Textos sobre textos: As Benevolentes

Acabei! Um tijolaço de 896 páginas. No final do exemplar, escrevi: Excelente! Excelente!. Para se aventurar na leitura, há que preparar um tempo, disponibilidade e persistência. Quem chega ao fim descobre: este excelente romance de Jonathan Littell merece todo o esforço. E a leitura começará a fluir quando o leitor desistir de compulsar o glossário para compreender todas as siglas do estado nazista, ou desistir de querer compreender as equivalências dos títulos militares, porque do contrário se tornará especialista em “ober” “sturm”, obersturm”, “obersturmbann” ou “standarten”… todos seguidos de “führer”. Se o leitor se contentar em saber que todos são oficiais nazistas, e que a SS e a SD estavam sob as ordens de Himmler e eram responsáveis pelo extermínio de judeus, comunistas, ciganos, homossexuais, e se for passando por cima dos significados especializados da Staatpolizei, da Gestapo, do RSHA ou HSSPF, mas compreender que um KL é um campo de concentração, seguramente o leitor se deixará envolver pela prosa estupenda de Jonathan Littell.

O autor pesquisou o cotidiano alemão da Segunda Guerra durante cinco anos e construiu uma narrativa em forma de memórias do personagem Maximilian Aue, doutor em Direito Internacional, engajado no partido nacional socialista, um bem intencionado alemão que apostou na ideologia nazista e que se incorporou a SS, embora fosse ele mesmo homossexual.

Poupado na caça aos nazistas promovidas no pós-guerra, tornou-se um gerente de uma pequena indústria no interior da França. E como tal foi leitor dos livros que se produziram sobre a Segunda Guerra, sobre o nazismo, das memórias de oficiais, dos autos dos processos (trabalho que de fato teve o autor do livro). E resolve contar sua história acrescentando pontos, chamando para aspectos não elucidados pelos demais, e ao mesmo tempo contando toda sua trajetória, seus sucessos e fracassos, suas certezas e suas poucas dúvidas. Não deixava de tê-las. E mais do que dúvidas, repugnâncias quando obrigado a comandar e a fuzilar pessoalmente famílias judias, incluindo mulheres e crianças.

Há inúmeros resumos da obra à disposição na internet, de modo que é desnecessário refazer o trajeto todo da narrativa. O autor teve a perspicácia de construir sua personagem com problemas e desvios desde o ventre materno: gêmeo de uma irmã (Uma), é por ela apaixonado. Pegos de surpresa por padrasto e mãe no sótão da casa, já adolescentes, quando estavam se dedicando a jogos amorosos, foram separados e enviados para colégios distantes um do outro. Pela vida toda, o enfim Obersturmbannf!uhrer, condecorado duas vezes, nunca superou o trauma da paixão… e adulto, mesmo sendo um membro da SS, que estava fuzilando homossexuais, não deixou de ter seus prazeres homoafetivos. Neste sentido, é uma crítica contundente à ideologia nazi e a seus preconceitos, contar a história da guerra pela voz de um gay!

Outro aspecto da narrativa que chama atenção foi a estratégia de deslocar a personagem pelos diferentes fronts da guerra. Vemo-lo na Ucrânia, realizando a tarefa de retaguarda que cabia à SS: matar judeus e possíveis inimigos! Realizar as “actions”, organizar, fuzilar, aniquilar uma raça! O Dr. Aue, ainda que oficial, em geral fazia o trabalho burocrático e de controle, produzindo relatórios e mais relatórios.

Da Ucrânia ele é transferido para a Crimeia, para o front mais ao Leste, onde os chefes militares organizavam (e sonhavam) atingir a Mongólia… a pretensão alemã era de domínio territorial do mundo, do vasto mundo euroasiático. Desta frente da guerra, por desentendimento e como castigo, é enviado para Stalingrado, quando o exército alemão já está cercado. Acompanha aí a batalha rua a rua, em que jamais a Alemanha saiu vitoriosa. É ferido: um tiro atravessa sua cabeça! Um amigo consegue ludibriar a polícia que fazia a seleção de feridos “recuperáveis”, roubando uma placa que identificava outro ferido, e por isso ele é transportado e acaba se recuperando depois de longo tratamento. Esta licença médica permite ao leitor acompanhar um cotidiano desconhecido: aquele dos que não estão no front, que vivem a vida no estado nazista. Foi durante esta licença que o então Obersturmführer recebeu sua Cruz de Ferro, condecorado pelo próprio Reichführer Himmler. Na folga, resolve visitar a mãe e padrasto de quem se afastara há muito tempo. Lá, tudo dá a entender, deve ter tido um acesso de loucura e ter assassinado a ambos (é o que os policiais Clemens e Weser tentam descobrir e que não o deixam em paz até o final da narrativa).

Recuperado, ele passa a servir em Berlim, junto aos altos comandos nazistas. É encarregado por longo tempo de tratar da questão do trabalho dos judeus, uma força de produção que a Alemanha não podia dispensar em seu esforço de guerra. Trava aí seu conhecimento mais profundo com Eichmann, cujo obtuso preconceito racial impede o trabalho que deveria desenvolver, pois ele significava “salvar” do massacre imediato inúmeros judeus… É particularmente interessante o episódio da evacuação dos judeus da Hungria!

Nos bombardeios de Berlim, acaba adoecendo e recebe nova licença média: vai para a casa de sua irmã Una e de seu marido, na Pomerânia. Aqui o leitor encontrará páginas ontológicas de devaneio sexual, de loucura, de solidão e de desespero.

A guerra já estava chegando ao fim: os russos estavam chegando. E chegaram. Aue e o amigo Thomas que o recupera no velho casarão fogem, atravessam as linhas russas e conseguem retornar a Berlim quando a guerra já estava chegando ao fim. A narrativa dos últimos dias da Guerra, dos desencontros, dos desacertos, das infidelidades e das fidelidades constituem um ponto alto da narrativa.

Acompanhar a Segunda Guerra pela narrativa de um oficial SS alemão, que não esconde os crimes cometidos, que reflete sobre o cotidiano de um povo que se deixou convencer e se converteu a uma ideologia sabiamente orquestrada pelo marketing político de um Goebbels e pelos discursos inflamados de um Hitler, é uma experiência extremamente chocante e, no caso deste romance, atraente porque há momentos em que você não consegue fechar o livro…

Há inúmeras passagens que mereceriam transcrição. Vou selecionar apenas duas:

  1. “Muito se discorreu, depois da guerra, para tentar explicar o que acontecera, a desumanidade. Mas a desumanidade, me desculpem, não existe. Existe apenas o humano e mais o humano: e esse Döll é um bom exemplo disso. Quem é Döll senão um bom pai de família que queria alimentar os filhos e que obedecia ao seu governo, ainda que em seu foro íntimo não concordasse plenamente com aquilo [assassinato de famílias judias]? Se houvesse nascido na França ou nos Estados Unidos, teria sido considerado um pilar de sua comunidade e um patriota; mas nasceu na Alemanha, então é um criminoso. A necessidade, os gregos já sabiam disso, é uma deusa não apenas cega, como cruel.” (p. 543)

Para homens cuja ideologia define que o cumprimento do dever é a mais elevada expressão da liberdade humana, ter que matar, cumprir o dever, é um gesto de “liberdade”.  Afinal “Que homem sozinho, por vontade própria, pode bater o martelo e dizer: Isso é bom, aquilo é mau?”

  1. “E você, querido, que faz?”, me lançou uma das bichonas agitando em minha direção uma piteira de um comprimento impressionante. “É um gestapista”, ironizou Cousteau. A bicha pousou os dedos envolvidos em renda nos lábios e deixou escapar um longo “Ohhhh…”. Mas Cousteau já começara uma longa anedota sobre os pupilos de Doriot, que iam chpar o pau dos soldados alemães nas xícaras  do Palais Roya; os tiras parisienses que efetuavam batidas regulares naqueles mictórios, ou no sdo subterrâneo dos Champs-Élysées, às vezes tinham ali péssimas supresas; mas, se a Prefeitura reclamava, o Majestic parecia estar se lixando completamente. Aquelas réplicas ambíguas me causavam mal-estar: que jogo estavam jogando aqueles dois? Outros companheiros, eu sabia, contavam menos bravatas e praticavam mais. Mas nenhum deles tinha o menor escrúpulo em publicar denúncias anônimas mas colunas de Je Suis Partout; e se alguém não tivesse o infortúnio de ser judeu, então fazia-se dele um homossexual; mais de uma carreira, de uma vida, viu-se assim arruinada.” (p.470-471)

Associando estas duas passagens, a primeira remetendo à ideologização e bestificação do povo pela propaganda (ou pelos noticiários tendenciosos), e a segunda remetendo a estas “delações premiadas” anônimas (ou “em segredo de justiça”) que destroem reputações e vidas, havendo “tico e teco”, poderá perceber como funciona o sistema nazi-fascista. Coloque à frente nas investigações sujeitos imbuídos do “cumprimento do dever”, entre os alemães ditado por Hitler, entre nós pela arrogância de donos convictos da verdade, e teremos o caldo que produziu o Holocausto e que continua a produzir destruições de vidas graças a convicções forjadas ideologicamente. O apoio popular a atitudes nazi-fascistas contemporâneas é explicável, como se pode explicar o povo alemão da Segunda Guerra.

A crítica vem saudando este As Benevolentes como o novo Guerra e Paz (Tolstoi). De fato, o romance merece a comparação e é uma comparação extremamente elogiosa.

Ficou para mim o intrigante título: por que As Benevolentes? Inicialmente imaginei que prostitutas haviam salvado a personagem nos últimos dias da guerra… mas cheguei ao final do romance e isso não apareceu. Então fui procurar alguma explicação. Encontrei numa resenha:

Uma outra pergunta recorrente que muitas vezes passam despercebidas por todos aqueles que leram o livro é: por que o livro se chama  “As Benevolentes”?

A explicação encontra-se nas Erínias gregas (Fúrias para os romanos) que eram personificações da vingança que puniam os mortais por crimes de sangue. As Erínias dividiam-se em Tisífone (castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Interminável). Viviam nas profundezas do tártaro, onde torturavam as almas pecadoras julgadas por Hades e Perséfone. Pavorosas, possuíam asas de morcego e cabelos de serpente. As Erínias, também eram chamadas de Eumênides, que em grego significava: “As Benevolentes” é um eufemismo usado para evitar pronunciar o seu verdadeiro nome. (disponível em http://www.bonslivrosparaler.com.br/livros/resenhas/as-benevolentes/2180

Assim, o livro termina invocando do forma eufemística a vingança que viria e que o povo alemão deveria pagar.  Ler As Benevolentes é um aprendizado da história, da história do cotidiano, onde o cinza e a dúvida aparecem como neblina que também se dissipa quando o sol aparece. Hitler apareceu. Aparecerão outros na história cotidiana de outros povos? Quem enxerga, vê.

   

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.