. Vem daí o título do romance Atado de Ervas que terá sua reprise, agora não por vingança, mas por generosidade, para apressar a morte sem dor de amante que portava doença incurável (câncer? tumor?). Há, pois, dois atados, um ditado pelo ódio e vingança, outro ditado pelo amor e pela generosidade. Esta dicotomia dos atados repete as dicotomias que atravessam o romance: o patrão/os peões; a sede/o galpão; o terreiro/o interior da casa; os proprietários/os sem terra, que trabalham a terra mais não chegam a ser seus donos; os estancieiros que se atualizam/os que permanecem com os métodos tradicionais e acabam tendo que vender os campos.

O interessante neste jogo das dicotomias são os entrelaçamentos, os limites às vezes fluidos, às vezes extremamente marcados. Na lida do campo, por exemplo, patrão e peões trabalham ombro a ombro; a patroa não só determina as coisas de casa, participa da vida da casa em todos os seus pormenores e convive com as mulheres que lhe servem; o amor de casamento se dá entre membros da mesma classe, mas o amor real é vivido atravessando as fronteiras de classe (com o Dr. José e Guilhermina, mas não entre Ignácio e Beatriz, a filha do fazendeiro falido).

Ignácio e D. Leonor têm dois filhos: José Menezes Neto (que herda o nome do avô e a quem o pai destinaria a condução da estância, chegado seu momento) e Antônia, a filha que o pai queria ver advogada, a mãe a queria no curso de Letras e ela própria escolhe fazer agronomia, porque o futuro que deseja é assumir a condução da fazenda, porque por temperamento não conseguiria viver na cidade, como seu irmão, que ao final do romance ainda cursa Medicina (seguindo o avô!).

O toque fora de mão da concentração da propriedade das terras foi dado por Dona Luzia, que deixou testamento: deu terras a empregados; determinou a construção de uma vila em suas terras, vendendo terrenos a preços baixos. Tornou peões proprietários. Respondeu com antecedência aos tempos: os rumores “comunistas” já haviam chegado aos pampas nos anos  1930… No fundo, Dona Luzia se antecipava, entregando anéis para não perder dedos. E os outros estancieiros, tomando-a por maluca, diziam que muito rapidamente as terras voltariam aos “verdadeiros” donos. Realmente, o Dr. José recomprou terras, mas no romance tudo indica que fez isso comprando de estancieiros que iam mal de negócios, e comprando para recompor os horizontes da velha e antiga fazenda… Um gesto bastante comum entre herdeiros de estâncias, que sempre querem fazer voltar os limites àqueles que existiram antes das repartições de heranças…

Chegados os anos 1960, o movimento da legalidade, os comícios de Brizola, o governo de Jango, estancieiro e lindeiro da Santa Rita, a ebulição social está na boca de todos. Filhos de fazendeiros falidos ou filhos de peões já não se conformam com a vida ritmada do campo: tornam-se urbanos, abraçam novas ideias. As reformas de base, apregoadas pelo governo Jango, não são bem vindas entre fazendeiros, mas estes também reconhecem que o mundo muda (o modelo soviético está no horizonte, e com ele o medo de uma revolução socialista).  Esta nova dicotomia política aparecerá e será explorada no romance, nas nuances que acabou tendo na política brasileira. Particularmente uma personagem marcará a existência da esquerda: Tiago, um dos filhos do estancieiro Balbino que, produzindo sem se modernizar, irá à falência.

Os filhos do Dr. Ignácio e D. Leonor estão na cidade, estudando. A narrativa se encerra com a viagem de trem para as férias na fazenda. Enquanto Neto sai da cabine para o vagão-restaurante, Antônia reflete sobre seu futuro: como dizer aos pais que fará agronomia? E seus desejos: cuidar da estância, comprar mais terras (sempre mais) e sem qualquer vergonha de se fazer mais rica.

No entanto, a última conversa no trem, em que se encontram Tiago e seu amigo Carlos (gente do Brizola e da esquerda) com Neto, não deixa dúvidas sobre o caminho que “deveria” ser seguido. Enquanto os três amigos discutem numa mesa do vagão-restaurante, tomando cerveja, um homem sentado em outra mesa e não reconhecido por Neto (nem pelo este leitor), ouvindo a conversa e as conciliações que Neto propunha, reflete (e este é o final do último parágrafo do livro):

Não é que o guri saiu parecido com a bisavó? Parece que estou ouvindo a dona Luzia falar. Essa piazada pensa que inventa a vida, mas a vida é velha, fica repetindo as mesmas histórias até fechar o livro…

Fecha-se, pois, o livro com esta mensagem de que a história é repetição do passado… e, por isso mesmo, elegem-se a imutabilidade e a permanência das mesmas dicotomias que transitam pela narrativa: patrões e peões; latifundiários e sem terra. E sempre uns trabalhando com outros, ombro a ombro, mas sempre distanciados pela desigualdade que os configura: a propriedade da terra, o apego à terra, a grande personagem deste excelente romance. 

 

Referência. Mariano, Ana. Atado de ervas. Porto Alegre : L&PM, 2ª. ed., 2011.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.