Textos de Arquivo IV: Literatura e Denúncia

Nota Introdutória

Publicado no jornal Opinião, órgão de divulgação da AABB – Santo Ângelo, edição de junho de 1973. Este texto, como se verá, se contrapõe à análise estrutural das narrativas e ao formalismo em literatura. Ainda produto de um pensamento que queria uma literatura engajado. Hoje, fico me perguntando o que andava eu lendo nesta época. No meu curso de Letras, que frequentava então, estudavam-se os estruturalistas: Luiz Costa Lima, Affonso Romano de Sant’Ana, a fenomenologia da obra literária de Maria Luiza Ramos… No entanto, minha participação prévia no movimento estudantil, antes do golpe militar, depois num esboço de entrada no movimento sindical para me tornar dois anos mais tarde professor como tarefa política, levam-me a ter outras posições, distintas do meu professor de literatura, Prof. Gustavo Maciel, depois meu grande amigo e compadre (sou padrinho do Igor Maciel).Assim, o texto-comentário aqui transcrito deseja ser uma forma de participação política num tempo de ditadura militar..

 

Literatura e Denúncia

                Integrante de um mundo, a obra de arte literária é uma “desfatização” desse mundo-realidade, movido o artista pela necessidade de exprimir sua própria existência (que implica na dos demais) e a sua visão da existência.

                Manejando um instrumento que não lhe é exclusivo, mas um limite de possibilidades a se concretizarem, o escritor também sofre a pressão de uma violência simbólica exercida através e pelo sistema linguístico. Violência simbólica que se realiza não só na imposição de significações, como também na seleção destas significações, de tal sorte que a palavra, carregada de um conceito mental (e relativo) traz em seu bojo uma representação do objeto-real imposta ao artista e aos demais membros da sua comunidade de fala. Esta imposição (violência simbólica) oculta e reforça as relações de força que a fundamentam e que somente se poderão encontrar fora de uma manifestação de super-estrutura, como é o caso da obra de arte literária.

                É por isso que, para nós, a criação artístico-literária não está apenas na criação de uma ambiência semântica que faça com que a palavra, em face dessa ambiência, tome conotações diversas em relação a seu emprego no discurso não literário, não artístico. Reduzir a arte a somente esta “desrealização” semântica, vocabular e sintática é reduzi-la a uma técnica.

                Na medida em que considerarmos esta “desrealização” formal, deveremos encontrar na manifestação artístico-literária também uma denúncia de uma realidade, denúncia que subjaz à própria “destruição” do seu instrumental (o sistema linguístico).

                Não é sem relação com o impasse da própria sociedade, o impasse em que se debatem os escritores na busca de um grau zero de sua escritura. Se as condições sociais estão permitindo (aplaudindo, às vezes) um novo discurso formal, é porque este discurso, enquanto forma, não as fere nem as denuncia, e não porque estas mesmas condições são capazes de consumir este novo discurso formal. No permissível e consumível pelo “stablishment” não se resume o todo da questão. A denúncia prevê a mudança, e esta o “stablishment” não digere, muda embora possa resistir e tentar consumir. O “stablishment” não é e nunca foi uma verdade imutável e os ataques são possíveis e o ferem, basta que olhemos em nossa volta para constatar.

                É na denúncia que se encontra o significado de uma obra literária: no formal, o deslizamento de uma denúncia da realidade em que a própria obra está incrustrada.

                Assim, Cervantes faz dum D. Quixote não apenas um personagem mítico e místico, mas acima de tudo uma desmitificação e desmistificação dos resquícios de uma sociedade decadente (sociedade medieval). Com o mesmo objetivo, a peça teatral “O Homem de La Mancha” (numa hora muito oportuna montada por Flávio Rangel no Rio) traz ao palco não só o imortal Cervantes, mas uma realidade que é denunciada no transcorrer da peça.

                Uma realidade de hoje porque, se a peça quer ser e é um corte sincrônico no passado, estamos vivendo um tempo de transformações sociais como viveram os contemporâneos de Cervantes. Precisamente devido a esta denúncia (que transparece na forma) que a obra sobrevive até hoje. A experiência formal de Cervantes pode ter sido abandonada, mas a obra sobreviveu. E toda obra para sobreviver deverá trazer em seu âmago o mundo do real, desfatizado no enredo e sequência narrativa. “Uma constante, no entanto, das tendências estéticas ditas de vanguarda é apresentar a arte como uma atividade que nada tem a ver com os problemas enfrentados pelo social e tira precisamente desse alheamento sua autenticidade” (Gullar). “Autenticidade” quem aponta para um desespero existencial do absurdo, na falta de outros caminhos a apontar. Num panorama assim configurado, os vanguardistas, querendo demonstrar a impossibilidade de conhecer e denunciar o real, fazem de suas obras a expressão genial da crise em que se debate a visão metafísica do mundo. 

João Wanderley Geraldi é reconhecido pesquisador da linguística brasileira e formou gerações de professores em nosso país. Há já alguns anos iniciou esta carreira de cronista-blogueiro e foi juntando mais leitores e colaboradores. O nome de seu blog vem de sua obra mais importante, Portos de Passagem, um verdadeiro marco em nossa Educação, ao lado de O texto na sala de aula, A aula como acontecimento, entre outros. Como pesquisador, é um dos mais reconhecidos intérpretes e divulgadores da Obra de Mikhail Bakhtin no Brasil, tendo publicado inúmeros livros e artigos sobre a teoria do autor russo.