Textos de Arquivo X: Notas para uma tipologia linguística dos períodos hipotéticos

Nota introdutória

Este texto é um resumo de minha dissertação de mestrado em que estudei os enunciados condicionais dentro da perspectiva da Semântica Argumentativa. Ele foi publicado em Português: Estudos Linguísticos em 1981, três anos após a defesa da dissertação, que permanece inédita. O leitor, como nos textos que se seguirão a estes, deverá levar em conta o período em que foram produzidos. Quando escrevi a dissertação já tinha lido Voloshinov (El signo ideológico y la filosofia del lenguage), mas o pensamento do Círculo de Bakhtin era pouco conhecido entre os linguistas. Há uma sombra desta leitura na dissertação, quando classifico um dos tipos de enunciados condicionais como “dialógico”. Nele há a presença marcada da polifonia, de uma voz que se atribui como possibilidade ao outro. Mas naqueles tempos tais conceitos bakhtinianos não faziam parte do repertório da Linguística. Somente a partir da tradução de Marxismo e Filosofia da Linguagem, que Carlos Vogt incluiu como primeiro livro da coleção da Hucitec que passou a dirigir, que entram para o mundo da Linguística brasileira obras do Círculo de Bakhtin (ele já era conhecido nos estudos literários graças a Boris Schnaiderman e a tradução de Paulo Bezerra de Problemas de Poética de Dostoiévski).

Relendo hoje este texto, percebo nele e em seu estilo o medo que uma grande academia impõe: enquanto os textos anteriores escrevi ou como professor do ensino médio ou como professor de uma faculdade do interior, agora o peso da Unicamp se faz sentir de forma assustadora no professor recém chegado (fui contratado em agosto de 1980).  O estilo é tenso, marcado por cuidados e num linguistiquês explícito.

Goethe escreveu: “Quanto mais perto estão de certas escolas filosóficas, tanto pior escrevem. Os alemães que escrevem melhor são os que se dedicam a atividades práticas; comerciantes e mundanos.” (apud Sérgio Buarque de Holanda, no posfácio à 2ª. Edição de Fausto, Editora Itatiaia, 1987).

Assim, que não se diga que não conhecia o estilo e que não soubesse ter o comportamento esperado… Como escreveu um dia Rui Barbosa, tive a felicidade de me desfazer deste pó de giz para escrever um pouco mais solto e menos preso aos ditames do cientificismo acadêmico.

Notas para uma tipologia linguística dos períodos hipotéticos

  1. Objetivo

O problema da classificação dos períodos hipotéticos iniciados por “se” tem, tradicionalmente, se restringido à análise da correlação dos tempos e modos verbais das orações que os constituem. É com base nesta correlação que a classificação tradicional em condicionais reais, potenciais e irreais tem sido admitida nos estudos gramaticais.

É pressuposto necessário de tais estudos a propósito dos períodos hipotéticos que o falante, ao utilizar a estrutura linguística “se p, q”, expressa uma certa relação entre as proposições “p” e “q”, ora denotada pelo termo “condição”, ora pelo termo “hipótese”. Contudo, não são fornecidos critérios precisos para distinguir hipóteses de condições.

No presente trabalho, tentar-se-á obter uma classificação dos períodos hipotéticos que resulta, em última análise, do questionamento da concepção subjacente à classificação tradicional de que, num período hipotético, há efetivamente e sempre a expressão de uma relação entre “p” e “q”. Não se considerará, pois, a correlação de modos e tempos verbais, delimitando-se o estudo à discussão da relação sintático-semântica entre as orações constitutivas do período hipotético iniciado por “se”.

  1. Hipótese ou condição?

Estudando as relações que se estabelecem entre proposições, Ferdinand Brunot (1965) separa-as em dois grandes grupos: as relações lógicas e as relações não-lógicas. Entre as primeiras, agrupa a causa, a consequência, o fim, a oposição e a hipótese. As relações de comparação, dissemelhança, tempo, etc. pertenceriam ao segundo grupo.

Nas relações lógicas, o autor distingue dois grandes subgrupos: a) os fatos enunciados procedem um do outro; b) os fatos enunciados estão em oposição. Tradicionalmente, o período hipotético tem sido estudado como a expressão de uma relação entre as proposições “p” e “q”, classificadas por Brunot como uma relação lógica.

A primeira observação que se pode fazer a propósito do estudo do período hipotético com base em noções lógicas e a diferença entre a categoria lógica “p¬>q” e a estrutura sintática de “se p, q”: a oração iniciada por “se” é gramaticalmente subordinada a outra, ao menos em termos tradicionais, enquanto que do ponto de vista lógico, inexiste dependência entre “p” e “q”.

O segundo problema já não concerne ao aspecto da análise linguística com base em categoria lógica, mas a uma característica geral dos períodos hipotéticos: o fato que se segue ao elemento “se” é tomado como um dado cuja realização é tida como eventual, possível ou até mesmo irrealizável.

Consideremos os seguintes enunciados:

  1. Se Pedro vier, João virá.
  2. Se te interessa saber, parto amanhã.

que nos parecem bastante distantes. À primeira vista, seria possível distinguir, com base em tais enunciados, uma condição de uma hipótese. Em (1), onde se exprimiria uma condição, a consequência “q” (vinda de João) seria decorrente da efetivação do fato “p” (vinda de Pedro) expresso na prótase. Em (2), onde se exprimiria uma hipótese, o fato expresso na consequência (parto amanhã) não encontra sua causa, seu motivo, na proposição antecedente (te interessa saber).

Uma tal análise, evidentemente de base conceptual, nos levaria a distinguir em exemplos como (1) e (2) um período hipotético de um período condicional. Na subdivisão de Brunot, n o entanto, não poderíamos dizer que “os fatos enunciados procedem um do outro”, especialmente no exemplo (2). Para manter sua caracterização da relação expressa no período hipotético como uma relação lógica, seria necessário, em exemplos como (2), considerar a existência de uma estrutura mais ou menos do tipo

(2’) Se te interessa saber, é relevante que te diga que parto amanhã.

Tal solução, no entanto, parece bastante artificial, pois poderíamos novamente dizer que a oração “se te interessa saber” é a hipótese feita pelo falante para considerar “relevante dizer que parto amanhã”, e não a causa, o motivo da oração subsequente.

Permitimo-nos, pois, considerar a existência de dois tipos de períodos: o período condicional e o período hipotético, conceituando-os, provisoriamente, da seguinte maneira:

período condicional: aqueles períodos cuja oração subordinada exprime um fato cuja ocorrência implique, provoque a ocorrência do fato expresso na oração principal;

período hipotético: aqueles períodos cuja oração subordinada exprime um fato sem relação explícita de causa com o fato expresso na oração principal.

Reconhecer, no entanto, dois tipos de períodos é tarefa nem sempre fácil, especialmente se não dispusermos de critérios sintáticos mais seguros do que a distinção conceptual entre hipótese e condição. Vaz Leão (1961, p. 20) observa a confusão de conceitos em Lalande (Vocabulaire technique et critique de la philosophie), onde se tenta, no verbete “hypotétique” distinguir os dois conceitos, mas ao definir “condition” se lê “antécédent d’une relation hypotétique” e no verbete “conditionnel” se afirma “synomyme d’hypotétique”. É por isso que a autora prefere, em seu trabalho, não fazer nenhuma diferença entre hipótese e condição, reconhecendo apenas que “as orações do período hipotético formam uma unidade lógia e uma unidade sintática”.

Ferdinand Brunot (1965, p. 869 e seguintes), por seu turno, afirma ser possível, em grande número de casos, determinar logicamente se o dado expresso depois de “se” é propriamente uma condição ou uma simples eventualidade, embora frequentemente condicionais e hipotéticas sejam expressas de tal sorte que as mesmas formas de linguagem lhes convém. O autor aponta para um critério de distinção: existir entre a condição e o acontecimento expresso em “q” uma relação de causa e efeito.

Se admitirmos ser esta a distinção – expressão ou não de uma relação de causa/efeito – teremos que admitir que esquemas sintáticos do tipo “se p, q” servem pra exprimir a relação causal, como o faz Oiticica:

“Há dificuldades, muitas vezes, em distinguir a causal da condicional […] Devemos verificar, pois, se a condição expressa na subordinada determina a ação principal ou se apenas anuncia a dependência em que se acha a ação principal da realização dessa condição; exs. “desde que saiu sem licença, despedi-lo-ei” (despedi-lo-ei porque saiu sem licença); “desde que saia sem licença, despedi-lo-ei” (despedi-lo0-ei se sair sem licença, isto é, se realizar a condição, se tornar essa condição determinante). (Oiticica, 1955, p. 64)

Entretanto, parece haver uma diferença significativa entre expressão de causa num esquema sintático condicional e sua expressão numa forma do tipo “q porque p”. Esta diferença pode ser notada no par

  1. Se você não quer, não insisto.
  2. Não insisto porque você não quer.

No enunciado (3) há um raciocínio hipotético e, mesmo que o fato “você não quer” seja real, ele é apresentado como não-positivo, enquanto que em (4) o mesmo fato é apresentado como positivo ou, em outras palavras, o falante, mesmo tendo como certo o conteúdo expresso em “você não quer”, ao enuncia-lo na forma hipotética, indica com isso uma possível dúvida quanto a sua realidade, o que não ocorre quando emprega o enunciado (4).

Assim, a classificação dicotômica entre hipótese e condição oferece dificuldades

a) na conceituação das relações expressas, distinguindo um tipo de período do outro;

b) na caracterização das marcas linguísticas específicas que permitam sustentar uma tal dicotomia;

c) na classificação de enunciados onde não parece haver qualquer relação de xausa e efeito, mas que também se distanciam em suas nuances semânticas do enunciado (2), tais como

        (5) Se a direção nacional da Arena menospreza a província (MG), o povo lhe dedica respeito.

        (6) Se eu recebesse toneladas de petrodólares, eu não desenvolveria tudo o que o país necessita.

        (7) Se aceitarmos a Carta aos Brasileiros como endereçada ao Estado brasileiro, ela é uma afronta ao nosso país.

d) na análise de períodos onde a relação de causa e efeito se dá de forma inversa àquela especificada na conceituação do período condicional, como no exemplo

        (8) Se o manifesto é duro em algumas passagens, é porque a realidade é dura.

As dificuldades apontadas para a caracterização dos períodos hipotéticos a partir da distinção entre hipótese e condição autorizam que se busque outras formas de análise.

  1. Período hipotético: uma única enunciação?

É a partir da perspectiva da “linguística da enunciação” que se procurará reexaminar a classificação dos períodos hipotéticos, já que distinguir explicitamente se nos encontramos frente a uma única enunciação, que afirmaria a relação entre as proposições ou se nos encontramos frente a duas enunciações, cujos enunciados estariam apenas “coordenados” entre si, é estabelecer a estrutura do esquema “se p, q”, estrutura esta que é fundamental à análise semântica de tais enunciados.

A questão, evidentemente, não é tão fácil como pode parecer à primeira vista. Por um lado, seria teoricamente interessante obter uma generalização estrutural que desse conta d todo e qualquer emprego do esquema em análise: nesta perspectiva trabalha Ducrot (1972), descrevendo as sentenças condicionais como ato ilocucional de suposição. (1)

Em nossa abordagem do problema, tentaremos operar com base nos conceitos de frases coordenadas, segmentadas e ligadas de Bally (1944), seguindo de perto a aplicação dos mesmos conceitos feita por Ducrto (1972) na distinção entre enunciados conectados por “porque” e “para que”, de um lado, e “pois” e “de modo que” de outro.

Inicialmente introduziremos os conceitos de Bally para, num segundo momento, discutirmos os critérios linguísticos (negação, interrogação, somente, ‘é…que’ e encadeamento) que permitem detectar num mesmo período a existência de mais de uma enunciação.

Para Bally, os enunciados linguísticos respondem a duas variáveis: de um lado, o objetivo, o propósito do enunciado é fazer com que nosso interlocutor saiba, conheça o pensamento que temos a propósito de algo; de outro lado, cada enunciado é emitido, na ocasião, com base num motivo, que é seu tema:

“Podemos figurar o tema por A e o propósito por Z. Assim, um sentimento de admiração pode ser o objetivo de uma comunicação; mas esta admiração deve ter uma causa: não é suficiente dizer “Magnífico!”, é necessário que se saiba o que se julga magnífico.” (Bally, 1944, p. 53)

É a partir desta perspectiva (tema-propósito) que Bally analisa as frases complexas que, explicitamente, unem o tema e o propósito, destacando três tipos de enunciações sque se assemelham por ligar dois termos por uma relação gramatical, mas que se distanciam pela rigidez crescente que dão a esta relação: coordenação, segmentação e subordinação:

  1. coordenação: “duas frases são coordenadas quando a segunda tem por tema a primeira”. Ambas as frases são autônomas, a primeira constituindo-se num ato de enunciação completo, quer seja ou não seguida pela segunda frase. A distinção entre frases coordenadas e frases simplesmente justapostas é que estas últimas são totalmente independentes quanto às “intenções” e “condições”, enquanto que duas frases coordenadas entre si relacionam-se pelo fato de que a segunda retoma a primeira, subentendendo-a. Tal retomada pode ser explícita ou implícita, como nos exemplos:

(9) Está chovendo. Não sairemos.

(10) Está chovendo, portanto não sairemos.

b) segmentação: “chamamos frase segmentada uma frase única resultante da condensação de duas coordenadas, mas em que a “soudure” (soldadura) é imperfeita e permite distinguir duas partes das quais uma (A) tem a função de tema do enunciado e a outra (Z) tem a função de propósito.” A segmentação distingue-se da coordenação pelo fato de haver uma interdependência, um relacionamento recíproco entre os dois enunciados A e Z: A é um “apresentador” (présentatif) do enunciado, e entre os dois segmentos há condicionamento recíproco. O ‘valor’ sintático de A, em Z, pode vir ou não marcado já no próprio segmento A, como se pode notar nos exemplos

(11) Deste trabalho, não compreendo os pressupostos.

(12) Este trabalho,  não compreendo os pressupostos.

c) subordinação: nas frases ligadas não há duas enunciações. “A frase ligada, ao menos em suas formas mais puras e mais simples, não caracteriza o tema e o propósito por qualquer signo linguístico” (no texto de Bally, principalmente a pausa e a curva melódica). Neste tipo de frase, o objeto do ato de enunciação é a própria relação estabelecida entre as duas orações, como no exemplo

(13) Quem pode mais chora menos.

que “não serve para afirmar um poder e depois, em relação a este poder, um chorar. Ao contrário, afirma uma relação entre poder e chorar”. (Ducrot, 1972, p. 129)

A análise do esquema “se p, q” no interior de tais conceitos permite obter elementos para uma decisão da questão de se nos encontramos frente a uma única enunciação e, portanto, uma frase ligada (subordinada) que enunciaria a relação entre as orações, ou se nos encontramos frente a duas enunciações coordenadas entre si, a primeira da forma “se p”, definível como um enunciado completo, realizado por um ato de fala específico.

  1. Critérios de análise

Para distinguir frases coordenadas de frases ligadas, Ducrot (1972), com base nos enunciados

(14) Pedro veio para que Tiago partisse.

(15) Pedro veio de modo que Tiago partiu.

(16) Pedro veio porque Tiago partiu.

(17) Pedro veio pois Tiago partiu.

nota que além das diferenças na própria natureza das relações expressas, existem diferenças na organização interna dos períodos. Os enunciados (15) e (17) não podem ser objeto de uma interrogação, nem de uma negação, e quando estas ocorrem, não incidem sobre a relação mas sobre parte do período. Além disso, é impossível modificar as expressões “de modo que” e “pois” com somente, ou introduzir os períodos em questão na perífrase “é…que”, como se pode notar

(15’) * Pedro veio somente de modo que Tiago partiu.

(15”) *É de modo que Tiago partiu que Pedro veio.

(17’) * Pedro veio somente pois Tiago partiu.

(17”) *É pois Tiago partiu que Pedro veio.

Ao contrário, os enunciados conectados por “porque” e “para que” podem ser interrogados e negados, podendo a negação e a interrogação incidir sobre a própria relação que expressam (em uma das interpretações resultantes da negação e da interrogação (2)). Podem, ainda, ser modificados por “somente” ou transformados pela perífrase “é…que”, como se pode ver em

(16’) Pedro veio porque Tiago partiu?

(16”) Pedro não veio porque Tiago partiu.

(16’’’) Pedro veio somente porque Tiago partiu.

(16’’’’) É porque Tiago partiu que Pedro veio.

(as mesmas ‘transformações’ podem ocorrer com o enunciado (14)).

Além dos critérios apontados, poderemos ainda considerar um quinto critério: o encadeamento. Se transformarmos o enunciado (16) em subordinada de outra proposição, teremos

(18) Admito que Pedro veio porque Tiago partiu.

O enunciado (18) admite duas interpretações, que representaremos por

  1. (admito que Pedro veio) porque Tiago partiu;
  2. Admsito (que Pedro veio porque Tiago partiu).

Em a) admite-se a vinda de Pedro e o motivo para admiti-la é a partida de Tiago; em b admite-se que a causa da vinda de Pedro é a partida de Tiago.

Apesar das dificuldades (especialmente a dupla interpretação quando os enunciados são “interrogados” ou “negados”), os critérios distintivos entre frases coordenadas e frases ligadas são um meio adequado de análise, principalmente porque os enunciados que se constituem estruturalmente através de coordenações não admitem as modificações que os critérios “somente” e “é…que”, propostos por Ducrot, operam nos enunciados constituídos através da subordinação.

  1. Aplicação dos critérios a períodos hipotéticos

Para obter uma descrição estrutural dos períodos hipotéticos, tomemos os enunciados abaixo como exemplos significativos: (3)

  1. Se Pedro vier, João virá.
  2. Se o manifesto é duro em algumas passagens, é porque a realidade é dura.
  3. Se a direção nacional da Arena menospreza a província (MG), o povo lhe dedica respeito.
  4. Se eu recebesse toneladas de petrodólares, eu não desenvolveria tudo o que o país necessita.
  5. Se aceitarmos a Carta aos Brasileiros como endereçada ao Estado brasileiro, ela é uma afronta ao nosso país.
  6. Se a situação está difícil, precisamos diminuir a segurança do cidadão.
  7. Se te interessa saber, eu parto amanhã.

Tais enunciados, submetidos aos critérios especificados, permitirão responder a questão que nos colocamos neste trabalho: no esquema “se p, q” há sempre uma única enunciação?

  1. Interrogação

(1a) Se Pedro vier, João virá?

(2a) Se o manifesto é duro em algumas passagens, é porque a realidade é dura?

(3a) Se a direção nacional da Arena menospreza a província (MG), o povo lhe dedica respeito?

(4a) Se eu recebesse toneladas de petrodólares, eu não desenvolveria tudo o que o país necessita?

(5a) Se aceitarmos a Carta aos Brasileiros como endereçada ao Estado brasileiro, ela é uma afronta ao nosso país?

(6a) Se a situação está difícil, precisamos diminuir a segurança do cidadão?

(7a) *Se te interessa saber, eu parto amanhã?

A interrogação é impossível em (7a): o enunciado fica sem sentido; é muito estranha em (3a): uma interpretação talvez possível “apesar da direção nacional da Arena menosprezar a província, o povo lhe dedica respeito?” (interpretando-a como faz Ducrot (1972), a oração introduzida por “se” como um ato de fala específico: a suposição, dentro da qual se faz a interrogação). No enunciado (2a) a única interpretação possível é a da incidência da interrogação sobre “é porque a realidade é dura”, tomando-se “p” como algo já estabelecido entre os interlocutores. Nos demais enunciados, duas interpretações são possíveis: a interrogação incidiria sobre “a”, sendo tais perguntas realizadas no interior da hipótese expressa em “se p”. Esta é a análise de Ducrot (1972) para quem o fato de ser possível uma segunda interpretação, em que a interrogação incidiria sobre a relação entre “p” e “q” resulta de regras retóricas.

Embora a discussão pudesse, aqui, ser mais detalhada, considero a incidência da interrogação no mínimo ambígua. Para ilustrar esta ambiguidade e a possibilidade de incidência sobre a relação entre “p” e “q”, consideremos o seguinte diálogo:

– Se chover, ventará?

– Não.

Se a interrogação incide apenas sobre “ventar”, o “Não” poderia ser parafraseável por “Não ventará”. Entretanto, são possíveis outras respostas (ou continuações de respostas) como:

  1. Se chover, ventará? Não. Não choverá nem ventará.

Se chover, ventará? Não. Choverá, mas não ventará.

Se chover, ventará? Não. Não choverá, mas ventará.

      Se nos perguntarmos, agora , sobre o sentido de Não nos dois últimos casos, não poderemos dizer que significa “não ventará”, pois teríamos uma resposta contraditória num dos casos e repetitiva noutro. (4)

  1. Negação

Negar uma estrutura sintática da forma “se p, q” (entendendo-se comoum todo) é bastante difícil. Uma pesquisa de J. C. Anscombre citada por Ducrot (1972, p. 263) mostra que o modo mais natural de negar “se p, q” consiste em dizer “mesmo se p, q” (ou mesmo que p, q) como no diálogo

– Pedro virá de carro se a estrada estiver boa?

– Não. Mesmo que a estrada esteja boa Pedro não virá de carro.

Poderíamos, para utilizar a negação, usar expressões como “é falso que” ou similares. No entanto, tal esquema de negação, como o mostrou Ducrot (1966) não incide sobre o fato, como quando se diz “João não veio”, mas sim sobre a afirmação de um locutor, real ou imaginário, de que “João veio”. Assim, “É falso que João veio” exige uma afirmação anterior, explícita ou implícita, de que “João veio”, sendo, pois, a negação de uma afirmação. Utilizaremos na análise dos períodos hipotéticos o esquema “mesmo que p, ~q” como forma de teste:

(1b) Mesmo que Pedro venha, João não virá.

(2b)  *Mesmo que o manifesto seja duro em algumas passagens, é porque a realidade não é dura.

(3b) *Mesmo que a direção nacional da Arena menospreze a província, o povo não lhe dedica respeito.

(4b) *Mesmo que eu recebesse toneladas de petrodólares, eu (não não= sim) desenvolveria tudo o que o país necessita.

(5b)  Mesmo que aceitemos a Carta aos Brasileiros como endereçada ao Estado brasileiro, ela não é uma afronta ao nosso país.

(6b) Mesmo que a situação esteja difícil, não precisamos diminuir a segurança do cidadão.

(7b) * Mesmo que te interesse saber, eu não parto amanhã.

A negação de “se p, q”, tomado como um todo, através do uso do esquema concessivo é perfeitamente normal em (1b), (5b) e (6b). Os demais enunciados exigem outras formas de negação:

(2b) exige uma forma “se … não é porque…”

(3b) exige a forma “mesmo que p, q”

(4b) exige a forma “mesmo que p, ~q” (não admite a negação da negação, logo afirmação)

(7b) exige “mesmo que não p, q”.

  1. Somente

(1c) Somente se Pedro vier, João virá.

(2c) * Somente se o manifesto é duro em algumas passagens, é porque a realidade é dura.

(3c) *Somente se a direção nacional da Arena menospreza a província, o povo lhe dedica respeito.

(4c) * Somente se eu recebesse toneladas de petrodólares, eu não desenvolveria tudo o que o país necessita.

(5c) Somente se aceitarmos a Carta aos Brasileiros como endereçada ao Estado brasileiro, ela é uma afronta ao nosso país.

(6c) Somente se a situação está difícil, precisamos diminuir a segurança do cidadão.

(7c) * Somente se te interessa saber, eu parto amanhã.    

A ambiguidade dos enunciados (2c), (3c), (4c) e (7c) nos leva a distingui-los dos demais enunciados. Quanto ao enunciado (4c), note-se que (4) é interpetado como concessivo, e que também os operadores tipicamente concessivos não admitem ser modificados por “somente”:

(19) * Somente   mesmo se      chova, iremos a festa

                           mesmo que

                                   embora

  1. É … que

(1d) É se Pedro vier que João virá.

(2d) *É se o manifesto é duro em algumas passagens que é porque a realidade é dura.

(3d) *É se a direção nacional da Arena menospreza a província que o povo lhe dedica respeito.

(4d) * É se eu recebesse toneladas de petrodólares que eu não desenvolveria tudo o que o país necessita.

(5d) É se aceitarmos a Carta aos Brasileiros como endereçada ao Estado brasileiro que ela é uma afronta ao nosso país.

(6d) É se a situação está difícil que precisamos diminuir a segurança do cidadão.

(7d) *É se te interessa saber que eu parto amanhã.

        O critério “é…que” confirma as conclusões podemos tirar com “somente”: (2), (3) e (7) constituem um grupo à parte. O enunciado (4) (concessivo) está de acordo, novamente, com a não aceitabilidade da perífrase “é … que” com outros operadores concessivos:

(20) É     mesmo se      chova que iremos à festa

               mesmo que

                embora

  1. Encadeamento

O critério do encadeamento pode ser aplicado em dois sentidos: deixando a ordem das orações tal como em (1)-(7), ou invertendo a ordem de “se p, q” para “q, se p”. Como nos interessa verificar se a oração tradicionalmente classificada como “subordinada” modifica também a principal, aplicaremos o teste invertendo a ordem de (1)-(7) pra “q, se p”:

(1e) Admito que João virá se Pedro vier.

(2e) *Admito que é porque a realidade é dura se o manifesto é duro em algumas passagens.

(3e) Admito que o povo dedica respeito à província se a direção nacional a menospreza.

(4e) Admito que eu não desenvolveria tudo o que o país necessita se eu recebesse uma tonelada de petrodólares.

(5e) Admito que a Carta aos Brasileiros é uma afronta ao nosso país se a aceitarmos como endereçada ao Estado brasileiro.

(6e) Admito que precisamos diminuir a segurança do cidadão se a situação está difícil.

(7e4) Admito que eu parto amanhã, se te interessa saber.

Os enunciados (1e), (4e) e (6e) podem ser interpretados de dois modos: a oração condicional modificando apenas a subordinada anterior, ou modificando a oração principal (com sua objetiva). Em outras palavras, em uma das interpretações, o fato de “eu admitir que João virá”, “admitir que não desenvolveria tudo o que o país necessita”, etc. está condicionado pela oração iniciada por “se”. Na outra interpretação o que admito é a existência da relação de condição entre os dois fatos. O enunciado (3e) somente admite a primeira interpretação.

O enunciado (2e) é inaceitável; o enunciado (7e) somente admite a interpetação: aquela que corresponde à oração condicional como modificadora da oração principal: o que se informa ao interlocutor é o fato de “eu admitir que parto amanhã”.

  1. Conclusões

Os dados de nossa análise nos levam à distinção de dois grupos de enunciados: o primeiro constituído por (2), (3), (4) e (7); e o segundo constituído por (1), (5) e (6).

Incialmente tomaremos os enunciados do primeiro grupo, lembrando que a coordenação de frases, na concepção de Bally, consiste de duas enunciações, a segunda tomando a primeira como tema.

Os enunciados do tipo (7) são os mais claramente coordenativos: inclusive a negação através do esquema concessivo exige uma forma específica. Em nossa análise, (7) se constituiria por duas enunciações distintas: a primeira oração introduz o motivo por que enunciamos a segunda oração, isto é, o ato de fala praticado em “se p” explicita a razão que leva o locutor a praticar o ato de fala”q”; não é o enunciado “q” que toma “se p” por tema, mas é a enunciação de “q” que subentende o enunciado “se p” [o que remete ao diálogo entre os interlocutores, daí ser um tipo dialógico].

Os enunciados do tipo (3) são também coordenados: a primeira oração constitui uma enunciação completa (um ato de fala específico) e a segunda oração tem a primeira como tema. A oposição entre “p” e “q” somente se compreende à medida que a segunda oração subentende a primeira.

Pelos dados de nossa análise, os enunciados do tipo (2) também deveriam ser considerados como constituídos por coordenação, entretanto a autonomia entre as duas enunciações, se existente, é muito frágil. Note-se que:

  1. no encadeamento, a única possibilidade é considerar todo o esquema “se…é porque”, sem invertê-lo, subordinado como um todo à principal;
  2. na negação, este esquema é totalmente diferente dos demais – é impossível o emprego de qualquer forma concessiva;
  3. ao contrário dos demais períodos hipotéticos, os enunciados do tipo (2) não admitem a mudança de ordem entre as proposições.

O esquema sintático “se …é porque” merece algumas considerações mais detalhadas. Para tanto, operaremos com outro exemplo:

(21) Se houve o episódio da PUC, foi porque não acataram nossas ordens.

Em (21) parece ter havido uma transformação do enunciado

(21’) Houve o episódio da PUC porque não acataram nossas ordens.

Para Vaz Leão (1961, p. 103 e seguintes) este tipo de construção é um recurso expressivo que permite ressaltar o objeto da ação verbal ou circunstância desta ação. A autora analisa frases como:

(22) Pedro correu porque teve medo.

(22’) Se Pedro correu foi porque teve medo.

(23) Correu de medo.

(23’) Se correu, foi de medo.

(24) Comeu só arroz.

(24’) Se comeu foi só arroz.

Para Maurice Coyaud (1972), este tipo de construção é uma implicação lógica cuja “única diferença é a orientação desta implicação”. Nas construções comuns (se p, q), a consequência está contida na oração principal. Nas construções “se… é porque…” há uma inversão e a consequência está na oração subordinada.

O problema para a análise de Vaz Leao, parece-nos, é a diferença de significado entre os enunciados iniciados por “se” e aqueles dados como base sobre que o processo de “realce” operaria: em (22) – (24) há uma afirmação de fatos, e para os fatos que o falante afirma ele deve dispor de evidências. Já em (22’)-(24’) insinua-se uma dúvida quanto aos fatos e daí o uso de “se” (ou melhor, em consequência de “se”).

Em outras palavras, quando o falante afirma (22) ele deve dispor de evidências para a verdade do que enuncia (trata-se de regra preparatória da afirmação, conforme Searle). NO entanto, em (22’), o falante deve dispor de evidências somente para a relação correr/medo, já que “correr” é posto como caráter hipotético, como se pode notar comparando os enunciados

(25) Se Pedro correu – eu não estou afirmando que ele correu – foi porque teve medo.

(25’) *Se Pedro correu – como acabamos de ver – foi porque teve medo. 

Aceitando, por outro lado, que esta construção é mera inversão de uma implicação, como explicar o fato de que construções implicativas como (1), (5) e (6) se deixam classificar entre frases ligadas e esta construção resiste aos mesmos critérios?

Parece-nos que aqui o conceito de frase segmentada nos é útil. Lembremos que a segmentação é resultante de uma frase única. Sua característica é tomar umd os elementos do enunciado como tema, expondo-o fora da sentença. O esquema “se… é porque…” teria por base uma sentença da forma “se p, q” e a aplicação de tal transformação teria de obedecer condições específicas, tais como a correlação de tempos verbais, impossibilidade de mudança na ordem depois de sua aplicação, etc.

Quanto aos enunciados do tipo (4) – concessivos – a decisão na descrição estrutural como coordenação ou subordinação é bem mais difícil. Notemos que os operadores concessivos não admitem ser modificados por “somente” e não admitem a perífrase “é…que”. Como estes dois critérios são os mais seguros de que dispomos, a análise estrutural que propomos aos enunciados concessivos é de que eles se constituem por duas enunciações coordenadas entre si.

Quanto aos enunciados do tipo (1), (5) e (6), a análise estrutural que os dados nos levam a atribuir é aquela do período composto por subordinação: o operador “se” nestes tipos de enunciados deixa-se modificar pela expressão “somente” sem qualquer dúvida; a perífrase “é…que” é aceitável; a forma de negação é sempre a mesma; no encadeamento e na interrogação obtivemos os mesmos tipos de resultados.

As considerações anteriores nos levam a admitir que, estruturalmente, os períodos da forma “se p, q”, tradicionalmente descritos como compostos por subordinação, são ambíguos. A conjunção “se” ora é coordenativa, ora é um elemento de um esquema de segmentação, ora é subordinativa. Distinguimos, pois, três diferentes estruturas “se p, q” em português:

  1. coordenativa – em que há duas enunciações claramente distintas
  2. segmentativa – em que há duas enunciações interdependentes
  3. subordinativa – em que se enuncia uma relação condicional entre as orações.

Cremos que uma tal tipologia, baseada na linguística da enunciação, ao nos fornecer a informação quanto à própria estrutura do enunciado – uma construção teórica a análise – permitirá que mais facilmente expliquemos os diferentes matizes semânticos realizados contextualmente pelo conjunção “se” e, ao mesmo tempo, podem ser deduzidas dos diferentes tipos de enunciados da forma “se p, q”.

Para continuarmos a investigação, seria necessário estabelecer as condições para a prática do ato de fala condicional, que afirmaria a relação entre as proposições constituintes do período hipotético, além de analisarmos mais amplamente, em busca talvez de uma macrossintaxe, a estrutura coordenativa e a estrutura segmentativa.

Notas

  1. Em nossa dissertação de mestrado, pode-se ler uma resenha crítica da análise ilocucional (Ducrot, 1972) e da análise argumentativa (Ducrot, 1973) dos enunciados condicionais, p. 157 a 181.
  2. Para um estudo detalhado de tais ambiguidades, ver Vogt (1978).
  3. Com exceção dos enunciados (1) e (7), os demais forma retirados da imprensa escrita.
  4. Para uma discussão mais detalhada, ver Ducrot (1972) e nossa dissertação de mestradoi, p. 67-71.

Bibliografia

Bally, C. (1944) “Trois formes caractéristiques d’énonciation: frase coordonnée, frase segmentée, frase liée”. _____ Linguistique générale et linguistique française. Bern, Éditions Francke Berne, 4ª. ed. 1965, p. 53-75.

Brunot, F. (1965). “Les relations”. La pensée et la langue. Masson, 3ª. ed. Revista, 1965.

Coyaud, M. (1972) Linguistique et documentation. Paris : Larousse, 1972.

Ducrot, O. (1966). “Quelques illogismes du langage” Lnagages, 3, 126-139.

_________(1972). Princípios de semântica linguística (dizer e não dizer). SP, Cultrix (tradução de Dire et ne pas Dire)

________ (1973) La preuve et le dire. Maison Mame.

Oiticica, J. (1955) Manual de análise (léxica e sintática) Rj, Francisco Alves, 11ª. ed. Refundida.

Vaz Leão, A. (1961) O período hipotético iniciado por se. B. Horizonte, UFMG, Tese de Cátedra.

Vogt, C. (1978) “Indicações para uma análise semântica argumentativa das conjunções ’porque’, ‘pois’ e ‘já que’. Cadernos de Estudos Linguísticos 1, p. 35-50, Unicamp.

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.