Textos de Arquivo XV: Práticas de leitura de textos na escola

Nota introdutória

Este texto foi escrito para o II Encontro Anual da APLL/RS, promovido pela Associação de Professores de Língua e Literatura-RS, em Porto Alegre, e foi apresentado em um a mesa-redonda, em 1983. A APLL publicou-o em seu Boletim da APLL-RS, ano 2, n. 3 (s/data), quando já havia sido publicado em Leitura: Teoria & Prática, ano 3, n. 03, julho de 1984. Posteriormente o texto compôs o livro O Texto na Sala de Aula, publicado em setembro de 1084 pela Assoeste/Cascavel. Quando escrevi este texto, tinha no horizonte os professores de língua portuguesa, meus interlocutores principais. E sua inspiração veio das formas que eu manuseava textos e pensava serem as formas com que muitos manuseiam textos. Pensava a leitura como este ato produtivo, sobretudo quando seu objetivo não é nada produtivo e que chamei de leitura-fruição (não no sentido do “prazer” patrocinado consumo de bens culturais), em que o descompromisso com qualquer atividade posterior conduz o leitor e sua produção da leitura.

Na época, fazia-se crítica à escola porque “usavam e abusavam de textos literários”, lidos como pretextos para fins distintos daqueles previstos pela produção artística. Tratava-se de críticas ao emprego de textos para o ensino de gramática, mas também para levantar temáticas de debates e discussões em sala de aula, ou até mesmo para funcionarem como “orientação moralista” para os estudantes. Assumi, no entanto, que há sim leituras que funcionam como pretexto, em muitas de nossas práticas. Navegava contra a correnteza, contra a defesa de uma leitura literária “imaculada”, que não manche os textos artísticos. Como nunca acreditei nisso, fiz uma classificação de leituras possíveis a partir de seus objetivos. Trata-se de uma classificação que mereceria outros desdobramentos, porque práticas emergem sempre e jamais tipos ou classes darão conta do real.

Como poderão ver, defendo no texto a aprendizagem da língua padrão, principalmente na modalidade escrita. Sei que este ponto de vista é extremamente polêmico. Ao admitir que todas as variedades são iguais, e por isso não deveria haver privilégio de uma variedade na escola, é esquecer também que as variedades linguísticas tem “valor” social. Quando invertida a pirâmide social, o que já tarda a acontecer, a questão se dissolveria: enfim estaríamos livres das relações de dominância presentes em nossa sociedade. Até lá…

 

Práticas de leitura de textos na escola

Introdução

E dois trabalhos anteriores (Geraldi, 1981, 1982) defendi o ponto de vista d eque o ensino de língua portuguesa deveria centrar-se em três práticas:

  1. Prática de leitura de textos
  2. Prática de produção de textos
  3. Prática de análise linguística.

Estas atividades, integradas ano processo de ensino-aprendizagem, têm dois objetivos interligados: a) tentar ultrapassar, apesar dos limites da escola, a artificialidade que se institui na sala de aula quanto ao uso da linguagem; b) possibilitar, pelo uso não artificial da linguagem, o domínio efetivo da língua padrão em suas modalidades oral e escrita.

A maior parte do tempo e esforço gastos por professores e alunos durante o processo escolar, na assim chamada aula de língua portuguesa(1), é para aprender a metalinguagem de análise da língua, com alguns (e esporádicos) exercícios de língua propriamente ditos. No entanto, uma coisa é saber a língua, isto é, dominar as habilidades de uso da língua em situações concretas de interação, em tendo e produzindo enunciados adequados aos diversos contextos, percebendo as diferenças entre uma forma der expressão e outra. Outra coisa é saber analisar uma língua, dominando conceitos e metalinguagens a partir dos quais se fala sobre a língua, se apresentam suas características estruturais e de uso.

Na prática escolar, institui-se uma atividade linguística artificial (2): assumem-se papeis de locutor/interlocutor durante o processo, mas nãos e é locutor/interlocutor efetivamente. Esta artificialidade torna a relação intersubjetiva ineficaz, porque a simula. Não estou querendo dizer que inexiste interação na sala de aula; estou querendo apontar para seu falseamento, dado que os papeis básicos desta interlocução estão estaticamente marcados: o professor e a escola ensinam; o aluno aprende (se puder). Tentar ultrapassar esta artificialidade é efetivamente tentar assumir-se como um “Tu” da fala do aluno, na dinâmica de trocas do eu/tu.

Como ensinava Benveniste (1976, p. 286), “A linguagem só é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no sue discurso. Por isso, eu propõe outras pessoas, aquela que, sendo embora exterior a “mim”, torna-se o meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu”. Na prática escolar, porém, o “eu” é sempre o mesmo; o “tu” é sempre o mesmo. O sujeito se anula em benefício da função que exerce. Quando o tu-aluno produz linguisticamente, tem sua fala tão marcada pelo eu-professor-escola que sua voz não é voz que fala, mas voz que devolver, reproduz a fala do eu-professor-escola.

Esta artificialidade do uso da linguagem compromete e dificulta, desde sua raiz, a aprendizagem na escola de uma língua ou da variedade de uma língua(3). Comprovar a artificialidade é mais simples do que se imagina: na escola não se escrevem textos, produzem-se redações. E esta nada mais é do que simulação do uso da língua escrita. Na escola não se leem textos, fazem-se exercícios de interpretação e análise de textos. E isto nada mais é do que simular leituras. Por fim, na escola não se faz análise linguística, aplicam-se a dados análises preexistentes. E isto é simular a prática científica de análise linguística.

Na verdade, a situação é um pouco mais caótica ainda. Simula-se que inexistem diferenças entre a variedade que se quer ensinar e a variedade que o aluno domina. Constata-se esta diferença – é impossível esconder o sol com a peneira –  mas age-se como quem não a escuta. Porque escutá-la não é corrigi-la para calá-la, mas ouvir vozes que preferíamos caladas. Ou que outros preferem caladas.

É precisamente porque estas vozes não podem mais calar que o compromisso político primeiro do professor de língua portuguesa é possibilitar o domínio efetivo da língua padrão, modalidade escrita.

A democratização da escola, ainda que falsa, trouxe em seu bojo outra clientela e com ela diferenças dialetais bastante acentuadas. De repente, não damos aulas só para aqueles que pertencem aos grupos sociais privilegiados. Representantes de outros grupos estão sentados nos bancos escolares. E eles falam diferente. E se “a começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder” (Gnerre, 1978, p. 59), ela serve também para romper o bloqueio: dominar os mesmos instrumentos de poder dos dominantes é uma forma de acesso e rompimento deste poder.

Se o objetivo último do processo é o domínio ativo e passivo da variedade culta da língua portuguesa, os caminhos me parecem ser aqueles apontados pela pesquisa psicolinguística, na área de aquisição da linguagem. Cláudia Lemos (1982) demonstra que a criança, muito antes de analisar as formas linguísticas, utiliza-as nas interações linguísticas efetivas. O processo parece seguir do uso contextualizado para a descontextualização. Muito antes de a criança dizer (e usar) uma forma como “fazi”, ela usa “fiz”. Nas palavras da autora: “Fenômenos como esse, indicativos de que a análise de vocábulos e estruturas é posterior ao seu uso enquanto procedimentos comunicativos e cognitivos relativamente eficazes, podem ser detectados ao longo de todo o desenvolvimento linguístico (p. 104). Ou ainda, em outra passagem:  …essas considerações finais me levam a concluir que é através da linguagem enquanto AÇÃO SOBRE O OUTRO (ou procedimento comunicativo) e enquanto AÇÃO SOBRE O MUNDO (ou procedimento cognitivo) que a criança constrói a linguagem enquanto OBJETO sobre o qual vai poder operar” (p. 119-20).

Por isso, propõe-se uma prática linguística efetiva nas três áreas que julgo serem as essenciais para se chegar ao domínio da língua padrão, seguindo-se o processo acima apontado. Entendo por prática da análise linguística a recuperação, sistemática e assistemática, da capacidade intuitiva de todo falante de comparar, selecionar e avaliar formas linguísticas e a prática de produção de textos como uso efetivo e concreto da linguagem com fins determinados pelo locutor ao falar e escrever.

Neste texto, procurarei aprofundar um pouco mais a questão da prática da leitura. As ideias básicas aqui desenvolvidas retomam e expandem colocações feitas nos trabalhos anteriores.

2. A prática da leitura de texto

Antes de qualquer sugestão metodológica é preciso conceituar leitura dentro do quadro esboçado até aqui, sem trair a concepção de linguagem que subjaz a estas considerações iniciais.

Para Marisa Lajolo (1982, p. 59) “Ler não é decifrar, como num jogo de adivinhações, o sentido de um texto. É, a partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir correlaciona-lo a todos os outros textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e, dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não prevista.”

Creio não trair a autora citada se disser que a leitura é um processo de interlocução entre leitor/autor mediado pelo texto. Encontro com o autor, ausente, que se dá pela sua palavra escrita. Como o leitor, neste processo, não é passivo, mas é agente que busca significações, “o sentido de um texto não é jamais interrompido, já que ele se produz nas situações dialógicas ilimitadas que constituem suas leituras possíveis” (Authier-Revuz, 1982, p. 104). O autor, instância discursiva de que emana o texto, se mostra e se dilui nas leituras de seu texto: deu-lhe uma significação, imaginou seus interlocutores, mas não domina sozinho o processo da leitura de seu leitor pois este, por sua vez, reconstrói o texto na sua leitura, atribuindo-lhe a sua (do leitor) significação. É por isso que se pode falar em leituras possíveis e é por isso também se se pode falar em leitor maduro e “a maturidade de que se fala aqui não é aquela garantida constitucionalmente aos maiores de idade. É a maturidade de leitor, construída ao longo da intimidade com muitos e muitos textos. Leitor maduro é aquele para quem cada nova leitura desloca e altera o significado de tudo o que ele já leu, tornando mais profunda sua compreensão dos livros, das gentes e da vida” (Lajolo, 1982, p. 53).

Como coadunar esta concepção de leitura com atividades de sala de aula, sem cair no processo de simulação de leituras?

Não me parece que a resposta seja simples. Se fosse assim, não haveria porque tantos encontros de professores, tantos textos que tematizam a própria leitura. Qualquer que seja a resposta, no entanto, estará lastr4eada numa concepção de linguagem, já que toda metodologia de ensino articula uma opção política – que envolve uma teoria de compreensão e interpretação da realidade – com os mecanismos utilizados na sala de aula (Cf. Fischer, 1976). No nosso caso, como compreendemos e interpretamos o fenômeno linguagem embasará a resposta ao problema.

É desnecessário dizer que este texto não pretende dar a resposta, mas uma resposta.  E a leitura desta, para sermos coerentes com a concepção de leitura recém delineada, se transformará em respostas. Por mais que eu fuja da respota que quero dar, fazendo uma citação ali, alertando o leitor para o “desnecessário dizer” mas dizendo, não posso fugir de dar uma resposta, sob pena de estar simulando, a gora, a produção de um texto tornando-o “redação escolar”.

Marilena Chauí, em conferência proferida no 1º. Forum da Educação Paulista (10 a 12 de agosto de 1983), utiliza excelente imagem: o diálogo do aprendiz de natação é com a água, não com o professor, que deverá ser apenas mediador deste diálogo aprendiz-água. Na leitura, o diálogo do aluno é com o texto. O professor, mero testemunha deste diálogo, é também leitor e sua leitura é uma das leituras possíveis.

Leitores, como nos colocamos ante o texto? Longe que querer estabelecer uma tipologia de vivências de leituras, gostaria de recuperar de noss experiência concreta de leitores as seguintes possíveis postura ante o texto:

  1. A leitura – busca de informações
  2. A leitura – estudo do texto
  3. A leitura do texto-pretexto
  4. A leitura – fruição do texto.

Diante de qualquer texto, qualquer uma destas relações de interlocução com o texto/autor é possível, isto porque mais do que o texto definir suas leituras possíveis, são os múltiplos tipos de relações que com eles nós, leitores, mantivemos e mantemos que o definem. (4)

2.1. A leitura – busca de informações

A característica básica desta postura ante o texto é o objetivo do leitor: extrair do texto uma informação. Se este objetivo pode definir a interlocução que se está estabelecendo no processo de leitura, outros objetivos definem o porquê estabelecer a própria interlocução. Ou seja, para que extrair informações?

Observando textos colocados à disposição dos estudantes por grande parte dos livros didáticos de “comunicação e expressão”, pode-se constatar que tais textos não respondem a qualquer “para quê?”. Consequentemente, o único para-quê lê-lo que o estudante descobre de imediato é responder as questões formuladas a título de interpretação: eis a simulação da leitura.

Neste sentido, leituras realizadas em outras disciplinas do currículo (história, geografia, ciências, etc.) são menos artificiais do que as realizadas nas aulas de língua portuguesa: está um pouco mais claro para o aluno o para-quê extrair as informações X ou Y do texto, ainda que a resposta tenha sido autoritária e artificialmente imposta pelo processo escolar (a avaliação, por exemplo).

Responder o “para-quê” ler um texto, buscando nele informações, é uma questão prévia não só deste tipo de leitura mas de toda atividade de ensino: ensinamos para quê? Os alunos aprendem para quê? As respostas a estas questões envolvem uma perspectiva política, do professor e do aluno. Registro-as e suspendo-as: não por não serem importantes, mas por serem cruciais. E só a resposta justifica o estarmos pensando em leitura, escola, interlocução, etc.

Duas formas podem orientar, em termos metodológicos, este tipo de leitura: a busca de informações com roteiro previamente elaborado (pelo próprio leitor ou por outrem) e a busca de informações sem roteiro previamente elaborado. No primeiro caso, lê-se o texto para responder questões previamente estabelecidas; no segundo caso, lê-se o texto para verificar que informações ele dá. Em ambos os casos, é prefacial a questão do “para-quê?” ter tais informações.

Dois níveis de dificuldades podem ser perseguidos: extrair informações que estão na superfície do texto ou extrair informações que estão em nível mais profundo. Considerando o texto do Apêncide 1, as perguntas

  1. Qual o nível de produtividade da economia brasileira?
  2. Qual a anomalia estrutural que é necessário incluir entre as causas da inflação brasileira?

têm respostas na superfície do texto; as perguntas

  1. Que encargos sociais as empresas são obrigadas a pagar por empregado? Por que existem tais encargos?
  2. Se a mão-de-obra no Brasil é mal paga, como pode assumir um peso excessivo na formação bruta da renda nacional?

têm respostas num nível mais profundo do texto e dependem não só da leitura deste texto, mas também do seu relacionamento com outros textos, outras informações e da leitura que fazemos da vida.

Uma leitura-busca de informações não precisa ser necessariamente aquela que se faz com textos de jornais, livros científicos, etc. Também com o chamado texto literário esta forma de interlocução é possível. Pense-se, por exemplo, na leitura de romances para extrair deles informações a propósito do ambiente da época, da forma como as pessoas, através das personagens, encaravam a vida, etc.

2.2. Leitura-estudo do texto

Infelizmente, é preciso reconhecer que a leitura-estudo do texto é mais praticada em aulas de outras disciplinas do que nas aulas de língua portuguesa que, em princípio, deveriam desenvolver precisamente as mais variadas formas de interlocução leitor-texto-autor.

Embora a leitura-estudo do texto possa ser uma forma de interlocução também com a obra de ficção (5), exemplifico com o mesmo texto utilizado na secção anterior, quanto mais não fosse, ao menos para manter, na prática deste texto, a coerência com o que nele se defende.

Um roteiro que me parece suficientemente amplo e ao mesmo tempo útil, no estudo de textos, é especificar:

  1. a tese defendida no texto
  2. os argumentos apresentados me favor da tese defendida
  3. os contra-argumentos levantados de teses contrárias
  4. coerência entre tese e argumentos.

 Cada um destes tópicos pode se desdobrado e outros, pondo em questão tanto a tese defendida quanto a veracidade e validade dos argumentos apresentados. Assim, é possível que nossa leitura nos leve a concordar – em princípio – com a tese defendida mas não com os argumentos arrolados e assim por diante.

Considerando rapidamente uma leitura possível – e não a única – do texto do Apêndice 1, teríamos:

  1. tese: a baixa produtividade da economia brasileira é a causa raiz da inflação.
  2. Argumentos:
  3. no Brasil, apenas dois terços dos dias do ano são dedicados à produção;
  4. pouco mais de 1/3 da população brasileira trabalha;
  5. o custo do trabalho efetivo de 7 meses equivale a 17 salários mensais.
  6. o autor apenas cita que existem outros fatores da inflaão, sem arrolá-los e sem discuti-los;
  7. coerência entre tese/argumentos: independentemente de qualquer contra-argumentação aos dados apresentados como argumentos – o que poderia ser feito em relação a cada um dos itens de b – e fazendo de conta que os aceitamos como “verdadeiros”, o texto é viciado pela incoerência entre os argumentos e a tese: se fossem verdadeiros e ainda que fossem verdadeiros os argumentos, a baixa produtividade não decorre dos fatos apresentados como argumentos. Ao contrário, produtividade maior é aquela que se obtém como o mínimo de esforço (de tempo e pessoas) com o máximo de resultado (renda). Há, pois, uma falácia: a tese – em princípio aceitável – não se segue dos argumentos dados pelo texto.

Exploremos o texto um pouco mais: sua estrutura é simplesmente uma tese; apresenta três argumentos; resume os argumentos. Retoma a tese e propõe a necessidade de ultrapassar o fato indicado pela tese (implicitando com isso que é necessário eliminar os fatos tomados como argumentos). É interessante notar também que a “costura” do texto por parágrafos de passagem (2º,  6º, 8º, e 9º) e no interior de cada parágrafo como o autor passa de afirmações particulares para universais (alguns-todos; maioria-todos; média-todos, etc.).

É óbvio que a interlocução com este texto poderia continuar: quais os objetivos? Que contra-argumentos invalidam sua argumentação? etc.

Esse tipo de interlocução não é privativo do texto dissertativo. Pode-se “estudar” narrativas, verificar pontos de vista defendidos por personagens e contrapontos por outros, etc. (6).

2.3. A leitura do texto-pretexto

“Pretexto” envolve uma rede muito grande de questões. Pretextos para a o aluno (aquele que, em sendo o aprendiz, deveria dirigir sua aprendizagem); pretextos para o professor. O texto que estamos estudando poderia ser pretexto para a produção de outro texto sobre inflação, pra escrever uma carta ao jornal ou para aprender uma possível estruturação do texto argumentativo.

Dramatizar uma narrativa, transformar um poema em coro falado, ilustrar uma história são apenas três dos múltiplos pretextos que podem definir o tipo de interlocução do leitor-texto-autor. Não me alongo na listagem: “manuais de criatividade” estão repletos de “sugestões criativas” para serem reproduzidas, se para tanto nos acudirem engenho e arte…

Apenas para mostrar um outro pretexto, quase ausente (!) nas aulas de língua portuguesa, no Apêndice II, transcrevo um texto produzido por uma ex-aluna de um curso de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa, ministrado em Cascavel-PR. O texto Bom Conselho (Chico Buarque) foi lido como introdução (pretexto) a um estudo do clichê, do provérbio, do estereótipo em redações. Como conclusão do mesmo estudo, a tarefa “criativa” proposta foi imitar Chico Buarque produzindo um texto com base me provérbios.

Tiradas as farpas, entre aspas, que vão mais em função dos efeitos do que das propostas, o que se quer salientar é que a leitura do texto como pretexto para outra atividade define a própria interlocução que se estabelece. Não vejo porque um texto não possa ser pretexto (para dramatizações, ilustrações, desenhos, produção de outros textos, etc.). Antes pelo contrário: é preciso retirar os textos dos sacrários, dessacralizá-los com nossas leituras, ainda que estas venham marcadas por pretextos. Prefiro discortar do pretexto e não do fato do texto ter sido pretexto.

2.4. Leitura-fruição do texto

No sistema capitalista, de uma atividade importa seu produto. A fruição, o prazer, estão excluídos (para que alguns e somente alguns possam usufruir à larga). A escola, reproduzindo e preparando para o sistema, exclui qualquer atividade ‘não-rendosa’: lê-se um romance para preencher uma ‘famigerada’ ficha de leitura; para responder as questões de uma prova ou até mesmo para se ver livre da recuperação (você foi mal na prova, castigo: ler o romance Z, até o dia D, depois férias…).

Está no interior desta mesma ideologia da atividade produtiva a questão sempre levantada por professores, bem intecionados, relativa à avaliação de uma tal atividade: “se não exijo nada como resultado desta leitura, como vou saber se o aluno leu?”.

Com “leitura-fruição do texto” estou pretendendo recuperar de nossa experiência uma forma de interlocução praticamente ausente das aulas de língua portuguesa: o ler por ler, gratuitamente. E o gratuitamente aqui não quer dizer que tal leitura não tenha um resultado. O que define este tipode interlocução é o ‘desinteresse’ pelo controle do resultado.

À primeira vista, esta seria forma de relação exclusiva com o texto literário, feita pelo cidadão comum (não-aluno, não-professor de língua, não-profissional da linguagem(. Vou um pouco mais longe: ela não é exclusiva do texto literário. Por que se lê jornal? Para se (manter) informar(do), a informação pela informação. A gratuidade da informação disponível, de que poderemos ou não fazer uso. É uma forma de interlocução distinta daquela que denominamos aqui de leitura-busca de informação. O “para quê” tem resposta circular: informar-se para informar-se, pelo prazer gratuito de estar informado.

É óbvio que esta gratuidade tem boa paga: a informação disponível, como o saber, frequentemente geram outras vantagens…

Recuperar na escola e trazer para dentro dela o que dela se exclui por princípio – o prazer – me parece o ponto básico para o sucesso de qualquer esforço honesto de “incentivo à leitura”. Para tanto, é necessário recuperar da nossa vivência de leitores três princípios:

  1. o caminho do leitor: nossa história de leitura não começou pelo “monumento literário”. O primeiro livro que lemos não foi aquele que lemos ontem ou aquele de que ouvimos uma conferência na semana passada. O respeito pelos passos e pela caminhado do aluno enquanto leitor (que se faz pelas suas leituras como nós nos fizemos leitores pelas nossas leituras) é essencial. Nesta caminhada é importante considerar que o enredo enreda o leitor;
  2. b)      o circuito do livro: que livro estamos lendo hoje? Provavelmente aquele de que me falou um amigo, que já o leu ou aquele de que lemos uma resenha, etc. Isto é, lemos os livros de que temos notícia, dependendo de quem foi o nosso informante. Parece-me que os livros fazem, fora da escola, um circuito que passa por relações de vários tipos que mantemos com diferentes pessoas. Nenhum não-profissional da linguagem lê um romance, por exemplo, por obrigação. Creio que a saída prática do professor de língua portuguesa é criar este circuito entre seus alunos, deixando-os ler livremente, por indicação de colegas, pela curiosidade, pela capa, pelo título, etc. No microcosmos da sala de aula é possível criar este mesmo circuito, e talvez não sejamos nós, professores, o melhor informante para nossos alunos. Rodízios de livros entre alunos, bibliotecas de sala de aula, biblioteca escolar, frequência à bibliotecas públicas são algumas das formas para iniciar este circuito;
  3. c)       não há leitura qualitativo no leitor de um livro só: a qualidade (profundidade?) do mergulho de um leitor num texto depende – e muito – de seus mergulhos anteriores. A quantidade ainda pode gerar qualidade. Parece-me que deveremos – enquanto professores – propiciar um maior número de leituras, ainda que a interlocução que nosso aluno faça hoje com o texto esteja aquém daquela que almejaríamos: afinal, quem é o leitor, ele ou nós? A título de curiosidade, principalmente para aqueles que buscam argumentos que possam justificar este pondo de vista: em breve levantamento feito em dez números da revista ISTOÉ, seção livros, resenhas de obras de ficção, obtive os seguintes resultados em 26 resenhas, assinadas por 12 diferentes críticos, para tratar do livro que estavam resenhando, foram citados outros livros, autores, personagens de outras obras, numa variação de 0 a 13. As resenhas estão assinadas por críticos e escritores de renome e os dados me parecem mostrar que estes leitores “são o que são” porque não leram apenas o livro que resenharam. (7)

Espero que estes apontamentos a propósito da leitura de textos e de sua prática na escola cumpram o fim a que se destinam: uma interlocução honesta com seus possíveis leitores. E honesta, aqui, não tem qualquer sentido moralista. Honesta porque só se concretizará com o outro-leitor que o complementará por sua palavra.

Notas

  1. Canto e Bernardy (1982), analisando atividades desenvolvidas em aulas de língua portuguesa de duas escolas do interior do Rio grande do sul, a partir dos planejamentos dos professores, seus registros diários, cadernos e livro-texto dos alunos, obtiveram os seguintes percentuais de atividades: leitura (5%); interpretação (14%); redação (11%); expr. Oral (6%); gramática (56%), outras atividades (8%).
  2. Em trabalhos anteriores, afirmava que “a situação do emprego da língua é fictícia”. Dado os problemas conotativos em relaão ao termo “ficção”, passo a usar as expressões “artificial/artificialidade” por sugestão de Percival Brito.
  3. Celene M. Cruz e Vera L. Aguiar (1982) observam que “o mesmo aluno que responde sem hesitar à pergunta – “Qu’est-ce que vous avez fair hier?” com a resposta “-jesuis allé chez Mireille (Philippe, Sylvie, Mme.Renard) – quando feita dentro do quadro situacional porposto pelos métodos, encontra dificuldades de responder ao mesmo tipo de pergunta fora da “mise-em-scène” dos métodos … mesmo produzindo um discurso em 1ª pessoa, há uma manifesta impessoalidade por parte do locutor, incapaz de constituir-se como sujeito real do discurso emitido, restingindo-se ao papel de reprodutor de sequ|ências verbas atribuídas a um outro” (p. 86).
  4. Marisa Lajolo, em O que é literatura defende o ponto de vista de que é literatura o que as instituições sociais, na história, disseram que é literatura. Foram, pois, leituras que a definiram. Eni Orlandi (Histórias da Leitura, comunicação apresentada no XXVI Seminário do GEL, Unimpe, 1983), exemplifica a mesma questão a partir de textos religiosos do sânscrito, hoje lidos como poemas, e opera com o conceito de leitura privilegiada para mostrar que a leitura de alguns leitores é imposta como a única leitura.
  5. Esta é, aliás, a forma de interlocução do crítico literário e seu objeto, mas não só dele. Dorfman e Armand Mattelart dão excelente exemplo de leitura-estudo da obra de ficação em Para ler o Pato Donald, dedicando-se neste estudo aos aspectos ideológicos do mundo imaginário de Walt Disney.
  6. Apenas para dar um exemplo: uma leitura ainda a ser feita é verificar quais os pontos de vista (e não teses) sobre família, amor e sexo, expostos em narrativas como Porcos com Asas, Feliz Ano  Velho, Com licença, eu vou à luta (é ilegal ser menor?) e Eu, Chistiane F. para citar quatro obras diferentes mas muito próximas em vários aspectos.
  7. Os números das revistas são os seguintes: 274, 287, 399, 303, 310, 317, 322, 346 e 348. Nestes números forma resenhadas 6 obras de autores brasileiros, 3 obras de autores portugueses e 18 traduções (literatura estrangeira). Abaixo, pode-se ver o número de resenhas e o númer de citações feitas por resenha: 4 (0 cit.), 1 (1), 5 (2), 7 (3), 3 (4), 1 (5), 3 (6), 1 (8) e 1 (13). (Leia-se: em 4 resenhas, 0 citações e assim sucessivamente).

Bibliografia

Authier-Revuz, J. (1982) “Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour une approche de l’autre dnas le discours”. DRLAV-Revue de Linguistique, 26, p. 91-151.

Benveniste, É. Problemas de linguística geral. São Paulo : Nacional, 1976.

Canto, V. M. e Bernardy, E. (1982). “Análise do direcionamento que é dado ao ensino de língua portuguesa a nível de escola”. Signo, 12, p. 17-28, CEPELL, Santa Cruz do Sul.

Cruz, C. M. e Aguiar, V. L. (1982) “O sujeito enunciador e o discurso por ele produzido no processo de aquisição oral de uma língua estrangeira”. Cadernos de Estudos Linguísticos 3, p. 84-91 Unicmap.

Dorfman, A. e Mattelart, A. (1978) Para ler o Pato Donald. RJ, Paz e Terra.

Fischer, R. M. B. (1976) “A questão das técnicas didáticas”. Ijuís, FIDENE, mimeo.

Geraldi, J. W. (1981) Subsídios metodológicos para o ensino da língua portuguesa, Cadernos da Fidene, 18, 70 p.

__________ (1982) “Possíveis alternativas para o ensino da língua portuguesa. ANDE, 4, p. 57-62.

Gnerre, M. (1978) “Linguagem e poder” in. Subsídios à proposta curricular de Língua Portuguesa para o 2º. Grau. V. IV, Variação linguística e o ensino na língua materna. Secr. Estado da Educação, São Paulo.

Lajolo, M. (1983) “O texto não é pretexto” in. Regina Zilberman (org) Leitura em crise na escola: as alternativas do professor. Porto Alegre, Mercado Aberto, 52-62.

_________ (1982). O que é literatura. SP, Brasiliense.

Lemos, C. T. G. (1982) “Sobre aquisição de linguagem e seudilema (pecado) original”. ABRALIN, Boletim 3, set/1982, p. 97-126.

Orlandi, E. (no prelo) “Histórias das leituras”. Comunicação apresentada no XXVI Seminário do GEL, Unimep, 1983. A sair em “Leitura: Teoria e prática”.

Apêndice 1

Muito pouco, para tantos

Enquanto no Brasil se discute a causa da inflação galopante, procurando-se academicamente estabelecer se ela é de demanda, de oferta ou – hipótese menos verossímil – de origem psicológica, esquece-se algo que está naturalmente na raiz desse processo devorador de nações. Referimo-nos à produtividade da economia brasileira, extremamente baixa, diríamos até escandalosamente baixa para um país em vias de desenvolvimento e que deveria dedicar-se com maior determinação a produzir riquezas.

Para demonstrar que no Brasil se produz muitíssimo menos do que se poderia produzir, basta recorrer a alguns números extremamente simples, numa conta elementar, seguindo um raciocínio lógico.

Vejamos: o ano tem 365 dias: desses, 52 são domingos e outros 52 sábados (saliente-se que uma boa parte dos brasileiros não trabalha aos sábados, e quando o faz, geralmente trabalha apenas meio dia). Contando os feriados e os dias engolidos nos fins de semana, pensados entre um feriado e um sábado, temos ai, por baixo, cerca de 12 dias, nos quais a média do brasileira que trabalha não comparece ao serviço, a isso acrescente-se uma média de 10 dias nos quais qualquer cidadão, mesmo de boa saúde (o que não é o caso para mais da metade da população do país), falta ao serviço por motivo de doença. Temos portanto um total de 126 dias nos quais, normalmente, não se trabalha e portanto nada se produz. Somemos agora estes 126 dias aos 30 dias de férias que são concedidas, pela legislação, aos trabalhadores. São 156 dias. Basta agora subtrair esses 156 dias dos 365 dias do ano  do ano e teremos 209 dias. O brasileiro trabalha, portanto, de um total de 365 dias, apenas 209 dias em média, o que quer dizer que, de um ano todo, menos de dois terços dos dias são dedicados à produção, o que corresponde a um dia de folga para pouco mais de um dia de trabalho.

Mas as coisas não ficam nesse pé. Estão registrados como população produtiva, em todo o território nacional, cerca de 38 milhões de brasileiros. Como nossa população deve andar por volta dos 118 milhões de habitantes, temos que pouco mais de 30 por cento dos brasileiros trabalham. O que significa que pouco mais de um terço dos brasileiros trabalham pouco mais de 200 dias para alimentar, vestir e equipar, durante 365 dias, 118 milhões de patrícios. Vale dizer – de cada três brasileiros, apenas um trabalha um dia e pouco, a cada dia de folga.

Duzentos e nove dias são equivalentes a praticamente sete meses. Mas o trabalhador, para trabalhar sete meses, ganha entretanto o equivalente a 13 salários, pois recebe os 12 meses do ano e mais o 13º salário. Temos então que pouco mais de um terço da população trabalha cerca de sete meses, mas recebe o equivalente a 13 meses. Se acrescentarmos ao custo da produção certa de 33 por cento de encargos sociais diretos que as empresas são por lei obrigadas a pagar por empregado, temos que apontar a importância correspondente ao salário de 13 meses, pouco mais de um terço desse valor. Ou seja, sete meses de trabalho de um brasileiro custam para a economia o equivalente a cerca de 17 salários mensais.

Vai daí que: 1 – a produtividade específica do trabalhador brasileiro é gritantemente baixa: a) em relação ao número de horas ociosas; b) em relação ao número de pessoas que estão permanentemente ociosas para cada trabalhador; e 2 – o produto desse brasileiro é brutalmente sobrecarregado de encargos, por f0orça da relação 7 por 13 mais 33%, ou seja, 7 por 17 meses.

É evidente que a inflação não é causada somente por essa espantosa realidade, que constitui a convivência de um país em desenvolvimento, cuja população não tem poder de compra e uma escassa e errática produtividade, cujas anomalias e distorções tornam cada produto excessivamente onerado.

Não se trata de dizer que cabe culpa ao trabalhador brasileiro. Esse tipo de conclusão seria simples demais para merecer guarida de quem quer que seja. Trata-se de incluir, entre os diversos fatores causadores da inflação brasileira, essa anomalia estrutural, profundamente grave para continuar ignorada pelo debate nacional.

Não há como minimizar, no diagnóstico da inflação, os efeitos predatórios dessa constatação elementar, que consiste no registro de que cada brasileiro trabalha no lugar de três, durante um dia e pouco mais para cada dia de folga, impondo à economia um custo de 17 salários mensais para sete meses de trabalho.

O resultado é sinistro, embora mal remunerada, mal ocupada e mal preparada, a mão-de-obra assume um peso excessivo, na composição da economia brasileira. As rendas do trabalho perfazem 60 a 70% da formação bruta da renda nacional, contra menos de 40% na média dos países da Europa Ocidental.       

O debate nacional em torno da inflação, ainda que a nível acadêmico, não pode continuar desprezando aspecto de tamanha magnitude. Assim como as políticas adotadas para o controle da inflação não devem ignorar a necessidade de deflagrar no Brasil aquela que nos parece ser a batalha decisiva: a da produtividade maior da terra, do capital e do trabalho.

(Editorial. Folha de São Paulo. 6/5/79)

 

Apêndice II

É de pequenino que se torce o pepino

Margarida Maria Trevisan

Logo após um – com esse eu não me caso, nem que tenha que morrer solteira – segue-se um solene – “Quem desdenha quer comprar” – por parte da mãe da interessada.

E assim, uma moça adepta do pairar aqui, agora e acolá mais tarde, ouve frequentemente – “Quem muito escolhe acaba escolhido” – por parte dos não favorecidos com as oscilações, ou das que porventura não possuindo os mesmos predicados, não possam se dedicar a tais folguedos.

“Deus ajuda quem cedo madruga”, mas isso não se aplica aos casos amorosos precoces, por parte das garotas, que podem até mesmo levar bons castigos por isso, porque “é de pequenino que se torce o pepino”, já dizia, sabiamente, minha avó.

E como vovó já dizia – e de lá para cá rolou muita água por debaixo da ponte e certamente moveu muitos moinhos – “Quem espera sempre alcança”. E tem mesmo muito boas moças na espera – sentadas porque de pé se cansam – do príncipe encantado.

E já nãos e fazem mais príncipes como antigamente. Vejam o que eles andam propalando: “Antes sós que mal acompanhados”.

E agora, minha avó?

(Transcrito com autorização da autora).

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.