Textos sobre textos: Antes do Fim e A Resistência

O escritor argentino Ernesto Sabato que se despediu aos 99 anos, em 2011, teve uma história de vida de mudanças, desde a juventude quando abandonou a casa paterna, até o outro abandono mais notável, ao deixar uma carreira de pesquisador em Física (radiações), quando ainda jovem e investigava no Laboratório Curie, em Paris.

Dedicou-se a partir de então (1945) à literatura e a ensaios. Na velhice escreveu ainda três livros, dois dos quais, pelos seus próprios títulos, apareceram como uma espécie de despedida (o terceiro e último foi Espanha nos Diários de Minha Velhice, 2004). Trata-se de Antes do Fim (1998, editado em português pela Cia. das Letras em 2000) e A Resistência (2000, editado pela mesma Cia. das Letras em 2008).

Os dois livros de “despedida” contêm um conjunto de textos. O último deles um conjunto de “cartas”, espécie de mensagem aos jovens. Ambos os livros são orientados por um mesmo sentimento: uma esperança demencial […] que as possibilidades de uma vida mais humana estão ao alcance de nossas mãos.

Dono de um conhecimento enciclopédico invejável, os textos dialogam com inúmeros escritores, filósofos, pensadores. E ao mesmo tempo que desvelam seu autor e seus posicionamentos diante do mundo, fazem o apelo para a continuidade de uma luta infinda buscando, a estas alturas dos acontecimentos, não só uma vida mais digna, mas a salvação do próprio planeta, cujo futuro está comprometido pela exploração capitalista que dele se faz.

Há também uma constante crítica aos meios de comunicação, TV e internet, porque transformaram a vida de todos, tornando-os incomunicáveis. Um excesso de informação concomitante a uma solidão e isolamento que não mais permite o encontro descomprometido, o cafezinho no bar, a caminhada num papo distraído e fecundo. Se praças e parques foram um dia a ágora moderna, hoje são espaços vazios pelos quais se cruzam ‘atletas’ no culto do corpo e da saúde…

As reflexões de Sabato são muito densas. Os trechos abaixo mostram não só a alta acuidade crítica, mas também a posição extremamente humanista do escritor:

  1. Talvez devido a minha formação anarquista, fui sempre uma espécie de franco-atirador solitário, pertencendo ao tipo de escritor que entendem, como Camus, que “não se pode ficar do lado de quem faz a história, mas a serviço de quem a padece”. (Antes do Fim, p. 56)
  2. Por mais terrível que seja entendê-lo, a vida se faz em rascunho, e não nos é dado revisar suas páginas. (idem, p. 80)
  3. Sem dúvida, cada geração julga-se predestinada a refazer o mundo. A minha, no entanto, sabe que não poderá fazê-lo. Mas sua tarefa é talvez maior. Consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta em que se mesclam as revoluções fracassadas, as tecnologias enlouquecidas, os deuses mortos e as ideologias gastas; em que poderes medíocres, que podem hoje destruir tudo, não sabem convencer; em que a inteligência se humilha até pôr-se a serviço do ódio e da opressão. (idem, p. 88)
  4. Quando a multiplicidade de culturas relativiza os valores e a “globalização”esmaga com seu poder, impondo uma arrogante uniformidade, o ser humano, em seu desconcerto, perde o senso dos valores e de si mesmo e já não sabe em quem ou em que acreditar. (A Resistência, p. 39)
  5. … ante a vulnerabilidade, ou o fracasso, da razão, da política e da ciência, o ser humano oscila no vazio sem achar onde fincar raízes, nem no céu, nem na terra, enquanto é entupido por uma avalanche de informação que não consegue digerir e que não lhe proporciona alimento algum. (idem, p. 44)
  6. Sinto um aperto no coração ao ver a humanidade nesse vertiginoso trem em que avançamos, ignorantes e temerosos, sem conhecermos a bandeira desta luta, sem tê-la escolhido. […] Alguma coisa pode florescer a tal velocidade? Uma das supostas metas dessa correria é a produtividade, mas quem diz que seus produtos são verdadeiros frutos? (idem, p. 85)
  7. … perdemos o silêncio e também o grito (p. 86). O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria. (p.91)
  8. … é um tempo angustiante e decisivo, como foi a passagem dos dias imperiais de Roma ao feudalismo, ou da Idade Média ao capitalismo. Mas eu ousaria dizer que é mais grave porque absoluto, pois está em jogo a própria vida do planeta.

Os dois volumes estão repletos de esperança e de humanismo. Enquanto o primeiro volume aposta quase que exclusivamente neste humanismo e na humanidade, o segundo está povoado por remessas a uma religiosidade que aponte algo para além da materialidade da vida que se esvai.

Não estou tomado desta esperança demencial do autor. Creio que nos últimos cinco anos apenas se aprofundou precisamente o que ele critica. Com a popularização do aparelho celular, da internet móvel, com o surgimento do whatsapp, com a tecnologia do Wi-Fi, do twitter, o que encontramos, inclusive nos antigos pontos de encontro, são pessoas grudadas em seus aparelhos, voltadas para as redes sociais, trocando mensagens curtas que não ultrapassam duas linhas porque mais do que isso é perda de tempo, sem reflexão alguma. E mesmo pares de namorados sentam-se à mesma mesa e cada um se dedica a seu aparelho… Hoje mesmo vi um casal de namorados, em que ele tentava puxar alguma conversa, enquanto ela somente manuseava seu celular… nem o namoro é permitido! Vai-se para a cama, mas não se namora.

Estes dois livros de despedida de Ernesto Sabato, esta mensagem jogada ao mar, ecoará num futuro? Não sabemos. No meu caso, no entanto, à medida que a leitura avançava, ia ficando cada vez mais sobrecarregado de um pessimismo triste, ao imaginar um escritor de seu porte escrevendo para o futuro, mas o futuro que se vem concretizando, com vários sistemas de comunicação em rede que tornam as pessoas cada vez mais solitárias numa ilusão de estarem plugadas, é precisamente aquele que o escritor criticou nestes livros: da solidão em meio a avalanche de informação, do individualismo e da ausência de qualquer valor que vá além do imediato. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.