Textos sobre textos: A Tarefa

O suíço Friedrich Düerrenmatt constrói nesta novela um enredo mirabolante, de uma aventura trágica, do princípio ao fim, deixando o leitor em suspense acompanhando os passos de F., a fotógrafa cujo objetivo primeiro era compor um retrato global, num conjunto de  fotografias que revelasse o planeta, mas que foi desviada, com sua equipe, para uma tarefa que lhe ‘impõe’ Von Lambert, junto ao túmulo de sua esposa.

Acontece que Von Lambert, desde que recebera a informação de que sua mulher havia sido assassinada, tomara as providências para contratar um helicóptero que conduziu o esquife fechado, balançado, desde as ruínas de Al-Hakim, situadas em M. até o cemitério em que a enterrou. F. e sua equipe filmavam tão surpreendente enterro.

Foi depois dele que psiquiatra Von Lambert conversou com F., contou-lhe a história, entregou-lhe o diário de apontamentos da mulher e confessou ser o responsável por sua morte porque ela vivia deprimida e ele, como psiquiatra, a tratara como uma paciente, fazendo suas anotações. Achava o psiquiatra que a mulher havia descoberto seu caderno e por isso o deixara, vestida com seu casaco de peles vermelho e uma pequena mala. Entregou Von Lambert, à fotógrafa F. as anotações de ambos e encarrego-a de descobrir o que realmente havia acontecido.

F. passa a noite lendo os apontamentos! Enquanto o caderno do psiquiatra fazia anotações abstratas, sobre o Ser e a nulidade do Ser no mundo, Tina Von Lambert descrevia minuciosamente o marido, com o ódio que enxergava minúcias nos gestos, no mastigar, no caminhar, no dormir. Páginas e páginas repetindo este cotidiano de gestos que deixa F. até sem vontade de comer na manhã seguinte…

E ela parte para M. a fim de descobrir a verdade. Desde que desembarca no aeroporto, vão acontecendo coisas mais ou menos inverossímeis: uma equipe do Delegado do Serviço Secreto a espera e a conduz ao hotel. Também sua viagem a Al-Hakim é acompanhada pelas forças de segurança, que se digladiam entre si na política nacional. O Serviço Secreto querendo dar um golpe para assumir o governo, enquanto o Chefe da Polícia vigiava o Delegado e também ele querendo assumir a chefia de governo: ambos golpistas e ambos sabendo muito mais do que revelaram a F. em sua investigação sobre a morte de Tina Von Lambert.

No conjunto das peripécias que vão se desenrolando, F. é ‘sequestrada’, hospedada em um velho hotel no meio do deserto, encontra-se com o fotógrafo Polifemo (na mitologia grega Polifemo é um ciclope – um olho só na testa – filho de Poseidon e a Ninfa Teosa), nome significativo pois como fotógrafo, está sempre vendo pelo olho único da câmera! Polifemo sequestra F., conduz-a a  uma edificação subterrânea no deserto, instalada pelas grandes potências para acompanhar, filmando, todas as experiências com as novas bombas que são detonadas no deserto de M.

Num encontro com F., Polifemo conta sua história de fotógrafo que fornecia suas fotos de batedores de carteiras, depois de arrombadores, depois de assassinos, à polícia. Perseguido por estes, vai para o Exército para fazer a mesma coisa: fotografar. Depois vai para a Força Aérea e na guerra do Vietnã, acaba realizando um bombardeio sobre Hanoi a bordo de um novo avião pilotado por Aquiles, um gigante que mesmo ferido reconduz o avião a sua base, salvando assim Polifemo, mas ele próprio se torna um louco internado num hospital do qual várias vezes fugiu para estuprar mulheres e assassiná-las. Também a este Polifemo sequestrara e hospedará no mesmo edifício subterrâneo em que agora estavam.

Polifemo mostra a F. o filme que fez do assassinato de Tina Von Lambert… e F. compreende que ela será a próxima mulher a ser oferecida em sacrifício a Aquiles e que sua morte será filmada por Polifemo.

De fato, os três seguem pelo deserto até chegarem a um ‘cemitério’ de tanques de todas as nacionalidades que haviam ‘guerreado’ entre si no deserto, como experiência de sua operacionalidade e robustez. Chegados aí… o final da história a gente não conta.

Se o enredo é mirabolante, o tratamento estilístico e filosófico sobre a guerra, sobre a indústria armamentista, sobre o uso do solo de países pobres para experimentos, tudo se torna verossímil.

As referências à mitologia clássica (Aquiles, Polifemo) e as reflexões sobre o gesto de observar – afinal F. fora a M. para observar – faz desta novela um tratado da observação no mundo contemporâneo: F. vai a M. para observar e descobrir a verdade da morte de Tina Von Lambert; a polícia e o serviço secreto a observam; Polifemo a observa e fotografa, a edificação subterrânea foi feita para observar os efeitos das bombas, e depois foi abandonada porque um satélite fazia a observação dispensando um trabalho de tecnologia já superada… Trata-se pois da observação, do observado e observador por seu turno. Neste jogo, obviamente, as identidades das próprias personagens observadoras-observadas vai se modificando de modo que o jogo da observação é também o jogo das máscaras identitárias.

Transcrevo algumas passagens das reflexões sobre a ‘vontade de verdade’ que conduz o observar:

… um problema que já havia tempos o inquietava, a ele, D., que tinha em sua casa, nas montanhas, um telescópio refletor, um trambolho que ele às vezes apontava para um rochedo de onde pessoas o observavam através de binóculos, ao que seus observadores com seus binóculos, tão logo constatavam que ele os observava com o telescópio, retraíam-se apressadamente, apenas confirmando assim a demonstração lógica de que a todo observado corresponde um observador, o qual, sendo alvo da observação daquele a quem observava, torna-se ele próprio um observado, ação recíproca lógica e banal que, no entanto, transportada para a realidade, atuava de modo ameaçador: seus observadores, observados por ele através de seu telescópio, sentiam-se flagrados; sentir-se flagrado provocava vergonha, e a vergonha, frequentemente, agressão…

[…]

… não sendo mais objeto da observação, ele se sentiria indigno de atenção, portanto desprezado, portanto insignificante, portanto desprovido de sentido, e mergulharia, imaginava, em desesperançada depressão […] os seres humanos sofriam por não ser alvo de observação, na ausência da qual sentiam-se igualmente desprovidos de sentido, razão por que observavam, fotografavam e filmavam uns aos outros, por medo da ausência de sentido de suas existências em face de um universo que se dispersava em todas as direções, com seus bilhões de vias lácteas como a nossa, povoadas por zilhões de planetas portadores de vida como o nosso mas irremediavelmente isolados por gigantescas distâncias, um universo incessantemente sacudido por sois a explodir e, depois, decair, ninguém mais havendo nele que pudesse observar e, assim, emprestar sentido ao ser humano senão ele próprio…

… a realidade só sendo objetivamente apreensível se mediada pela câmera, asceticamente, somente ela era capaz de reter o tempo e o espaço no qual a experiência se desenrola, ao passo que, sem a câmera, a experiência se esvai, mal vivida, sendo já passado e, portanto, memória falseada, como toda memória, ficção, razão pela qual lhe era como se não mais fosse homem algum […] com sua câmera, costumava sentir-se como um Deus, e, no entanto, agora observavam o que ele estava observando, e não apenas o que estava o observando, mas observavam também ele próprio, o seu modo de observar, e ele conhecia a precisão das fotos tiradas por satélites, um Deus observado não era mais Deus algum […] a falta de liberdade dos homens consistindo no fato de serem observados …

Qualquer semelhança com o cientista que observa e se julga não observado não é coincidência. Este livro de Friedrich Dürrenmatt, associado a outra novela, esta de Machado de Assis, O Alienista, seria uma bibliografia de alta qualidade para uma discussão epistemológica sobre o observar e catalogar desta criaturas auto deificadas chamadas ‘cientistas’ que, tal ciclopes de olho único, acreditam piamente que sua ‘câmera’ retém o tempo e o espaço e que num mundo que se move numa velocidade vertiginosa é possível “voltar” ao mesmo lugar e tempo para verificar a verdade da sua observação…

Aos que ainda dão aulas e que não se escondem em seus ensinamentos e são capazes de questionar o que fazem e o que ensinam a fazer, este A Tarefa deveria constar como bibliografia obrigatória.

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.