Textos de Arquivo XXIII: Cinco questões sobre a questão dos métodos

Nota prévia

Este texto foi produto da transcrição de fala na mesa-redonda “Alternativas metodológicas para o ensino da leitura” do 6º. Congresso Brasileiro de Leitura – COLE. A Associação de Leitura do Brasil realizava seus congressos a cada dois anos, e no ano seguinte organizava os anais que eram distribuídos no próximo congresso. Este congresso foi organizado pela diretoria sob a liderança do Prof. Ezequiel Theodoro da Silva, criador do COLE e da ALB. O 6º. Congresso ocorreu em 1987, e logo depois assumi a presidência a ALB por dois anos. Assim, os anais foram publicados em 1988 e contou com o trabalho de Lilian Silva na organização e de Valdir Barzotto, sem o concurso dos quais certamente não haveria a publicação. Meu texto é consequência deste trabalho de transcrição da fala, feita pelo colega Barzotto, como imediatamente perceberá o leitor pelas marcas de oralidade que foram mantidas, as repetições, as idas e vindas, demonstrando que se trata de uma fala marcada pela fala da coordenadora da mesa-redonda que havia enviado o texto com antecedência, como era o planejamento do próprio evento. Assim, sem as tonalidades da voz, o texto perde em sentidos, mas marca também sua própria forma de se produzir.

Cinco questões sobre a questão dos métodos

Como esse COLE tem como temática a questão dos métodos e os métodos em questão, e se a mesa está sendo suficientemente disciplinada, porque a coordenadora teve a disciplina que convém fazendo um texto próprio para facilitar a participação dos outros membros da mesa, eu vou ser não disciplinado. Posso ser disciplinado no tempo porque tenho muito pouca coisa a dizer, mas vou ser suficientemente indisciplinado para tocar em vários tópicos sem trazer um texto escrito e amarrado. Mas terei a disciplina que o recorte de tempo, em mesas-redondas, impõe.

A título de epígrafe, começo colocando duas falas de lugares bem diferentes, para cruzá-las. Uma de uma criança de 8 anos da 2ª. série, que fazendo o resumo de um livro que se chama “Pingo de Luz”, diz: “Pai, por que a professora quer o resumo se ela pode ler o livro?”.

Agora, outra fala, de um outro lugar social, trata-se de Michel Foucault, que não é uma criança, nem tem 8 anos, nem está na segunda série: “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou modificar a apropriação dos discursos com os saberes e os poderes que trazem com ele”.

Diante da provocação que o texto da Maria da Glória Bordini trouxe para a gente, eu me sinto provocado por todas as questões do mundo. Estou mais ou menos assim como um professor de segundo grau deve ter se sentido em 78/79 quando recebeu aqueles 8 volumes de subsídios para a implementação do guia curricular de São Paulo, publicado pela CEMp. São oito coletâneas de textos, excelentes textos, excelentes coletâneas que ele vai ter que articular. E eu, diante das provocações, acho que estou me sentindo mais ou menos assim: é tanta provocação que eu não sei por onde começar. Acho que foi o que aconteceu com os professores de 2º. Grau, naquela época, e provavelmente, como ele, eu também farei o mesmo, vou deixar de lado tantas provocações, e vou selecionar, das sete perguntas, a sétima. Por que a sétima? Porque é o número 7, um número interessante. Retomo a pergunta: “Como um método de ensino de leitura pode prever sistematicamente os atos de leitura adequados a um determinado texto e a certo alunado?”

Diante desta provocação, a minha primeira pergunta é: “Mas há método?”

Ao pressuposto que subjaz à pergunta “como um método de ensino pode prever, a minha pergunta é: onde está o método? É o primeiro passo para depois me perguntar como ele prevê. E como resposta a esta segunda pergunta, se há método, cito uma passagem do Prof. Marcelo Dascal, que cita outros. Numa sala de aula, Marcelo Dascal fala da crítica que Leibnitz faz a Descartes. Na crítica que faz, diz: este senhor, Descartes, era muito, muito inteligente. De fato ele descobriu coisas muito importantes, mas este senhor absolutamente não tinha método, apesar de “O Discurso do Método”, porque se ele tivesse método, os seus discípulos, seguindo o método que Descartes deu, deveriam fazer as mesmas descobertas , tão geniais quanto aquelas que Descartes fez. Ora, os discípulos de Descartes seguem o método de Descartes e não fazem descobertas tão geniais quanto as que Descartes fez. Logo, Descartes deve ter descoberto não com o método que disse ser o método.

A segunda questão é que uma das regras do método, de dividir em partes o problema, não diz nada, porque a ordem de dividir em partes o problema não diz onde é que o problema tem que ser cortado, onde é que ficam as junturas. Ora, o problema não é só de divisão, o problema é encontrar o lugar do corte. E por fim, na medida em que faço estes cortes sem saber onde devo fazê-los, tenho que pensar no fenômeno como um todo, e nos recortes que faço a quantidade de coisas que do fenômeno deixo fora. E o pior não é deixar de fora algumas das provocações da Maria da Glória, mas o fundamental e pior é que nesse deixar de fora, de repente, a gente acaba negando o que deixou de fora, porque acaba não mais enxergando. Então se eu estou tomando apenas a sétima questão, não é porque queria deixar de fora  as outras, mas para ficar divagando um pouco em cima desta sétima, com muito medo de esquecer todas as outras.

Bom, para tratar desta sétima questão eu volto a citar Maria da Glória. Há uma passagem sua, já tomada pela Maria Laura, que é a seguinte: “É um postulado lógico que não há prática sem fundamentação teórica e vice-versa, a falta de investigação nas áreas teóricas de leitura só poderia resultar em tentativas pedagógicas desconexas, que podem lograr bons êxito quando o professor, intuitivamente, parte de uma noção de aluno e de texto próxima da realidade de ambos, mas que em larga escala e aplicadas indiscriminadamente, dificilmente produzem leitores aptos.

Eu quero tomar precisamente aquilo que estou salientando aqui, que é “produzem leitores aptos”.

Em outra passagem você também coloca que passada a alfabetização, no resto do 1º. E 2º. Graus, os professores consideravam que “estando alfabetizado, o aluno não precisava de atividades de leitura especificamente planejada para o domínio dos atos de ler, passavam logo à leitura instrumental e as aulas sobre literatura, ou seja, usavam o ler como um meio a mais de aprendizagem e não como uma habilidade a ser constantemente aperfeiçoada”.

Bom, se os métodos estão em questão, eu acho que gostaria de colocar em questão precisamente isto. Parece-me que por trás destas duas passagens do texto há uma ideia de que existe método, mas há também uma ideia de que o fato de existirem métodos não quer dizer que métodos têm sucesso. E o método, para ser mais preciso, seria a organização de atividades de leitura que levem ao domínio do ato de ler. Uma vez dominada a habilidade de ler, o leitor estaria apto a usar esta habilidade/capacidade como instrumento, como forma de aprender outros conhecimentos ou habilidades.

Ora, outra é a concepção de leitura quando esta se realiza como instrumental de outras aulas sem se preocupar em habilitar para depois usar. Ou seja, um método sem leituras planejadas para habilitar o leitor para depois o leitor ser leitor; aparentemente seria o anti-método. É porém a busca d eum uso efetivo do teto que pode produzir um certo método.       

Acho que o método é precisamente aquilo que às vezes a escola tem jogado fora: é precisamente o uso do texto escrito e de sua leitura, sem muita preocupação com o planejamento de atividades que desenvolvam a habilidade de ler, que produzem leitores. Seria  a prática como produtora da gramática, e não a gramática do método como caminho para ditar a prática da leitura. Continuo defendendo, ainda, que se aprende a ler, lendo.

A terceira questão que gostaria de colocar no debate vem de outro lugar. É de Michel Foucault, e eu cito: “O que é no fim de contas um sistema de ensino senão a ritualização de uma fala, senão uma quantificação e fixação de papeis para os sujeitos falantes, senão a constituição de um grupo doutrinal pelo menos difuso, senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes?”

Quando nós estamos falando em crise da leitura, será que esta crise da leitura não passa por um lugar que é a recusa dos discursos que os sistemas educacionais e as próprias leituras que são proporcionadas na escola, que querem fazer com que aquele que passa pelo ritual da apropriação se aproprie? Não poderia ser uma recusa a estes discursos? Será que um dos problemas que nós temos não é precisamente a crise da leitura se definir como uma recusa aos discursos que esta escola, de final do século XX, está oferecendo, como material de leitura?

Esta questão, que posso formular a partir de Foucault diz, atentos a este processo de apropriação: será que o aluno não tem, efetivamente, muito mais consciência do que nós temos às vezes, de que se promete mais e na verdade se lhe dá menos? Isto é, em todo o processo dessa apropriação que a escola aparentemente possibilitaria, se Foucault tiver razão vendo a escola como um sistema de apropriação de discurso, promete-se ao aluno que ele, apropriando-se desses saberes, passa a ter, sei lá, uma ascensão social, sei lá eu o quê, quando ele tem consciência muito clara e efetiva que isso não é verdadeiro. E sua reação, que enxergamos como a crise, não seria precisamente uma crise que me mostra a crise de uma outra coisa, isto é, a crise de um sociedade onde sujeitos não poder ser sujeitos?

A quarta questão, ainda em relação ao ensino (eu estou sendo super comportado, não sei até se não estou sendo rápido demais para ficar limitado ao meu tempo) é em relação à questão de base da Maria da Glória, de como o método pode prever. A escola tem respondido afirmativamente, a escola tem dito: é possível prever. Primeiro, ela diz “existe o método”. Dois, ela diz: “é de fato possível prever com adequação para determinados alunos a leitura adequada a determinado texto”.

A escola tem feito isso pela forma como organiza  escolar e, dentro dele, a leitura que o aluno vai fazer n a escola está já planejada: ele vai ler tal texto, são X unidades de conteúdo com um tal programa mínimo que vai ser desenvolvido, previamente fixado e independente de dizermos, no início do planejamento, “este programa é flexível”, porque de flexível, na verdade, acaba não tendo nada. Estou pensando na flexibilidade no interior da sala de aula, não estou pensando na flexibilidade do não cumprimento do planejamento que a gente faz e guarda na gaveta. Pense, por exemplo, o seguinte: você mimeografou um texto, levou para dentro da sala de aula, o aluno discute o texto e diz “este texto é inadequado para a questão que nós temos para discutir”. Bom, você suspende a leitura deste texto ou continua a aula igual? Suspende a aula? Quer dizer, dado que a escola está planejada na sua forma de trabalho, que ela tem que ter horários e a aula de português vai das 9:00 às 10:00h, o que você faz?

Na verdade, será que nós somos suficientemente flexíveis para, de fato, dizer “jogue este texto para o lado e vamos para outro”. Ou melhor ainda, vamos começar tentar produzir aqui neste aula, e neste diálogo, ao menos o conjunto de perguntas que temos para nos fazer sobre este tema? Temos a flexibilidade de abandonar o texto que trouxemos inadequadamente, ou que o aluno trouxe inadequadamente, tal como fazemos, de fato, quando estamos fazendo pesquisa? Na verdade, eu estou aqui me referindo ao trabalho que tem desenvolvido a Corinta, defendendo uma metodologia de ensino que seja produtiva de conhecimento.

Por fim, e a minha última questão é em relação ao paradoxo, um paradoxo que gostaria de ver também discutido aqui. É um paradoxo que eu vejo a cada COLE, que se repete também em livros, e que é um paradoxo interessante, é o paradoxo do fato de que, no Brasil, o ensino é livresco; é o verbal escrito que ainda vale, mas o ensino livresco é associado a um outro fato: que inexistem livros. O ensino é livresco sem livros, sem acervo, sem biblioteca nas escolas. Então é preciso caracterizar o ensino livresco, um ensino autoritário, um ensino mistificador da palavra escrita, palavra esta a que se atribui uma única leitura, a leitura privilegiada numa determinada época, obedecendo cegamente aos referenciais teóricos dos autores e reproduzindo as ideias captadas no texto, tomados como fins em si. A ausência de livros, no entanto, nas escolas, é compensada com muita rapidez por máquinas de xerox, pelos mimeógrafos, pelas apostilas e eu acrescentaria, ainda, pelos livros didáticos com os quais se piora cinquenta e cinco milhões de vezes o ensino.

É provocação mesmo. Estou querendo provocar o debate sobre livro didático, que tomo como produto de consumo rápido, que o aluno tem à mão; nunca o livro por inteiro, porque seria trabalhoso estuda-lo para extrair dele o que se busca. Não há busca, engolem-se informações pré-fixadas como conteúdos, não se degustam conquistas, as sopas pré-fabricadas das respostas a repetir não exigem o trabalho de cortar e mastigar, de degustar, a papa já está pronta. Sei que a existência pura e simples de material bibliográfico, “de livros a mão cheia”, como queria Castro Alves, não resulta mecanicamente em um ensino não livresco. Experiências bem próximas demonstram isto, mas uma coisa me parece correta, o ensino livresco se sustentará por um tempo maior, quanto menor for o acesso da população ao livro. Por isso o paradoxo de um ensino livresco sem livros ser paradoxo aparente. Quanto menos se lê, mais autoritária e única é a leitura das autoridades, por isso o ensino pode ser livresco, porque o professor acaba sendo, naquele momento, a autoridade.

Lutar, portanto, pela leitura, lutar pelo livro, lutar pela biblioteca é uma forma de lutar contra o ensino autoritário, contra o ensino repetitivo, contra o ensino alienante e contra o ensino livresco. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.