Textos de arquivo XVI: Escrita, uso da escrita e avaliação

Nota introdutória

Este texto foi escrito a pedido da Profa. Sarita Moysés que estava organizando um Caderno do CEDES sobre o ler e o escrever. Escrevi-o no primeiro semestre de 1984 e entreguei o texto para publicação. A edição do Caderno (n. 14) demorou. Assim, antes mesmo da publicação no espaço para o qual se destinava, o texto foi incorporado na coletânea O Texto na Sala de Aula (1ª. edição em setembro de 1984, pela Assoeste). Esta coletânea surgiu, na verdade, para ser a “apostila” de um conjunto de cursos que seriam ministrados para os professores de língua portuguesa do Oeste do Paraná, tanto da rede pública quanto da rede particular. José Kuiava achou por bem editá-lo na forma de livro, com uma tiragem de mil exemplares, 600 dos quais foram distribuídos aos professores durante os 11 (onze) cursos ministrados na região nos meses de setembro e outubro de 1984. Assim, este texto teve um destino que não lhe fora previsto. E acabou sendo leitura de muitos alfabetizadores por tratar de textos escritos por autores iniciantes! Ainda gosto dele. Os textos de crianças utilizados no artigo me foram trazidos por professoras alfabetizadoras da cidade de Campinas, quando prestava assessoria como coordenador de estudos no CEFORME, da Secretaria Municipal de Educação. Um deles me foi apresentado como extremamente problemático, elaborado por um aluno repetente. O leitor pode imaginar o que significou, naquela época, contrapor a este texto um não-texto trazido como bom texto para as sessões de estudos… Para além da contraposição à tese defendida no texto, recupero duas críticas que este texto mereceu, ambas de um professor universitário do Rio Grande do Sul: o emprego do vergo “opotunizar” que não está dicionarizado; o segundo foi usar a expressão “problemas ortográficos”, já que ortografia quer dizer grafia certa… São críticas superficiais, obviamente, e seu fundo efetivo é dizer, sem dizer, que um sujeito que “erra na língua”, não raciocina suficientemente e por esta via querer desqualificar a tese defendida. Quanto ao emprego do verbo “inexistente”, só rindo. Quanto aos  “problemas ortográficos”, respondi com um paralelo, como vamos ao ortopedista quando temos “problemas ortopédicos”, seguindo sua etimologia, teríamos que falar em “problemas pédicos”… e “problemas gráficos”, este com sentido totalmente distinto no uso comum da língua” Fica o registro de uma “recepção” cuidadosa do meu texto tornado “redação” a corrigir…

 

Escrita, uso da escrita e avaliação

Provavelmente o leitor procurará obter aqui alguns critérios que lhe permitam melhorar seu desempenho de professor na “correção” e “avaliação” de redações de seus alunos. Uma das questões mais frequentes é precisamente esta: “como avaliar redações?”

O título deste texto justifica esta expectativa. Revertamo-la de imediato. De fato, minha preocupação será pôr em questão precisamente a questão “como avaliar redações?”, tentando recuperar alguns dos problemas prévios a esta questão, e que, como tais, podem iluminar as causas que não só levam a respostas diferenciadas mas também produzem a própria questão.

Como espero poder demonstrar, a pergunta é bem colocada: como avaliar redações, porque a ninguém ocorre avaliar o editorial de um jornal, uma conversação informal ou o discurso de um político. Normalmente, discordamos ou concordamos com um editorial; acrescentamos argumentos a favor ou contra um ideia defendida num discurso; questionamos a oportunidade de tratar de um assunto ou ainda nos perguntamos pela validade ou efeitos concretos de uma conversação, etc. Sei que, neste momento, o leitor está se perguntando: e isto não é avaliar? Eu responderia que sim. Mas há uma diferença fundamental: quando nós, professores, nos perguntamos “como avaliar redações?” temos em mente precisamente o exercício-simulacro da produção de textos, de discursos, de conversações: a redação. Isto porque na escola não se produzem textos em que um sujeito diz sua palavra, mas simula-se o uso da modalidade escrita para que o aluno se exercite no uso da escrita, preparando-se para de fato usá-la no futuro. É a velha história da preparação para a vida, encarando-se o hoje como não-vida. É o exercício.

Assumindo que qualquer proposta metodológica é a articulação de uma concepção de mundo e de educação – e por isso uma concepção do ato político e uma concepção epistemológica do objeto de reflexão – no nosso caso, a linguagem – como as atividades desenvolvidas em sala de aula, o primeiro deslocamento a fazer, de um lado, é o da função-aluno que escreve uma redação para uma função-professor que a avalia e, de outro lado, o próprio ato de produção escolar de textos. Por quê? Porque é impossível manter uma coerência concebendo o aluno como aquele que se exercita para o futuro, exigindo ao mesmo tempo que use com adequação a modalidade escrita da linguagem, já que esta, nas palavras de Benveniste, “é tão profundamente marcada pela expressão da subjetividade que nós nos perguntamos se, construída de outro modo, poderia ainda funcionar e chamar-se linguagem”.

Ao descaracterizar o aluno como sujeito, impossibilita-se-lhe o uso da linguagem. Na redação, não há um sujeito que diz, mas um aluno que devolve ao professor a palavra que lhe foi dita pela escola. Percival Leme de Brito, estudando as condições de produção do texto escolar, conclui que esta

É marcada, em sua origem, por uma situação muito particular, onde são negadas a língua algumas de suas características básicas de emprego, a saber, a sua funcionalidade, a subjetividade de seus locutores e interlocutores e o seu papel mediador da relação homem-mundo. O caráter artificial desta situação dominará todo o processo de produção da redação, sendo fator determinante de seu resultado final.

Para mantermos uma coerência entre uma concepção de linguagem como interação e uma concepção de educação, esta nos conduz a uma mudança de atitude – enquanto professores – ante o aluno: dele precisamos nos tornar interlocutores que, respeitando a palavra do parceiro, ajam como reais parceiros: concordando, discordando, acrescentando, questionando, perguntando, etc. Note-se que, agora, a avaliação está se aproximando de outro sentido: aquele que apontamos em relação ao uso que efetivamente, fora da escola, se faz da modalidade escrita.

Feitas estas breves considerações, tomo-as como pontos de partida para a reflexão sobre dois textos (ou um texto e uma redação?) de crianças (1):

  1. A casa é bonita.

A casa é do menino.

A casa é do pai.

A casa tem uma sala.

A casa é amarela.

 

  1. Era uma vez umpionho queroia ocabelo dai um emnino dapasou um umenino lipo enei pionho ai passou um emnino pionheto dai omenino pegoupionho da amullhér pegoupionho da todomundosaiogriãdo todo,udo pegou pionho di até sofinho begoupionho.

Ambos os textos são de crianças em seu segundo ano de experiência escolar. Que dizer de tais textos? Os dados a propósito dos alunos nos mostram. No mínimo, um critério de avaliação da escrita, tal como ela se dá, em termos tgerais, na escola. O autor do texto 1 foi aprovado no ano anterior; o autor do texto 2 está repetindo a primeira série e foi, portanto, considerado como não-alfabetizado.

À luz das considerações que vínhamos fazendo, o autor do primeiro texto entendeu o jogo da escola: seu texto não representa o produto de uma reflexão ou uma tentativa de, usando a modalidade escrita, estabelecer uma interlocução com um leitor possível. Ao contrário, trata-se do preenchimento de um arcabouço ou esquema, baseado em fragmentos de reflexões, observações ou evocações desarticuladas (2). Ele está devolvendo, por escrito, o que a escola lhe disse, na forma como a escola lhe disse. Anula-se, pois, o sujeito. Nasce o aluno-função. Eis a redação.

O autor do segundo texto, ao contrário, usa a modalidade escrita para contar uma história. Ainda que no outro polo do processo de interlocução a leitura possa ser prejudicada por problemas ortográficos e estruturais, há aqui de fato um texto, e não mera redação. Na verdade, o autor ainda não aprendeu o jogo da escola: insiste em dizer a sua palavra. Foi reprovado e repete a primeira série.

O fato de considerarmos a sequência 1 como redação e a sequência 2 como texto, e portanto avaliarmos positivamente este e negativamente aquele, não quer dizer que tal texto não apresente problemas. Que fazer com eles? O problema mais óbvio é o relativo à ortografia oficial, e a prática da produção e da leitura de outros textos ajudará o aluno a ultrapassar suas dificuldades. Apenas para facilitar, faço uma “tradução em ortografia oficial” do texto:

Era uma vez um piolho que roía o cabelo de um menino piolhento daí passou um menino limpo sem piolho aí um menino piolhento daí o menino pegou piolho daí a mulher pegou piolho daí todo mundo saiu gritando todo mundo pegou piolho daí até seu filhinho pegou piolho.

Mais interessante do que os problemas ortográficos, neste texto, são as influências da oralidade na escrita: repetições, uso de conetivos como daí, estruturação da narrativa, etc. É claro que entre este texto, tal como produzido, e um texto na modalidade escrita, variedade padrão, há um caminho a percorrer. Isto se aceitarmos a hipótese de que o compromisso político da aula de língua portuguesa é oportunizar o domínio também desta variedade padrão, como uma das formas de acesso aos bens que, sendo de todos, são de uso de alguns. Para percorrer este caminho, no entanto, não é necessário anular o sujeito. Ao contrário, é abrindo-lhe o espaço fechado da escola para que nele ele possa dizer a sua palavra, o seu mundo, que mais facilmente se poderá percorrer o caminho, não pela destruição de sua linguagem, a seu falante a ao seu mundo, conscientes de que também aqui, na linguagem, se revelam as diferentes realidades das diferentes classes sociais.

É devolvendo o direito à palavra – e na nossa sociedade isto inclui o direito à palavra escrita – que talvez possamos um dia ter a história contida. E não contada, da grande maioria que hoje ocupa os bancos das escolas públicas. E tal atitude, parece-me, dá novo significado à questão “como avaliar redações?” apontando, no mínimo, para critérios diferentes daqueles que reprovaram o autor do texto, e aprovaram o “autor” da redação (3).

Notas

  1. O primeiro texto é de um aluno que em 1983 frequentava a segunda série do 1º. grau: o segundo texto é de um aluno que estava, em 1984, repetindo a primeira série. Os textos foram motivo de reflexão dos professores envolvidos nos projetos “Estratégias de leitura e produção de textos” (1983) e “Desenvolvimento de práticas de leitura e produção de textos” (1984) do Programa de Integração do ensino de 1º. grau  e 3º. grau. UNICAMP/IEL/MEC-Sesu.
  2. Confira Cláudia Lemos. Neste artigo a autora considera e analisa as “estratégias de preenchimento” utilizadas por vestibulandos em suas redações.
  3. É evidente que com isto não estou querendo dizer que a criança que produziu a sequência 1 deva ser reprovada. Ao contrário, é preciso devolver-lhe o direito de dizer a sua palavra. Talvez, com a devolução, seus textos percam o asseio a que nossos olhos se habituaram.

Bibliografia

BENVENISTE, Émile. “Da subjetividade na linguagem”. Problemas de Linguística Geral. São Paulo, Nacional, 1976.

BRITO, Percival L. “Em terra de surdos-mudos (um estudo sobre as condições de produção de textos escolares)”. Trabalhos em Linguística Aplicada, n. 2, UNICAMP, 1983.

LEMOS, Cláudia T. G. “Redações de vestibular: algumas estratégias”. Cadernos de Pesquisa, n. 23, Fundação Carlos Chagas, São Paulo, 1977.

OSAKABE, Haquira. “Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita”. In. Regina Zilberman (org). Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre, Mercado Aberto, 1982.

PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo, Martins Fontes, 1983.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.