Este romance de Gustave Flaubert representa sua passagem do realismo de sua mais conhecida obra, Madame Bovary, para o romantismo. E aqui ao romance de formação (bildungsroman). Seu personagem, Frederico Moreau, aquele se “se educa sentimentalmente” passará por todos os percalços para chegar ao fim sozinho e apaixonado pela beleza que se esvaiu de uma mulher que conduziu seus passos ao longo da vida.
Procedente do interior (Nogent), é matriculado em Sens para estudar. Nesta escola conhece o amigo com que manterá várias rugas, mas para o qual sempre voltará, Deslauriers. Ambos saem da escola de Sens e vão para Paris, com o mesmo objetivo: a Faculdade de Direito. Mas ambos diferem em seus grandes objetivos reais: Frederico busca o amor e a beleza; Deslauriers busca o poder.
Entrando ambos para o ambiente intelectual e das artes (pintura, literatura), transitam entre escritores sem sucesso e pintores mais ou menos medíocres (Pelerin). É no “Artes Industriais” de Mr. Arnoux que se reúnem frequentemente. E é lá que Frederico conhece a mulher de Arnoux, por quem se apaixona e cuja figura e doçura buscará em Rosanette, de apelido Marechala, e depois em Mme. Lambreuse.
Frederico vive em Paris à custa das rendas de sua mãe, deixadas pelo pai. Seu ofício é não fazer nada e sonhar – tanto sonhos amorosos quanto sonhos de ascender socialmente tornando-se membro do Conselho (no período da monarquia) e depois sonhando com uma deputação que nunca acontece porque não toma as providências de se fazer indicado para uma vaga.
Foi o sonho de ser ‘par de França’ que o levou ao convívio com o banqueiro Mr. Lambreuse, dono de uma fortuna considerável e esposo de uma bela mulher e pai de Cecília, mas adotada em sua casa como “sobrinha”. Uma filha bastarda a que a esposa dedicava um ódio silencioso por baixo do tratamento social carinhoso para com a “sobrinha”. Recebido nos banquetes oferecidos, Frederico alarga seus relacionamentos e as portas se abrem para outros convites. Assim, passa a frequentar também o Visconde de Cisy, mas numa de suas festas falam mal de Mr. Arnoux e implicitamente da reputação de Mme. Arnoux. Frederico reage violentamente, quebrando pratos e travessas arremessadas contra o anfitrião. Seguir-se-á, obviamente, a descrição minuciosa da preparação, da cena e do duelo que não houve: Cisy desmaia e ao cair, machuca-se. Saindo sangue, estando ferido, está encerrado o duelo numa luta de espadas que não aconteceu. Sai Frederico como vencedor e Cisy desmoralizado por não ter conseguido se bater em duelo.
Face aos chamados insistentes da mãe, Frederico vai para Nogent onde fica sabendo que está arruinado: já não há mais rendas. A solução estava à mão: casar-se com a filha do tio Roque, Luísa, a quem ele começa a dedicar sua atenção. Mas o enfado do interior não o deixa permanecer em Nogent. Ao receber a informação de outro tio morrera “intestado”, e que se tornara herdeiro de uma renda anual de 34 mil francos, volta para Paris e para sua vida em sociedade… Este foi, digamos assim, o primeiro “passe de mágica” usado pelo narrador para fazer voltar à tona sua personagem.
Em Paris, seus amigos estão envolvidos com os movimentos republicanos. Participa deles sem querer. Com a queda do rei, Luís Felipe, e a declaração da república, dele se lembra Mr. Lambreuse esperando encontrar no jovem alguma proteção para mais uma vez deslocar-se de um regime para o outro sem perder efetivamente o poder, isto é, o poder econômico de um banqueiro. Ele já fora adepto do império; tornou-se monarquista, e agora há de ser republicano, sempre com lucros. Sugere que Frederico se inscreva para uma deputação à Assembleia. Até que Frederico tenta, mas desajeitado para a vida – afinal sua educação era para os sentimentos do amor, ao gosto do romantismo da época – acaba não conseguindo a indicação e quem efetivamente vai para a Assembleia é o próprio Mr. Lambreuse, pelo voto dos conservadores.
No entremeio disto tudo, os frequentes episódios dos encontros entre Frederico e o marido de sua paixão. Mr. Arnoux tinha seu caso com a Marechala… Foi Arnoux quem levou Frederico ao palacete de Rosanette, para um baile de fantasias! Assim, Frederico conheceu aquela que, substituindo Mme. Arnoux, se tornaria sua amante por longo tempo e com que, ao fim, terá um filho que não sobreviverá.
Fazendo a corte a Mme. Arnoux, Frederico consegue marcar um encontro. Aluga um “estúdio”, compra móveis, enfeita para que se torne seu eterno lugar do amor. Acontece que a revolta republicana se dá precisamente no dia do encontro. Mme Arnoux não comparece ao encontro, não por causa da revolta que desconhecia, mas porque seu filho ficara doente. Frederico se desespera, e no dia seguinte encontra Rosanette, que rompera com Mr. Arnoux. Os dois “abandonados” se encontram e ela ocupará o lugar de Mme. Arnoux nas estripulias de amor e sexo de Frederico, que acabará por sustentá-la.
Obviamente, com todos os gastos que faz, as rendas se tornam insuficientes e ele vai vendendo suas propriedades para atender ora os negócios do próprio Arnoux, porque não haveria de deixar sua paixão viver na miséria, ora os negócios de sua amante cheia de dívidas.
Para encontrar alguma forma de outras rendas, volta a se aproximar do banqueiro. E como não poderia deixar de ser, acaba se tornando amante de sua mulher! Por um longo tempo do enredo, vive Frederico entre as duas mulheres? Mme. Lambreuse e a Marechala.
É na qualidade de amante da esposa que acompanha a morte do banqueiro, vela-o e promete casamento à viúva. Depois do enterro, esta descobre que o testamento que o banqueiro havia feito em seu benefício desaparecera e que toda a fortuna ficará para a filha “bastarda”. Mme. Lambreuse teme perder Frederico, mas este lhe responde, em galanteio, que sempre lhe restará a própria amante! Firmam compromisso de casamento…
Acontece que Mr. Arnoux está em perigo de ver seus móveis e tudo mais ir a leilão por dívidas. Frederico, não tendo o dinheiro necessário, pede-o emprestado à viúva. Esta lhe adianta o dinheiro que Frederico apressadamente corre a entregar em casa da família Arnoux, mas já não os encontra: haviam “fugido” das dívidas e da prisão. Acontece que Mme. Lambreuse descobre para quem era o dinheiro, e em crise de ciúmes resolver executar as dívidas da família Arnoux para com seu falecido marido. Chama o advogado Deslauriers para providenciar a cobrança que será feita em nome de terceiro. No momento do leilão, ela convida Frederico a comparecerem e nele compra uma guarda-joias que pertencera a Mme. Arnoux como uma espécie de vingança pelo amor que lhe dedica Frederico.
Este fato leva ao rompimento. O casamento não acontece. E como por causa deste Frederico já havia rompido com a outra amante, Rosanette, mais uma vez ele fica solitário: sem as amantes e sem sua paixão platônica. Resolve voltar a Nogent: talvez Luísa, esta que de fato o havia amado, poderia ser um consolo. Mas chega à cidade precisamente na hora do casamento de Deslauriers com sua prima!
No tradicional remédio para os males do amor, Frederico viaja! Volta a Paris já envelhecido. Certo dia bate-lhe à porta Mme. Arnoux: vem com um envelope pagar uma velha dívida! E então conta de sua vida no interior, da quase pobreza e das economias para irem saldando as dívidas. O amor retorna, a paixão de reacende, mas nada se concretiza mais uma vez. Mme. Arnoux parte, e Frederico fica sozinho.
É num dos diálogos deste encontro que aparece explicitamente a inspiração de A Educação Sentimental:
– Às vezes – dizia ela – as suas palavras vêm-me à lembrança como um eco longínquo, como o som de um sino trazido pelo vento; e parece-me vê-lo ao meu lado, quando leio nos livros, passagens de amor…
– Tudo o que neles censuram como exagerado, você me fez sentir – disse Frederico. – Compreendo os Werther a quem não repugnam as fatias de Carlota.
Eis aí Werther, eis aí o romance de formação. E este romance de Flaubert bem poderia ter o subtítulo de “o amante da mulher do outro”: Mme. Arnoux é mulher do outro; Rosanette, a Marechala de vida cortesã era mulher de Mr. Arnoux; Mme. Lambreuse, a mulher do banqueiro. Parece que a Frederico sempre interessavam as mulheres que lhe estavam interditas por outros compromissos, de modo que a posse seria sempre a posse do amante. Ou seria destino da “educação sentimental” masculina: a cada um só inspiram amor as mulheres que o inspiram também a outros? E a educação sentimental seria a educação para a sublimação jamais aceita? Afinal, na sequência do diálogo:
– Acabou-se! Foi imenso o nosso amor!
– E sem nos possuirmos!
– Foi talvez melhor assim – replicou ela.
– Não! não! Que felicidade teríamos tido!
No último capítulo do romance, encontram-se os amigos Frederico e Deslauriers. E recordam. E entre estas recordações, a furtiva entrada para “o lugar que você sabe”; “uma certa rua”, onde ficava a casa da Turca, onde as raparigas recebiam os homens. A primeira visita de amor/sexo dos jovens amigos
… o calor que fazia, a apreensão do desconhecido, uma espécie de remorso, e até o prazer de ver, duma só vez, tantas mulheres à sua disposição, embaraçaram-no por tal forma, que empalideceu, e ficou parado, sem nada dizer. Todas riam com aquela atrapalhação; julgando que estavam a troçar dele, fugiu; e como Frederico é que tinha o dinheiro, Deslauriers foi obrigado a segui-lo.
O sexo não realizado aqui o seguirá vida afora, repetindo-se com a frustração do sexo irrealizado com Mme. Arnoux! Parece que a educação sentimental nada enterra, e nela tudo perdura.
Referência: Flaubert, Gustave. A educação sentimental. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1947.
João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.
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