Textos sobre textos. A sombra do vento

O ponto de partida do romance A Sobra do Vento, do barcelonês Carlos Ruiz Zafón (Publicações D. Quixote, 2004 – tradução de Teixeira Aguiar, Leya S.A., 2011) é o mundo dos livros. Trata-se de uma trama entre livros, sebos e bibliotecas.

Seu personagem central, Daniel Sempere, é filho de um alfarrabista. A associação dos donos de sebes mantém um “Cemitério dos Livros Esquecidos” e aos dez anos o pai o leva para conhecer a vasta biblioteca de livros ali deixados para a posteridade. Como herdeiro da tradição, explica-se o pai que deve escolher naquele mundo de livros, um livro com cuja sobrevivência ficará para sempre comprometido. Depois de zanzar pelas galerias e enormes armários do chão ao teto, ele encontra “A Sobra do Vento” de Julián Carax.

Devora o livro e sai à procura de outros romances do mesmo escritor. Um colega de profissão do pai Sempere lhe informa que é muito difícil encontrar obras de Carax porque houve alguém que por muito tempo procurou todos os exemplares e os queimou. Aliás, a personagem que incinera os livros descobre que Daniel tinha um exemplar e o procura para comprar e apagar da face da terra as provas de que houve uma vez um escritor Julián Carax.

Daniel fica curioso e começa a investigar a vida do autor. As peripécias desta investigação constituem a trama em que o tempo vivido por Julián Carax se torna o próprio enredo do romance de Zafón. Vasculhando este passado, ao mesmo tempo em que vive sua juventude, Daniel Sempere vai desvendando toda uma vida trágica de seu autor preferido: suposto filho de um chapeleiro, Julián foi beneficiado por uma bolsa de estudos num colégio de ricos, a pedido de Ricardo Aldaya, cliente da chapelaria. No Colégio São Gabriel, o estudante pobre encontra amigos que continuarão em sua vida por todo o tempo: Jorge Aldaya, Fumero (mais tarde inspetor torturador e assassino do regime fascista de Franco), Miquel Moliner e Fernando Ramos (mais tarde padre e professor da mesma escola).

Daniel vai descobrindo o amor fracassado de Julián e Penélope (irmã de Jorge Aldaya) e desvendando a vida solitária que Carax levou em Paris para onde pretendia fugir com Penélope, depois que a mãe desta os descobrem fazendo amor no quarto da ama confidente e alcoviteira. Escritor e pianista em cabaré, Carax vivia de dois patrocínios: o da dona da casa, Madame Merceau e do seu amigo Miqel que pagava as edições de seus livros sem qualquer sucesso de público.

Enfronhado na história do autor, a personagem começa a viver em sua vida, como num espelho, os mesmos dramas românticos: apaixona-se por Bea, irmã de seu melhor amigo Tomás. Amores furtivos e escondidos, em encontros secretos na antiga e abandonada mansão dos Aldaya! Nos espaços por onde andou apaixonado Julián Carax, anda agora Daniel cm sua “Penélope”.

Obviamente, como ocorrera com o par Julián/Penélope, também o par Daniel/Bea são separados pela intromissão paterna. Como Jorge Aldaya ameaçou matar Julián, Tomás ameaçou Daniel. Num jogo de espelhos: o que investiga a vida do outro, vive em sua vida os mesmos dramas. Este jogo de espelhos permeados por livros e bibliotecas, personagens “fictícios” e personagens “reais” permite ao romancista criar um suspense contínuo.

Enquanto a proibição do amor entre Julián e Penélope tinha uma razão descoberta somente mais tarde: eram irmãos, descoberta tardia, o romance entre Daniel e Bea, apesar das ameaças todas, perdura sofrendo os percalços da investigação em que Daniel é ajudado por um ex-prisioneiro político do fascismo, ex-mendigo e depois empregado da loja do pai Sempere. Fermin Romero de Torres, além de detetive audaz, é o filósofo que ensina com enunciados que obrigam o leitor a parar para pensar:

“A maneira mais eficaz de tornar os pobres inofensivos é ensiná-los a quererem imitar os ricos. É esse o veneno com que o capitalismo cega…” (p.218)

“A televisão, amigo Daniel, é o Anticristo, e digo-lhe que bastarão três ou quatro gerações para que as pessoas não saibam nem dar peidos pro sua conta e o ser humano regresse às cavernas, à barbárie medieval e a estados de imbecilidade que a lesma já ultrapassou lá para o Plistoceno. Este mndonão morrerá de uma bomba atómica, como dizem os jornais, morrerá de riso, de banalidade, fazendo uma piada de tudo, e aliás uma piada sem graça.” (120-121).

Na voz de Bea, um vaticínio sobre livros e leitura:

“… a arte de ler está a morrer lentamente, que é um ritual íntimo, que um livro é um espelho e que só podemos encontrar nele o que já temos dentro, que ao ler aplicamos a mente e a alma, e que estes são bens cada dia mais escassos.” (p.518)

O espaço da ação é a cidade de Barcelona, o que permite ao leitor deslocar-se entre o mundo medieval da praça da Catedral, no bairro Gótico, para a moderna praça da Catalunha, da Plaza Reyal para as Ramblas que separam o mundo gótico do mundo moderno, ou “viajar” para o contemporâneo Tibidabo, sem deixar de lado a Barceloneta ou o Paseo de Colón.

O tempo é o da primeira metade do século XX, entre 1919/1955. O que significa ter presente a guerra civil espanhola e a segunda grande guerra. Mas as guerras não são pano de fundo do romance e aparecem apenas como ecos obrigatórios para o período de vida de Julián Carax e Daniel Sempere.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.