Textos de Arquivo XIX: De como produzir milagres ou “O professor pega um boizinho, rifa e compra livros”.

Nota introdutória

Este texto foi escrito para a mesa-redonda “O professor como leitor e como incentivador da leitura”, do 5º. Congresso de Leitura do Brasil (COLE), realizado em 1985. Eu estava, neste tempo, envolvido até à medula com três grandes projetos de ensino de língua materna: um desenvolvido na cidade de Aracaju, desde 1981; outro iniciado no Oeste do Paraná em 1984. No primeiro, já éramos mais ou menos 80 professores da cidade que vinham aplicando a proposta de ensino que havia publicado em 1981 (Cadernos da Fidene, 18). O segundo começou já gigantesco: participaram dos cursos deflagradores do processo mais de 600 professores da região; destes, mais de 300 iniciaram um trabalho alternativo em 1985. Ao final do ano, constatamos que estávamos trabalhando com mais de 100 mil alunos e que tínhamos uma biblioteca de livros de literatura brasileira (juvenil, adulta) de mais de 100 mil volumes, todos nas mãos dos leitores! O terceiro projeto era numa das delegacias de educação da cidade de Campinas, em que estavam à frente da área as Professoras Norma Ferreira e Maria do Rosário Mortatti. Eram em torno de 100 professores com que nos reuníamos uma vez por mês!

A magnitude dos números nos assustava e ao mesmo tempo nos entusiasmava: era possível começar uma mudança da base, com os professores nas escolas. Enquanto as gestões estavam, a esta altura, trabalhando na elaboração de propostas curriculares (a primeira publicada foi a da cidade de São Paulo, na gestão de Guiomar Namo de Melo à frente da SME), nosso pequeno grupo, constituído por Lilian Lopes Silva, Raquel Salek Fiad e eu (ajudados, nos cursos iniciais de 1984 por colegas da Unicamp e da UFPR), vínhamos trabalhando pesado no acompanhamento dos professores destes projetos. Eu recebi cartas dos professores e dos alunos. As primeiras sobre os problemas que vinham enfrentando na prática docente; as cartas dos alunos eram curtas e falavam sobre o que estavam achando das “novas aulas de português” ou dos livros que estavam lendo ou de como os conseguiram. Sempre respondi a todas as cartas, datilografava-as com cópia carbono em papel amarelo, que guardava junto à carta recebida. Quando o número de pastas A-Z encheram meu armário, veio um grupo do Sistema de Arquivos da Universidade para verificar se havia algum interesse no material. Descartaram-no. Como guardava toda minha correspondência nas mesmas pastas, depois dos exames dos especialistas, joguei-as fora. Foram para o lixo algumas correspondências que não deveriam ter ido: com Magda Soares; um cartão e uma carta de Carlos Drummond de Andrade; cartas trocadas com Antônio Houaiss; e com inúmeros pós-graduandos do país, em algumas comentando dissertações e teses já defendidas.

A colega Lilian Lopes Silva, por acaso, passou por minha sala num dos dias em que eu “fazia a limpeza”. Recolheu o saco de lixo e levou consigo. Quando da comemoração dos 30 anos da publicação de O Texto na Sala de Aula fiquei agradavelmente surpreso ao ver algumas destas cartas em banners produzidos pelo evento!

Tudo isto vem ao caso para dizer que este texto está marcado por este entusiasmo quase juvenil, de uma aposta, de um trabalho que se perdeu ou de que sobraram alguns rastros. Relendo-o agora, relembro o Jornal do Livro, o Leia… também estes desapareceram e sobraram rastos em arquivos.  

De como fazer milagres

ou “O professor pega um boizinho, rifa e compra livros”

  1. Introdução

Para começar uma discussão sobre “o professor como leitor e como incentivador da leitura”, gostaria as frases-título desta fala nos conduzissem a pensar na correlação entre a leitura e as condições de trabalho do professor, especificamente do professor de língua portuguesa. Vou me preocupar mais com as condições, porque continuo convencido de que o ato de ler, o debruçar-se sobre um texto, é sempre um diálogo entre um sujeito-leitor e um textos-autor, diálogo que produz diferentes significações pois pode se dar com diferentes orientações.

Ainda que ato solitário, ele é sempre dialógico: do leitor com o texto; do leitor informado por suas outras leituras já que a leitura que se faz agora não lhes é indiferente; do texto com outros textos – mesmo aqueles desconhecidos pelo leitor – pois nenhum texto existe fora do mundo discursivo com o qual o texto que estou lendo dialoga e neste diálogo se propõe significados. Assim, como leitor, atribuo-lhe significados que (re)fazem não só o texto que estou lendo, mas também minhas outras leituras (“do mundo”, “das gentes”, e de textos).

Inquietante e sedutor, este jogo que a leitura proporciona tem sido regulado, para manter a ORDEM (da maioria) e o PROGRESSO (de alguns). Este “regular” se constrói pelos caminhos não sutis da exclusão (dos analfabetos, por exemplo) e por caminhos sutis que atingem aqueles a que aparentemente se possibilitou “o acesso ao mundo da escrita”. Lembro alguns destes caminhos sutis, para me fixar num deles:

  1. O caminho da fixação de uma leitura, de um significado do texto, na história de suas leituras possíveis, para interromper a inquietante produção de sentidos que se faz nas ilimitadas situações possíveis de leitura. O exemplo histórico, talvez mais comovente e trágico, da luta pela fixação de um só significado, é a do Evangelho. Tomo este exemplo para lembrar que a fixação não se faz-produz sem lutas. Fixado o sentido, a leitura deixa de ser produção (de sentidos) para se tornar decifração (de um sentido).
  2. O caminho do apagamento do jogo e, portanto, do prazer, é uma consequência da fixação. A leitura se torna tarefa de decifrar, penosa para o leitor porque ele não mais pode contar com suas leituras anteriores para construir significados. Cada texto, com seu significado fixado, é um novo texto a apreender: exclui-se a história para invisibilizar seu movimento; exclui-se o jogo (e o prazer) para ordenar uma teleologia cujo ponto de chegada está previamente determinado no ponto de partida. O jogo, que persiste sob a aparente ORDEM, é acidente de percurso a ser evitado. Como não pode ser simplesmente excluído, que seja jogado por parceiros para que a ORDEM de decifrar se mantenha para a maioria.
  3. O caminho da sacralização, criador de exegetas (ou mais modernamente, de especialistas). Rouba-se do ato de ler suas características mais simples, para torná-lo ‘coisa séria’, ‘difícil’, permitida aos iniciados cuja parceria com a ORDEM abre o caminho ao sacrário para de lá retirar os textos (de preferência, os clássicos)  mistificados pela significação única que se lhes atribui e mitificados pelas dificuldades que impõem para a eles ascendermos e sobre eles falarmos (Michel Foucault, 1970). Nem por isso desaparecem os ‘bons conselhos’. Tomo um, de longa data:

“Na mocidade, nos dias que vêm perto, apercebei-vos de bons livros: lede clássicos”. (“A nossa linguagem”, in. Júlio Lopes de Almeida. Histórias da nossa terra. RJ, Francisco Alves, 7ª. ed, 1911).

conselho que se repete hoje, sob formas diferenciadas (científicas?) de critérios para a seleção de livros de leitura, classificação obras como literárias ou não, valorosas ou não, esquecendo que a literatura se define diferentemente em diferentes épocas e diferentes grupos (Marisa Lajolo, O que é literatura).

  1. O caminho da construção de modelos, desdobramento necessário da fixação e da sacralização, fornece fórmulas de como ler, processando o significado desejado e limitando o texto e o leitor. Do ponto de vista da escrita e do acesso a ela, Haquira Osakabe mostra como uma forma de escrever se torna modelar. Do ponto de vista da leitura, nossos livros didáticos est]ao repletos de exemplos de como, através de perguntas de interpretação, vai-se constituindo um modelo de como ler, afastando possíveis inquietudes. Análise exemplar, pelo contraponto, pode ser encontrada em  “Poesias: uma frágil vítima de manuais didáticos”, de Marisa Lajolo, em que a autora retoma o texto “O Vestiduo de Laura”, de Cecília Meireles, contrapondo duas leituras à leitura que propõe um livro didático. Ou ainda em “A teoria da literatura e a literatura na escola” (também de Marisa Lajolo) se pode buscar como não esquecer protocolos de leitura sem, no entanto, torná-los “modelos” de leitura.

Não é meu objetivo aprofundar os quatro caminhos sutis apontados. Apenas queria lembrá-los para me fixar num quinto caminho: o das condições de trabalho do professor. Isto porque o considero também comouma forma sutil, mas cuja violência todos nós sentimos, de manter a ORDEM para afastar a sedução e a inquietude da leitura, inviabilizando-a para que se mantenha a tranquilidade do percurso traçado.

   

  1. A leitura e as condições de trabalho do professor

Inicio esta reflexão com uma analogia, assumindo os riscos que as analogias podem conter. Para fazer alguma coisa, há smepre condições (não sei se não é forte demais chamá-las de condições de produção). Assim, para exemplificar, o fazer tricô depende no mínimo de: a) existência de condições materiais (linhas, agulhas, etc); um objetivo do agente (fazer um blusão, uma camisa, etc para alguém); c) tempo (disponibilidade de um espaço de tempo da ação de fazer tricô) e d) saber-fazer tricô (isto é, domínio de uma certa técnica).

Ora, o ato de ler também tem condições: as condições materiais de acesso aos textos, livros, etc.; um objetivo: para que ler o que se lê; tempo para ler e, por fim, um saber ler. Vou me deter um pouco em cada destes tópicos.

  1. 1. Condições materiais de acesso a livros. Temos aqui um dos primeiros problemas enfrentados pelo “professor como leitor e incentivador de leitura”. Poucas são as escolas que dispõem de bibliotecas, e quando dispõem, seu acervo não acompanha a dinamicidade da produção de textos. Assim, o professor, explorado em seus salários, ainda é submetido a tarefas extras (festas, pedágios, rifas, etc.) para angariar fundos que lhe permitam colocar à disposição de seus alunos livros. A profissão vira missão: e o primeiro milagre a produzir é dispor de recursos que possibilitem o acesso material ao livro. “O professor pega um boizinho, rifa e compra livros” descreve e narra o quotidiano do professor que quer ultrapassar este obstáculo e desenvolver leituras com seus alunos. Em estudo exploratório sobre a prática da leitura extensiva em escolas de 1º. grau de Minas Gerais, os pesquisadores constatam, em respostas a mais de mil questionários, que
  2. .. a maioria dos motivos alegados para a não adoção da L.E. [leitura extensiva] se acha relacionado à clientela. Em seguida, vêm os fatores relacionados com a comunidade. Temos então:

– Fatores restritivos da clientela: quando certas características inerentes aos alunos constituem obstáculo da prática de L.E., citando-se, entre elas, a situação socioeconômica, variáveis relativas às habilidades de leitura, à movimentação específica e a predisposição individual para a atividade.

– Fatores restritivos da escola: gerados pela sua incapacidade financeira para superar o problema ou por sua má organização funcional.

– Fatores restritivos como bibliotecas, o que não estimula a prática. (Butaka, I. e outros, 1981, p. 72).

O professor, sobrevivendo com (ou aos?) salários, pode ainda assim, naquela base missionária da boa vontade, ultrapassar este obstáculo numa operação de “junta gravetos”, professor e alunos conseguem recursos. E daí?

“Que livros indicar para meus alunos da série X ou Y?” é uma das mais frequentes perguntas que “especialistas em leitura” ouvem em cursos, palestras, congressos. Não estou interessado em pensar e analisar as respostas que se dão ou podem ser dadas à pergunta. Interessa-me discutir o porquê da existência da pergunta. E novamente aqui voltamos às condições de acesso a livros do próprio professor. Seus salários os levam a assumir tantas aulas (além de  um terceiro turno na vida doméstica) que até mesmo os esforços de marketing(1) das empresas editoriais não atingem a todos os professores. Muito menos ainda publicações como LEIA, JORNAL DO LIVRO, críticas literárias em jornais e revistas não especializadas, etc. Esforços dignos de nota são aqueles da FNLIJ. Mas não estou com isso querendo dizer que é apenas porque o professor não lê que ele pergunta que livros indicar. Embora esta análise possa ser verdadeira, ela é insuficiente. Creio que é fundamentalmente devido à sacralização a que me referi antes que a pergunta tem sua razão de ser. O professor de boa vontade já introjetou, por ações e razões outras, a ideologia imobilizadora de que “todo mundo é incompetente, inclusive você”; daí sua necessidade de referendar, na voz do “especialista”, suas indicações de leitura.

  1. 2. Objetivos da leitura. Para refletir sobre este tópico me parece necessário fazer uma distinção: de um lado a prática efetiva de leitura fora da escola e seus objetivos, de outro lado a prática escolar de leitura e seus objetivos, porque estas práticas diferem. Enquanto o cotidiano, ainda que que com suas poucas leituras, nos mostra que um leitor não lê sem objetivos (ele sempre tem um para que ler o texto que está lendo (Geraldi, 1984), o aluno tem sua leitura (des)orientada por objetivos pedagógicos, alguns deles não ultrapassando o mero nível de controle exercido pela escola sobre sua leitura. Controle necessário? Para a avaliação?  Ou controle necessário para a fixação de significados e de modelos de como ler? Até onde há, de fato, objetivos na leitura? Até onde, na escola, estes objetivos são esquecidos em função do “aprender agora para ler depois”?
  2. 3. Tempo: “Os professores se queixam que os programas extensos não deixam tempo livre para a leitura; há excessiva valorização da gramática  e do cumprimento do programa; as aulas especiais ocupam o tempo livre, etc.”   (Butaka, op. cit., p.75) O tempo da escola é tempo medido.: 40 ou 50 minutos, uma aula; um bimestre corresponde a uma nota; um ano, a repetência, promoção ou evasão. E tempo sempre ocupado: para produzir o quê? Deixo de lado a perspectiva do aluno: penso no professor. Também ele é compartimentalizado em minutos de aula (10 aulas no dia X, 5 aulas no dia Y, etc.). Depois, preparar as aulas do dia seguinte. E o seu tempo de leitura desaparece no tempo que dedica para “preparar a formação de futuros leitores”.
  3. 4. Saber ler. Aqui estamos frente a um aparente paradoxo: o saber-ler é condição para ler e, no entanto, lê-se para aprender a ler! O paradoxo é, na verdade, aparente porque aprende-se a ler lendo. A ORDEM gostaria de que assim não fosse, e raros são os que conseguem escapar da ORDEM: desde pequenos fomos habituados a sermos ensinados a… Para tanto se conjugam forças: as da fixação do sentido; as do apagamento do jogo; as da sacralização dos textos; a da construção de modelos e, por fim, as das condições de leitura (do professor, do aluno, do cidadão). Estas sim, “forças terríveis” que conseguem nos levar ao paradoxo de um novo conceito de analfabetismo que engloba analfabetos e alfabetizados, porque estes ao aprender a ler, mais do que decifração aprenderam para o bem da ORDEM que não sabem ler. Exorciza-se a inquietude que a leitura-diálogo poderia produzir para gerar a tranquilidade que de tão tranquila acaba fazendo desaparecer a leitura.

Para pensarmos “o professor como leitor e como incentivador da leitura”, dadas as formas de como se tem enxergado a leitura e acrescentando-se a este enxergar as condições de trabalho do professor, é preciso que aprendamos com alguns professores dois milagres que realizam no seu dia-a-dia: o milagre de construir o acesso material a livros e o milagre de incentivarem leitores sem poderem ser leitores”

Mas que esta apreensão não nos iluda. Se são dois milagres, eles denunciam duplamente: as péssimas condições de trabalho do professor que o obrigam a produzir milagres e o nível de degradação a que chegou a educação para que a ORDEM se estabeleça para a maioria em benefício do PROGRESSO da minoria.

 

Nota

  1. Embora não se possa deixar de pesar o “marketing” empresarial: !a grande maioria dos títulos mais lidos são editados pela Editora Ática ou pela Tecnoprint. Da relação dos títulos mais lidos […] total de 1449 citações do quadro de títulos mais lidos, 1008 pertencem à Editora Ática, 342 à Tecnoprint (quatro títulos são comuns às duas editoras) e 271 a seis outras editoras” (Butaka, op. cit. P.73).

Bibliografia

Bibliografia

Almeida, J. L. (1911). “A nossa língua” in. Histórias da nossa terra. RJ, Francisco Alves, 7ª. ed.

Butaka, I e outros (1981). “Práticas de leitura extensiva em escolas estaduais de 1º. Grau – Minas Gerais – Estudo exploratório”. Resumos do 3º. Congresso de Leitura do Brasil, p. 71-76.

Foucault, M. (1970). A ordem do discurso. Mimeo. Tradução de Sírio Possenti, Dinarte Belatto e José Crippa. FIDENE, Ijuí.

Geraldi, J. W. (1984). “Prática da leitura de textos na escola” in. O texto na sala de aula – Leitura e Produção. Cascavel, Assoeste, p. 77-92.

Lajolo, M. (1982) O que é literatura. SP, Brasiliense

________ (1984) “Poesia: uma frágil vítima dos manuais escolares”. Leitura: Teoria e Prática, ano 3, n. 4, p. 19-25.

________ (1985) “A teoria da literatura e a leitura na escola”. Conferência proferida no Seminário “As ciências da linguagem e a formação do leitor”. P. Alegre, 22 a 26 de agosto de 1985.

Osakabe, H. (1982). “Considerações em torno do acesso ao mundo da escrita!. In. Regina Zilberman (org). Leitura em crise na escola.: as alternativas do professor. Porto Alegre, Mercado Aberto.

 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.